segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Chesterton e S. Francisco de Assis - I

De S. Francisco podem ficar três ideias fundamentais:

 

-O espanto é um elemento positivo de prece: ninguém como S. Francisco se detém nos seres vivos e na Natureza a quem chama irmãos. Na Idade Média não existia escravatura e cumpria-se o ideal cristão da fraternidade universal. Foi apenas com os descobrimentos e o iluminismo que voltou a escravatura com os negreiros, aliás em conluio com os chefes tribais africanos, e a ideia do “Bom Selvagem”. Na Revolução Industrial o trabalho infantil era massificado, tal como a mortalidade infantil, como bem o descreveu Dickens. No nosso tempo a escravatura regressou com a agiotagem e a globalização. Só quem nasceu de novo, como disse Jesus Cristo a Nicodemos, só quem vê o mundo pelos olhos de criança pode deter-se no amanhecer, no entardecer, na criatura, na rosa, na gotícula, no orvalho…

-A fé como sustentáculo da Esperança: só uma fé inabalável pode levar um jovem rico a abandonar a riqueza material e a glória humana e ter a esperança de poder construir algo nestas condições. Aconteceu com a Ordem dos Cavaleiros e a Ordem dos Frades Menores. Os franciscanos perduram até ao nosso tempo. A obra de S. Francisco foi um extraordinário rejuvenescimento de uma Igreja ao tempo atribulada, pelos dois meios necessários à credibilidade: a palavra e o exemplo. Porque as palavras são bonitas mas os olhos precisam de ver! Foi esta, também, no nosso tempo, a obra de Madre Teresa de Calcutá.

-A Idade Média não cola com a imagem que nos ensinaram na escola, a da Idade das Trevas: neste período aconteceu a reconquista cristã a quem devemos a matriz fundamental da Europa e da América. A construção das mais belas catedrais que hoje visitamos na Europa e que levámos, em ideia, para a América. O método científico e as universidades. A recuperação e tradução dos conhecimentos greco-latinos pelos monges copistas. A formação dos primeiros hospitais. Nada mal para uma idade de trevas!
 

Como dizia Chesterton, o que sobra em análise ao homem do nosso tempo, falta-lhe em sensibilidade e bom senso, precisamente o que o homem da Idade Média tinha. O homem do nosso tempo vê o pormenor do traço num campo do quadro, mas é cego para ver todo o quadro.

 

de Todos os Caminhos Levam a Roma, Ed Oratório, Brasil:

 

“…Já disse que há dois caminhos para um homem jovem que se especialize numa meia-verdade. Dei um exemplo pessoal de tal homem e a possibilidade do seu horrível fim. O outro percurso é aquele que o faria levar a sua meia-verdade à cultura da Igreja Católica, que é realmente uma cultura e onde ela realmente seria cultivada. Pois este lugar é realmente um jardim; e o barulhento mundo exterior é, contudo, nos dias que correm, um deserto, se bem que um deserto uivante. Isto é, ele pode levar a sua ideia onde ela será valorizada pela verdade nela contida, onde ela será ponderada em relação a outras verdades e frequentemente sustentada por melhores argumentos.

Por outras palavras, ela tornar-se-à parte, se bem que pequena, de uma civilização permanente que usa a sua riqueza moral como a ciência usa o seu património de factos. Assim, no exemplo ocioso que mencionei, não há nada verdadeiro naquele meu estado de espírito infantil e antigo que a Igreja Católica condene. Ela não condena o amor à poesia ou à fantasia; ela não condena, ao contrário elogia, o sentimento de gratidão pelo sopro da vida. Com efeito, esse é o espírito em que muitos poetas católicos se especializaram, e a sua primeira e mais refinada ocorrência encontra-se, talvez, no grande cântico de S. Francisco1. Mas naquela sã sociedade espiritual, sei que aquele optimismo nunca será transformado numa orgia de anarquia ou numa escravidão estagnada, e que não nos sobrevirá nenhum desastre irónico de ter descoberto uma verdade apenas para disseminar uma mentira.”

