sábado, 22 de dezembro de 2012

O Natal e os Primeiros Jogos






                Christmas and the First Games - O Natal e os Primeiros Jogos

                                                                             G. K. Chesterton, 1934

                                                                       Tradução de Anália Carmo e António Campos

--------------------------------------------------------------------------------

"Espero sinceramente que todas as crianças venham a estragar este livro pintando as ilustrações. Eu queria fazer isso, mas os editores não me deixaram. Mas usem  cores  fortes, lindas, maravilhosas, porque os meus sentimentos são assim. "


"Na sua última viagem, ele parecia à beira do sucesso e tinha ficado na proa recitando um poema maior de sua própria composição para um ténue promontório azul no qual ele reconheceu um dos cabos da Groenlândia. Mas é inútil negar que o sentimento geral foi de alguma forma traído, quando se descobriu que era o Cabo da Boa Esperança. Resumindo, o almirante foi um dos que mantêm o mundo jovem. "




Às vezes tenho sido assombrado com uma história vaga sobre um tio selvagem e fantástico, o inimigo dos pais e causa da revolução em creches, que passou a pregar uma determinada teoria; quero dizer a teoria de que todos os objetos que as crianças usam no Natal para o que chamamos de fins desregrados ou ilegítimos, foram originalmente criadas para esses fins, e não para fins domésticos, monotonia que agora servem. Por exemplo, vamos supor que a história começa com uma luta de travesseiros numa creche à noite, e os meninos esbofeteando-se e batendo uns aos outros com esses tacos brancos e disformes.

O tio, que era um professor de imenso conhecimento e ainda maior imaginação e capacidade inventiva, tornar-se-ia impopular entre os pais e popular entre as crianças, ao dizer que a almofada, em arte pré-histórica, foi obviamente  idealizada para ser um taco; que o simulacro de luta na creche à noite é na verdade mais antiga e tem mais tradição do que toda a instituição de camas ou roupas de cama; em que numa manhã inocente do mundo, um querubim guerreou com outro com esse tipo de nuvens, possivelmente feitas de samito1 branco, místico, maravilhoso, e recheado com penas de asas de anjos, e que foi só mais tarde, quando o enfado e o tédio caíram sobre o mundo e os jovens deuses se cansaram dos seus desportos divinos, que eles adormeceram com a cabeça sobre as suas armas, e foi assim, que por um deslocamento gradual de todo o propósito original do travesseiro, ele veio a ser reconhecido como tendo o seu devido lugar numa cama.

É óbvio que qualquer uma destas lendas poderia ser iniciada com facilidade, graça e aceitação geral. Deve salientar-se, para obter a aprovação de meninos traquinas, que catapultas são realmente mais antigas e mais majestosas do que janelas. Janelas eram meros alvos para as catapultas, tão claras e frágeis que os arqueiros antigos poderiam ser recompensados com o partir e cintilar do cristal. Foi apenas após o sacerdócio opressivo do Médio Paleolítico que foi suprimida brutalmente a Cultura da Catapulta, e as pessoas vieram a utilizar os agora inúteis alvos de vidro para fins de luz ou ventilação. Do mesmo modo, a manteiga foi originalmente usada exclusivamente para fazer escorregar pais e encarregados de educação e foi só graças a um acidente tardio na vida de algum cidadão proeminente, agora prostrado, que ao lamber o chão, originou a descoberta das suas qualidades comestíveis.

Este princípio subversivo pode ser aplicado a quase todos os jogos infantis; pode dizer-se que os caçadores primitivos caçavam o chinelo, muito antes que o esquivo e ardiloso animal fosse duplicado e usado como despojo peludo nos pés do caçador. Pode dizer-se que nenhum lenço tinha sido usado para explodir o nariz, como no nosso tempo degenerado, antes de ter sido usado durante séculos para tapar os olhos, como no mistério hierárquico da cabra-cega2.

É verdade, que eu não posso estabelecer aqui em detalhe quaisquer provas reais dessas origens pré-históricas, mas eu nunca ouvi falar de alguém se preocupar com provas históricas em conexão com origens pré-históricas. Há tanta evidência para a teoria do travesseiro primitivo do meu tio favorito, como há para a conta detalhada do horrível Homem Velho do Sr. HG Wells, que governou pelo terror mais de vinte ou trinta homens mais jovens, que o poderiam ter puxado para fora da caverna pela sua orelha simiesca. Existe tanta prova científica como há para o romance moderno e altamente mórbido do Dr. Freud sobre uma raça inteira de pervertidos sexuais que fazem do parricídio um serviço religioso; ou na fiabilidade dos dados que Mr. Gerald Heard apresenta no seu filme sentimental sobre antropóides arbóreos que beijam as pedras que atiram aos leões.

