Christmas and the First Games -
O Natal e os Primeiros Jogos
G. K. Chesterton, 1934
Tradução de Anália Carmo e António Campos
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"Espero
sinceramente que todas as crianças venham a estragar este livro pintando
as ilustrações. Eu queria fazer isso, mas os editores não me deixaram. Mas usem cores fortes, lindas,
maravilhosas, porque os meus sentimentos são assim. "
"Na
sua última viagem, ele parecia à beira do sucesso e tinha
ficado na proa recitando um poema
maior de sua própria composição para um ténue promontório azul no qual ele reconheceu
um dos cabos da Groenlândia.
Mas é inútil negar
que o sentimento geral foi
de alguma forma traído, quando se
descobriu que era o Cabo da Boa Esperança. Resumindo, o almirante foi um dos que mantêm
o mundo jovem. "
Às vezes tenho sido assombrado com
uma história vaga sobre um tio
selvagem e fantástico, o inimigo dos pais e causa da revolução em creches, que passou a pregar uma determinada teoria; quero dizer a teoria
de que todos os objetos que as
crianças usam no Natal para o que
chamamos de fins desregrados
ou ilegítimos, foram originalmente
criadas para esses fins, e não
para fins domésticos, monotonia
que agora servem. Por exemplo, vamos supor que a história começa com uma luta de travesseiros
numa creche à noite, e os meninos esbofeteando-se e batendo uns aos outros com esses tacos brancos e disformes.
O
tio, que era um professor
de imenso conhecimento e ainda
maior imaginação e capacidade inventiva, tornar-se-ia impopular
entre os pais e popular entre as
crianças, ao dizer que a almofada, em arte pré-histórica, foi obviamente idealizada para ser um taco; que o simulacro de luta na creche à noite
é na verdade mais antiga e tem
mais tradição do que toda a
instituição de camas ou roupas de
cama; em que numa manhã inocente
do mundo, um querubim guerreou com outro com
esse tipo de nuvens, possivelmente feitas
de samito1 branco, místico,
maravilhoso, e recheado com penas de asas de anjos, e que foi só mais tarde, quando o enfado e o tédio caíram sobre o mundo e os
jovens deuses se cansaram dos
seus desportos divinos, que eles
adormeceram com a cabeça sobre as
suas armas, e foi assim, que por
um deslocamento gradual de todo o propósito original do travesseiro, ele veio a
ser reconhecido como tendo o seu
devido lugar numa cama.
É óbvio que qualquer uma destas lendas poderia ser iniciada com facilidade, graça e aceitação geral. Deve salientar-se, para obter a aprovação de meninos traquinas,
que catapultas são
realmente mais antigas e mais majestosas
do que janelas. Janelas eram meros alvos para as catapultas,
tão claras e frágeis que os arqueiros antigos
poderiam ser recompensados com o partir
e cintilar do cristal. Foi apenas
após o sacerdócio opressivo do Médio Paleolítico que foi
suprimida brutalmente a Cultura da Catapulta, e as pessoas vieram a utilizar os agora inúteis alvos de vidro
para fins de luz ou ventilação. Do mesmo modo, a manteiga foi originalmente usada exclusivamente para
fazer escorregar pais e
encarregados de educação e foi só graças a um acidente tardio na vida de algum cidadão proeminente,
agora prostrado, que
ao lamber o chão, originou a
descoberta das suas qualidades comestíveis.
Este princípio subversivo pode
ser aplicado a quase todos os jogos infantis; pode dizer-se que os caçadores primitivos caçavam o chinelo, muito antes que o esquivo e ardiloso animal fosse duplicado e usado como despojo peludo nos
pés do caçador. Pode
dizer-se que nenhum lenço tinha
sido usado para explodir o nariz,
como no nosso tempo degenerado, antes de ter sido usado durante séculos para
tapar os olhos, como no mistério hierárquico da cabra-cega2.
É verdade, que eu não posso estabelecer aqui em detalhe quaisquer provas reais dessas origens pré-históricas, mas eu nunca ouvi falar de
alguém se preocupar com provas históricas em conexão
com origens pré-históricas. Há tanta evidência para a teoria do travesseiro
primitivo do meu tio favorito, como há para a conta detalhada do horrível Homem Velho do Sr. HG Wells, que governou pelo
terror mais de vinte ou trinta
homens mais jovens, que o poderiam
ter puxado para fora da caverna pela sua orelha simiesca.
Existe tanta prova científica como há
para o romance moderno e altamente mórbido do Dr.
Freud sobre uma raça inteira de pervertidos sexuais que fazem do parricídio um serviço religioso; ou na fiabilidade dos dados que Mr. Gerald Heard apresenta no seu
filme sentimental sobre antropóides arbóreos que
beijam as pedras que atiram
aos leões.
Ninguém espera qualquer evidência histórica para coisas deste tipo, porque eles são pré-históricos, e
ninguém sonha sequer encontrá-los
em factos científicos. São
simplesmente Ciência. Eu não vejo por que o meu tio favorito e eu não somos Ciência também. Eu não
vejo por que não devemos simplesmente
construir, elaborar, fora do limite da
nossa própria cabeça; coisas que não
podem ser contestadas, assim como não podem ser provadas. A única diferença é que o meu tio e eu, especialmente quando partimos
com uma intenção deliberada de falar sobre o Natal, não conseguimos compreender essa aversão
curiosa da espécie humana, que agora é
considerada essencial para qualquer história escrita para humanistas.