 

1Oração de S. Francisco:
 

Senhor: Fazei de mim um instrumento de vossa Paz.

Onde houver Ódio, que eu leve o Amor,

Onde houver Ofensa, que eu leve o Perdão.

Onde houver Discórdia, que eu leve a União.

Onde houver Dúvida, que eu leve a .

Onde houver Erro, que eu leve a Verdade.

Onde houver Desespero, que eu leve a Esperança.

Onde houver Tristeza, que eu leve a Alegria.

Onde houver Trevas, que eu leve a Luz!

Ó Mestre,

fazei que eu procure mais:

consolar, que ser consolado;

compreender, que ser compreendido;

amar, que ser amado.

Pois é dando, que se recebe.

Perdoando, que se é perdoado e

é morrendo, que se vive para a vida eterna! Amen.
 

 

Lord, make me a channel of thy peace;

that where there is hatred, I may bring love;

that where there is wrong, I may bring the spirit of forgiveness;

that where there is discord, I may bring harmony;


that where there is error, I may bring truth;

that where there is doubt, I may bring faith;

that where there is despair, I may bring hope;

that where there are shadows, I may bring light;

that where there is sadness, I may bring joy.

Lord, grant that I may seek rather to comfort than to be comforted;

to understand, than to be understood;

to love, than to be loved.

For it is by self-forgetting that one finds.

It is by forgiving that one is forgiven.

It is by dying that one awakens to eternal life. Amen.

 

 

Foi incluída nas orações da manhã por Madre Teresa de Calcutá e em Oslo, em 1979, recitou-a quando recebeu o prémio Nobel da Paz. Margareth Thatcher parafraseou-a quando ganhou as eleições e se tornou PM em 1979. Bill Clinton recitou-a ao Papa João Paulo II ao recebê-lo em NYC em 1995.

 

 


António Campos

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

"By the Babe Unborn"- “O Não Nascido”

G.K. Chesterton, 1900
tradução  António Campos e Anália Carmo



Se as árvores fossem altas e a relva curta
Como num conto louco
Se aqui e além um mar fosse azul
Quebrando uma monótona palidez                                       

Se um fogo fixo pairasse no ar
Para me aquecer ao longo de todo o dia
Se um cabelo farto e verde crescesse em grandes colinas
Eu saberia o que fazer

Encontro-me na escuridão; sonhando que existem
Grandes olhos frios ou bondosos
E ruas sinuosas e portas mudas
E homens vivos para além (delas)

Que venham as nuvens da tempestade: é melhor uma hora,
E que se vão para chorar e lutar,
Do que todas as eras em que reino
Nos impérios da noite.

Penso que se me dessem licença
Para neste mundo aparecer
Eu seria bom ao longo de todo o dia
Em que eu estivesse neste mundo encantado

Não ouviriam de mim uma palavra
De egoísmo ou de escárnio
Se eu ao menos pudesse encontrar a porta,
Se eu ao menos tivesse nascido. 
If trees were tall and grasses short
As in some crazy tale
If here and there a sea were blue
Beyond the breaking pale.

If a fixed fire hung in the air
To warm me one day through,
If deep green hair grew on great hills,
I know what I should do.

In dark I lie; dreaming that there
Are great eyes cold or kind,
And twisted streets and silent doors,
And living men behind.

Let storm clouds come: better an hour,
And leave to weep and fight,
Than all the ages I have rule
The empires of the night.

I think that if they gave me leave
Within the world to stand,
I would be good through all the day
I spent in fairyland.

They should not hear a word from me
Of selfishness or scorn,
If only I could find the door,
If only I were born.



Na verdade este poema não está diretamente relacionado com o aborto, mas não há dúvida que um leitor contemporâneo imediatamente o associaria a esse problema. Na verdade, é uma dedicatória ao que é essencial, uma espécie de optimismo baseado “num mínimo místico de gratidão”, uma alegria apenas pela existência. Trata-se de um argumento a favor da maravilha que deveria encher o coração de cada pessoa, e de facto enche o coração da maioria das crianças (porque elas ainda são novas neste mundo), pois o mundo é tão fascinante como o reino da fantasia. Se as árvores fossem altas e a relva curta/Como num conto louco/Se aqui e além um mar fosse azul/Quebrando uma monótona palidez". Lembra a Alice no País das Maravilhas ou as Crónicas de Narnia. Muitas vezes imaginamos mundos maravilhosos e não nos apercebemos da maravilha que é o nosso mundo.

Ouçamos Chesterton em Autobiografia:

“… Eu inventei uma teoria básica e mística. Consistia no seguinte: a mera existência, reduzida aos seus limites primários, era suficientemente extraordinária e excitante. Qualquer coisa entusiasma comparado com nada… Nas nossas nucas, por assim dizer, existe um esplendor ou explosão de maravilha, esquecida, sobre a nossa existência. O objecto da vida artística e espiritual é o de escavar por este amanhecer de maravilha, submerso, de forma a que um homem sentado numa cadeira possa de repente descobrir que está vivo, e ficar feliz…Então, entre os versos da minha juventude em que eu comecei a falar sobre este assunto estava um chamado “O bebé não nascido”, em que eu imaginei uma criatura por nascer suplicando pela existência, prometendo ser completamente virtuosa se tivesse a oportunidade da existência. Outro verso imagina o escarnecedor a suplicar a Deus que lhe dê olhos, lábios e língua, de modo que possa gozar de Quem lhos deu; uma versão mais agreste da mesma fantasia. Penso que foi por esta altura que eu pensei na noção de vida eterna e a introduzi num conto chamado “Homem vivo”; de um ser benevolente que andava de pistola, que subitamente a apontou a um pessimista quando este filósofo afirmou que a vida não valia a pena.”

É impossível não recordar Os Maias, escrito em 1888, e lembrar o diálogo final entre Carlos da Maia e João da Ega em que os dois amigos concluem não valer a pena correr por nada na vida e, no entanto, logo correm…apenas para apanhar uma caleche:

“-Ainda o apanhamos!

-Ainda o apanhamos!”

Grande Eça, grande Chesterton. A vida vale a pena!


Desiludidos mas não desencantados…




António Campos

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Gloria in Profundis



          


por G K Chesterton, 1927

Tradução de António Campos e Anália Carmo


Caiu na terra como sinal
Um deus grande demais para o céu.
Irrompeu de todo o lado
1 e quebrou
Os limites da eternidade:
Caiu no tempo e na terra
Desencaminhou-se como um ladrão ou um amante,
O vinho do mundo transborda,
Esplendor é derramado na areia.
2

Quem é orgulhoso quando os céus são humildes,
Quem se exalta quando as montanhas se baixam,
Se as estrelas caem e tombam
E um dilúvio de amor submerge-
Quem ergue a cabeça por uma coroa,
Quem invoca a vontade por direito,
Quem luta contra a corrente estrelada,
Quando tudo o que é bom vem a baixo?


No pavor dos perdidos e falhados
Caíram os anjos caídos
Invertidos em insolência, escalando
A montanha pendente do Inferno:
Incalculável com sondas ou varas
Muito profundo para descortinar,
Maior que a queda do homem
É a altura da queda de Deus
3.

Glória a Deus nos Abismos
A bica das estrelas na enchente-
O raio pensa ser lento
E o relâmpago teme atrasar-se:
Como homens que mergulham por pérolas
Buscando, perseguimo-lo como caça,
A estrela caída o achou
Na caverna de Belém.


There has fallen on earth for a token
A god too great for the sky.
He has burst out of all things and broken
The bounds of eternity:
Into time and the terminal land
He has strayed like a thief or a lover,
For the wine of the world brims over,
Its splendour is spilt on the sand.


Who is proud when the heavens are humble,
Who mounts if the mountains fall,
If the fixed stars topple and tumble
And a deluge of love drowns all-
Who rears up his head for a crown,
Who holds up his will for a warrant,
Who strives with the starry torrent,
When all that is good goes down?


For in dread of such falling and failing
The fallen angels fell
Inverted in insolence, scaling
The hanging mountain of hell:
But unmeasured of plummet and rod
Too deep for their sight to scan,
Outrushing the fall of man
Is the height of the fall of God.