O Dr. Freud (como
é talvez natural depois de um
pesado dia de entrevistas psicopatas) parece ter adquirido uma
considerável aversão ao ser
humano. Então, quando ele constrói
a história de como as primeiras instituições
afloram de memórias completamente esquecidas, ele
constrói uma história da família o mais
repulsiva possível, como qualquer outro romancista moderno.
Mas o meu tio e eu (especialmente no Natal) aparentamos um estado de espírito mais leve e amistoso e, como
não há crenças ou dogmas rígidos para restringir qualquer pessoa de qualquer coisa,
temos tanto direito a imaginar coisas
alegres como ele tem
de imaginar as sombrias. E pedimos que se
proclame, com a mesma autoridade, que tudo começou com uma luta de almofadas celestial de querubins, ou que o mundo inteiro foi feito inteiramente
para os jogos das crianças. As duas ou
três verdades, de que a hipótese
do meu tio é, pelo menos simbólica ou sugestiva, podem ser devidamente assim explanadas:
Primeiro, deve ser sempre lembrado que há
realmente um mistério, e algo parecido
com um mistério religioso, na origem de muitas coisas que, desde então, se tornaram
(muito justamente) práticas e (muito
erradamente) prosaicas. Se o meu tio num momento festivo declarasse que os fogos-de- artifício são anteriores aos incêndios, e foram usados para abrasar a escuridão da noite com iluminações cerimoniais, antes mesmo de se ter reparado que poderiam
cozinhar a nossa comida ou aquecer
as nossas mãos, ele poderia não estar a falar com uma precisão
pedante, mas ele não estaria longe de uma verdade histórica considerável. Há muitos indícios estranhos no ritual
de lavrar ou cuidar de animais que precederam o lado prático.
Em segundo lugar, deve lembrar-se que esses rituais, incluindo o Natal, têm sido em geral preservados pela
populaça, pois a populaça é na verdade
bem mais tradicional do que a
aristocracia. Eles foram
preservados por pessoas pobres, embora por pessoas pobres que possuíam alguma pequena propriedade, em suma, sobretudo pelas pessoas do campo.
Assim, se o meu tio, usando mais uma vez da ironia,
sugerisse que a meia do Natal recheada de presentes e amarrada à cabeceira da
cama, fosse uma coisa muito mais antiga e tradicional do que as meias humanas vulgares
rebaixadas à condição de farda das pernas, eu deveria tranquilizá-lo, assegurando-lhe
que eu percebi a sua tese, embora não a possa aceitar em sentido literal.
Contudo é interessante lembrar que há um outro provérbio, ou verdade tradicional, sobre meias em ligação com camponeses. Tem sido muitas vezes dito que o camponês colocou a sua pequena propriedade na meia3, guardou o seu tesouro, o seu escasso ouro, na sua
Contudo é interessante lembrar que há um outro provérbio, ou verdade tradicional, sobre meias em ligação com camponeses. Tem sido muitas vezes dito que o camponês colocou a sua pequena propriedade na meia3, guardou o seu tesouro, o seu escasso ouro, na sua
meia, de modo que se possa defender e evitar ladrões e banqueiros. E o camponês foi instruído sobre o
assunto por nada menos que nove mil novecentos e noventa e nove comentadores de
economia política e académicos profissionais de economia e alta finança.
Foi-lhe repetidamente explicado que as moedas de metal não se multiplicam como
as larvas se guardadas numa meia, que guinéus não têm famílias pequenas de
guinéus como têm os porquinhos da Índia (cobaias)4;que
uma meia não é um ninho em
que um soberano5 possa depositar meios-soberanos como um pássaro
põe ovos, ou,
em linguagem mais erudita, mas menos sensata, que o seu dinheiro
não lhe dava qualquer rendimento. De maneira que o único modo de fazer com o
dinheiro aquilo que o dinheiro não pode fazer, e o único verdadeiro esquema
científico para provar que há um guinéu e meio quando há apenas um, é colocá-lo
num banco. Um banco, como os nove mil professores de economia explicaram ao
ingénuo e estupefacto camponês, nunca pode deixar de pagar juros. Uma meia pode
gastar-se ou ficar rota, os ladrões podem arrombar a casa e roubar, mas é
manifestamente impossível os banqueiros roubarem, e é mesmo uma violação das
leis da natureza os bancos serem assaltados e, pior ainda, desaparecerem por
completo, num tão ativo e movimentado mercado de especulação. Como os bancos
não podem concebivelmente falhar, argumentaram os professores, você será
obviamente um homem mais rico com o dinheiro de outrem, que por algum modo, de
algum lugar, misteriosamente, será adicionado à sua própria conta, se o tirar
da meia e o colocar no banco. O camponês ainda estava atordoado, mas estava
estranhamente teimoso. Desde então, a situação foi modificou-se de vários modos,
e uma boa parte dos professores desejariam ter imitado o camponês.
1Samitus ou samito é um tecido de seda ou de veludo
2O jogo da cabra-cega parece provir da China Antiga,
dinastias Zhou ou Han
3Chesterton serve-se do trocadilho meia/stocking com
investir no mercado de capitais/stocking ou stock Exchange. Em português,
investiu o seu pé de meia na sua propriedade.
4Chesterton faz trocadilho entre guinéu (guinea),
primeira moeda de ouro britânica cunhada à máquina e que valia uma
libra e
cinco pence, e porquinho da Índia (guinea pig). O porquinho da Índia deve o seu
nome ao facto de provir das Índias Ocidentais (América Central) e custar um
guinéu. O guinéu, hoje fora de circulação, era de ouro e deve o seu nome ao
facto da maior parte do ouro no século XVII provir da Guiné.
5Soberano é a designação da libra em ouro de 22
quilates, com 7,937 gramas e 91,67% de pureza.
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