Glory to God in the Lowest
The spout of the stars in spate-
Where thunderbolt thinks to be slowest
And the lightning fears to be late:
As men dive for sunken gem
Pursuing, we hunt and hound it,
The fallen star has found it
In the cavern of Bethlehem.


1Preferimos traduzir por “lado”, não por “coisas”, pois lado está mais de acordo com limites

2Pode ter dois sentidos: o vinho do mundo transborda pode significar o sangue de Cristo e dos Santos derramado pela areia dos povos da Terra. Esta a conexão com a Eucaristia. O outro sentido é que as coisas realmente boas e belas podem ser ignoradas no dia a dia, como o amanhecer, o carinho, o pôr do sol, as flores, no velho dizer português “Deus dá pão a quem não tem dentes” …ou que os prazeres acoplados a coisas verdadeiramente necessárias e boas, se tidos como um fim em si e não como um meio, podem conduzir ao hedonismo e à perda, a uma vida sem sentido – as coisas preciosas são derramadas na areia.

3 As profundezas dos Infernos, insondáveis, são menores que a descida de Deus ao mundo dos homens pela Encarnação.




































domingo, 23 de dezembro de 2012

Bilhete de Natal para G.K. Chesterton

Ghirlandaio, Presépio com mar     

              


                   Meu Caro Gilberto K. Chesterton,

 

     Não sei se chegaram aí os ecos da polémica – que, no fundo, foi mais um ataque de um bando de ignorantes e de presunçosos atrevidos, do que uma verdadeira polémica – sobre a existência ou não do burro e da vaca no presépio, a propósito – melhor seria também dizer, a despropósito -, do último e extraordinário livro de S. S. o Papa Bento XVI, Jesus de Nazaré. A Infância de Jesus. Sei que o meu amigo Gilberto K. Chesterton, se cá estivesse, teria zurzido a bom zurzir os “sábios” jornalistas que, acintosamente, confundiram os textos dos evangelistas S. Mateus e S. Lucas, sobre a infância de Jesus, ou seja, obras de carácter histórico, com uma criação poética franciscana, o presépio, que nasceu em 1223, em Greccio, fruto da imaginação e do profundo amor de S. Francisco de Assis. Os Evangelhos, como qualquer pessoa de mediana cultura religiosa sabe, são parcos em referências laterais e não falam, por isso, no burro, na vaca ou na quantidade de ovelhas presentes e, mais ainda – o que é altamente lamentável -, não citam sequer o nome de cada um dos pastores - com a filiação, morada e número do respectivo telemóvel – , que prestes acorreram a adorar o Deus Menino. Jesus nasceu num estábulo, como nos diz S. Lucas (2,7) e não é crível, já nesses tempos remotos, que aí encontrassem a Orquestra Filarmónica de Cebolais de Cima, mas, sem puxarmos muito pela imaginação, talvez um burro e uma vaca. Ora, alguns jornalistas de letras gordas e de fraca cultura, abespinharam-se muito por o Papa Bento XVI não falar neste livro no burro do presépio, quando explicava os Evangelhos. Não parece grave não falar do burro do presépio, quando não vinha a propósito. Grave, e muito, é não referirmos hoje o excesso dos mesmos fora dele.

     O presépio, essa admirável criação de S. Francisco, de quem o meu amigo Gilberto K. Chesterton escreveu uma excelente biografia – ainda não editada entre nós -, deu origem a uma curiosa discussão, sobretudo entre os autores de presépios italianos. Diziam eles - e com razão – que no presépio, nascido no interior da Itália, devia haver também o mar. E isto porquê? Porque o presépio é universal, como, de facto, lhes deram razão os franciscanos nesse tempo, dizendo que nele cabe il mundo nel suo ordine intero, todo o mundo por inteiro. E foi por isso também que o poeta galego Álvaro Cunqueiro escreveu um poema para ser cantado na noite de Natal, que rezava assim:

     São José tinha medo

     Que o Menino fosse marinheiro

     E saísse um dia p’lo mar fora

     Embarcado num veleiro.

     Não foi o Menino Jesus, mas fomos nós, embarcados em caravelas e naus pelos mares fora, levando sempre, no nosso coração de marinheiro português, um presépio que espalhámos por todo o mundo e todo o mundo acolheu. O presépio tornou-se, assim, verdadeiramente universal. O pintor Grão Vasco fez de um Rei Mago um índio do Brasil e um dos presépios que para mim tem mais luz é o meu presépio todo negro que me lembra o meu Natal na Guiné.

     Por tudo isto, o meu presépio tem este ano três mandarins chineses, em louça de Cantão. Comprei-os nesta cidade e trouxe-os para Macau, cidade que foi e é do Santo Nome de Deus. E antes de viajarem comigo para Portugal, levei-os à Igreja de S. Domingos a rezar a Nossa Senhora do Ar. O meu presépio tem três mandarins chineses. Vejo-os a andar apressados, no seu passo miudinho, em direcção à gruta do Deus Menino. Querem chegar antes de 6 de Janeiro. Querem chegar primeiro que os Reis Magos.

     Vamos nós também com eles a Belém. Vamos nós, mais uma vez, com o coração de marinheiro português, adorar o Deus Menino ao presépio que Deus fez.

                                                             Um Santo Natal

 Natal Medieval - Revista As Cruzadas            
 
                                                        António Leite da Costa

sábado, 22 de dezembro de 2012

O Natal e os Primeiros Jogos






                Christmas and the First Games - O Natal e os Primeiros Jogos

                                                                             G. K. Chesterton, 1934

                                                                       Tradução de Anália Carmo e António Campos

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"Espero sinceramente que todas as crianças venham a estragar este livro pintando as ilustrações. Eu queria fazer isso, mas os editores não me deixaram. Mas usem  cores  fortes, lindas, maravilhosas, porque os meus sentimentos são assim. "


"Na sua última viagem, ele parecia à beira do sucesso e tinha ficado na proa recitando um poema maior de sua própria composição para um ténue promontório azul no qual ele reconheceu um dos cabos da Groenlândia. Mas é inútil negar que o sentimento geral foi de alguma forma traído, quando se descobriu que era o Cabo da Boa Esperança. Resumindo, o almirante foi um dos que mantêm o mundo jovem. "




Às vezes tenho sido assombrado com uma história vaga sobre um tio selvagem e fantástico, o inimigo dos pais e causa da revolução em creches, que passou a pregar uma determinada teoria; quero dizer a teoria de que todos os objetos que as crianças usam no Natal para o que chamamos de fins desregrados ou ilegítimos, foram originalmente criadas para esses fins, e não para fins domésticos, monotonia que agora servem. Por exemplo, vamos supor que a história começa com uma luta de travesseiros numa creche à noite, e os meninos esbofeteando-se e batendo uns aos outros com esses tacos brancos e disformes.

O tio, que era um professor de imenso conhecimento e ainda maior imaginação e capacidade inventiva, tornar-se-ia impopular entre os pais e popular entre as crianças, ao dizer que a almofada, em arte pré-histórica, foi obviamente  idealizada para ser um taco; que o simulacro de luta na creche à noite é na verdade mais antiga e tem mais tradição do que toda a instituição de camas ou roupas de cama; em que numa manhã inocente do mundo, um querubim guerreou com outro com esse tipo de nuvens, possivelmente feitas de samito1 branco, místico, maravilhoso, e recheado com penas de asas de anjos, e que foi só mais tarde, quando o enfado e o tédio caíram sobre o mundo e os jovens deuses se cansaram dos seus desportos divinos, que eles adormeceram com a cabeça sobre as suas armas, e foi assim, que por um deslocamento gradual de todo o propósito original do travesseiro, ele veio a ser reconhecido como tendo o seu devido lugar numa cama.

É óbvio que qualquer uma destas lendas poderia ser iniciada com facilidade, graça e aceitação geral. Deve salientar-se, para obter a aprovação de meninos traquinas, que catapultas são realmente mais antigas e mais majestosas do que janelas. Janelas eram meros alvos para as catapultas, tão claras e frágeis que os arqueiros antigos poderiam ser recompensados com o partir e cintilar do cristal. Foi apenas após o sacerdócio opressivo do Médio Paleolítico que foi suprimida brutalmente a Cultura da Catapulta, e as pessoas vieram a utilizar os agora inúteis alvos de vidro para fins de luz ou ventilação. Do mesmo modo, a manteiga foi originalmente usada exclusivamente para fazer escorregar pais e encarregados de educação e foi só graças a um acidente tardio na vida de algum cidadão proeminente, agora prostrado, que ao lamber o chão, originou a descoberta das suas qualidades comestíveis.

Este princípio subversivo pode ser aplicado a quase todos os jogos infantis; pode dizer-se que os caçadores primitivos caçavam o chinelo, muito antes que o esquivo e ardiloso animal fosse duplicado e usado como despojo peludo nos pés do caçador. Pode dizer-se que nenhum lenço tinha sido usado para explodir o nariz, como no nosso tempo degenerado, antes de ter sido usado durante séculos para tapar os olhos, como no mistério hierárquico da cabra-cega2.

É verdade, que eu não posso estabelecer aqui em detalhe quaisquer provas reais dessas origens pré-históricas, mas eu nunca ouvi falar de alguém se preocupar com provas históricas em conexão com origens pré-históricas. Há tanta evidência para a teoria do travesseiro primitivo do meu tio favorito, como há para a conta detalhada do horrível Homem Velho do Sr. HG Wells, que governou pelo terror mais de vinte ou trinta homens mais jovens, que o poderiam ter puxado para fora da caverna pela sua orelha simiesca. Existe tanta prova científica como há para o romance moderno e altamente mórbido do Dr. Freud sobre uma raça inteira de pervertidos sexuais que fazem do parricídio um serviço religioso; ou na fiabilidade dos dados que Mr. Gerald Heard apresenta no seu filme sentimental sobre antropóides arbóreos que beijam as pedras que atiram aos leões.

Ninguém espera qualquer evidência histórica para coisas deste tipo, porque eles são pré-históricos, e ninguém sonha sequer encontrá-los em factos científicos. São simplesmente Ciência. Eu não vejo por que o meu tio favorito e eu não somos Ciência também. Eu não vejo por que não devemos simplesmente construir, elaborar, fora do limite da nossa própria cabeça; coisas que não podem ser contestadas, assim como não podem ser provadas. A única diferença é que o meu tio e eu, especialmente quando partimos com uma intenção deliberada de falar sobre o Natal, não conseguimos compreender essa aversão curiosa da espécie humana, que agora é considerada essencial para qualquer história escrita para humanistas. O Dr. Freud (como é talvez natural depois de um pesado dia de entrevistas psicopatas) parece ter adquirido uma considerável aversão ao ser humano. Então, quando ele constrói a história de como as primeiras instituições afloram de memórias completamente esquecidas, ele constrói uma história da família o mais repulsiva possível, como qualquer outro romancista moderno. Mas o meu tio e eu (especialmente no Natal) aparentamos um estado de espírito mais leve e amistoso e, como não há crenças ou dogmas rígidos para restringir qualquer pessoa de qualquer coisa, temos tanto direito a imaginar coisas alegres como ele tem de imaginar as sombrias. E pedimos que se proclame, com a mesma autoridade, que tudo começou com uma luta de almofadas celestial de querubins, ou que o mundo inteiro foi feito inteiramente para os jogos das crianças. As duas ou três verdades, de que a hipótese do meu tio é, pelo menos simbólica ou sugestiva, podem ser devidamente assim explanadas:

Primeiro, deve ser sempre lembrado que há realmente um mistério, e algo parecido com um mistério religioso, na origem de muitas coisas que, desde então, se tornaram (muito justamente) práticas e (muito erradamente) prosaicas. Se o meu tio num momento festivo declarasse que os fogos-de- artifício são anteriores aos incêndios, e foram usados ​​para abrasar a escuridão da noite com iluminações cerimoniais, antes mesmo de se ter reparado que poderiam cozinhar a nossa comida ou aquecer as nossas mãos, ele poderia não estar a falar com uma precisão pedante, mas ele não estaria longe de uma verdade histórica considerável. Há muitos indícios estranhos no ritual de lavrar ou cuidar de animais que precederam o lado prático.

Em segundo lugar, deve lembrar-se que esses rituais, incluindo o Natal, têm sido em geral preservados pela populaça, pois a populaça é na verdade bem mais tradicional do que a aristocracia. Eles foram preservados por pessoas pobres, embora por pessoas pobres que possuíam alguma pequena propriedade, em suma, sobretudo pelas pessoas do campo.

Assim, se o meu tio, usando mais uma vez da ironia, sugerisse que a meia do Natal recheada de presentes e amarrada à cabeceira da cama, fosse uma coisa muito mais antiga e tradicional do que as meias humanas vulgares rebaixadas à condição de farda das pernas, eu deveria tranquilizá-lo, assegurando-lhe que eu percebi a sua tese, embora não a possa aceitar em sentido literal.

Contudo é interessante lembrar que há um outro provérbio, ou verdade tradicional, sobre meias em ligação com camponeses. Tem sido muitas vezes dito que o camponês colocou a sua pequena propriedade na meia
3, guardou o seu tesouro, o seu escasso ouro, na sua
meia, de modo que se possa defender e evitar ladrões e banqueiros. E o camponês foi instruído sobre o assunto por nada menos que nove mil novecentos e noventa e nove comentadores de economia política e académicos profissionais de economia e alta finança. Foi-lhe repetidamente explicado que as moedas de metal não se multiplicam como as larvas se guardadas numa meia, que guinéus não têm famílias pequenas de guinéus como têm os porquinhos da Índia (cobaias)4;que uma meia não é um ninho em
que um soberano5 possa depositar meios-soberanos como um pássaro põe ovos, ou,
em linguagem mais erudita, mas menos sensata, que o seu dinheiro não lhe dava qualquer rendimento. De maneira que o único modo de fazer com o dinheiro aquilo que o dinheiro não pode fazer, e o único verdadeiro esquema científico para provar que há um guinéu e meio quando há apenas um, é colocá-lo num banco. Um banco, como os nove mil professores de economia explicaram ao ingénuo e estupefacto camponês, nunca pode deixar de pagar juros. Uma meia pode gastar-se ou ficar rota, os ladrões podem arrombar a casa e roubar, mas é manifestamente impossível os banqueiros roubarem, e é mesmo uma violação das leis da natureza os bancos serem assaltados e, pior ainda, desaparecerem por completo, num tão ativo e movimentado mercado de especulação. Como os bancos não podem concebivelmente falhar, argumentaram os professores, você será obviamente um homem mais rico com o dinheiro de outrem, que por algum modo, de algum lugar, misteriosamente, será adicionado à sua própria conta, se o tirar da meia e o colocar no banco. O camponês ainda estava atordoado, mas estava estranhamente teimoso. Desde então, a situação foi modificou-se de vários modos, e uma boa parte dos professores desejariam ter imitado o camponês.

1Samitus ou samito é um tecido de seda ou de veludo

2O jogo da cabra-cega parece provir da China Antiga, dinastias Zhou ou Han

3Chesterton serve-se do trocadilho meia/stocking com investir no mercado de capitais/stocking ou stock Exchange. Em português, investiu o seu pé de meia na sua propriedade.

4Chesterton faz trocadilho entre guinéu (guinea), primeira moeda de ouro britânica cunhada à máquina e que valia uma
 libra e cinco pence, e porquinho da Índia (guinea pig). O porquinho da Índia deve o seu nome ao facto de provir das Índias Ocidentais (América Central) e custar um guinéu. O guinéu, hoje fora de circulação, era de ouro e deve o seu nome ao facto da maior parte do ouro no século XVII provir da Guiné.

5Soberano é a designação da libra em ouro de 22 quilates, com 7,937 gramas e 91,67% de pureza.