Ninguém espera qualquer evidência histórica para coisas deste tipo, porque eles são pré-históricos, e ninguém sonha sequer encontrá-los em factos científicos. São simplesmente Ciência. Eu não vejo por que o meu tio favorito e eu não somos Ciência também. Eu não vejo por que não devemos simplesmente construir, elaborar, fora do limite da nossa própria cabeça; coisas que não podem ser contestadas, assim como não podem ser provadas. A única diferença é que o meu tio e eu, especialmente quando partimos com uma intenção deliberada de falar sobre o Natal, não conseguimos compreender essa aversão curiosa da espécie humana, que agora é considerada essencial para qualquer história escrita para humanistas. O Dr. Freud (como é talvez natural depois de um pesado dia de entrevistas psicopatas) parece ter adquirido uma considerável aversão ao ser humano. Então, quando ele constrói a história de como as primeiras instituições afloram de memórias completamente esquecidas, ele constrói uma história da família o mais repulsiva possível, como qualquer outro romancista moderno. Mas o meu tio e eu (especialmente no Natal) aparentamos um estado de espírito mais leve e amistoso e, como não há crenças ou dogmas rígidos para restringir qualquer pessoa de qualquer coisa, temos tanto direito a imaginar coisas alegres como ele tem de imaginar as sombrias. E pedimos que se proclame, com a mesma autoridade, que tudo começou com uma luta de almofadas celestial de querubins, ou que o mundo inteiro foi feito inteiramente para os jogos das crianças. As duas ou três verdades, de que a hipótese do meu tio é, pelo menos simbólica ou sugestiva, podem ser devidamente assim explanadas:

Primeiro, deve ser sempre lembrado que há realmente um mistério, e algo parecido com um mistério religioso, na origem de muitas coisas que, desde então, se tornaram (muito justamente) práticas e (muito erradamente) prosaicas. Se o meu tio num momento festivo declarasse que os fogos-de- artifício são anteriores aos incêndios, e foram usados ​​para abrasar a escuridão da noite com iluminações cerimoniais, antes mesmo de se ter reparado que poderiam cozinhar a nossa comida ou aquecer as nossas mãos, ele poderia não estar a falar com uma precisão pedante, mas ele não estaria longe de uma verdade histórica considerável. Há muitos indícios estranhos no ritual de lavrar ou cuidar de animais que precederam o lado prático.

Em segundo lugar, deve lembrar-se que esses rituais, incluindo o Natal, têm sido em geral preservados pela populaça, pois a populaça é na verdade bem mais tradicional do que a aristocracia. Eles foram preservados por pessoas pobres, embora por pessoas pobres que possuíam alguma pequena propriedade, em suma, sobretudo pelas pessoas do campo.

Assim, se o meu tio, usando mais uma vez da ironia, sugerisse que a meia do Natal recheada de presentes e amarrada à cabeceira da cama, fosse uma coisa muito mais antiga e tradicional do que as meias humanas vulgares rebaixadas à condição de farda das pernas, eu deveria tranquilizá-lo, assegurando-lhe que eu percebi a sua tese, embora não a possa aceitar em sentido literal.

Contudo é interessante lembrar que há um outro provérbio, ou verdade tradicional, sobre meias em ligação com camponeses. Tem sido muitas vezes dito que o camponês colocou a sua pequena propriedade na meia
3, guardou o seu tesouro, o seu escasso ouro, na sua
meia, de modo que se possa defender e evitar ladrões e banqueiros. E o camponês foi instruído sobre o assunto por nada menos que nove mil novecentos e noventa e nove comentadores de economia política e académicos profissionais de economia e alta finança. Foi-lhe repetidamente explicado que as moedas de metal não se multiplicam como as larvas se guardadas numa meia, que guinéus não têm famílias pequenas de guinéus como têm os porquinhos da Índia (cobaias)4;que uma meia não é um ninho em
que um soberano5 possa depositar meios-soberanos como um pássaro põe ovos, ou,
em linguagem mais erudita, mas menos sensata, que o seu dinheiro não lhe dava qualquer rendimento. De maneira que o único modo de fazer com o dinheiro aquilo que o dinheiro não pode fazer, e o único verdadeiro esquema científico para provar que há um guinéu e meio quando há apenas um, é colocá-lo num banco. Um banco, como os nove mil professores de economia explicaram ao ingénuo e estupefacto camponês, nunca pode deixar de pagar juros. Uma meia pode gastar-se ou ficar rota, os ladrões podem arrombar a casa e roubar, mas é manifestamente impossível os banqueiros roubarem, e é mesmo uma violação das leis da natureza os bancos serem assaltados e, pior ainda, desaparecerem por completo, num tão ativo e movimentado mercado de especulação. Como os bancos não podem concebivelmente falhar, argumentaram os professores, você será obviamente um homem mais rico com o dinheiro de outrem, que por algum modo, de algum lugar, misteriosamente, será adicionado à sua própria conta, se o tirar da meia e o colocar no banco. O camponês ainda estava atordoado, mas estava estranhamente teimoso. Desde então, a situação foi modificou-se de vários modos, e uma boa parte dos professores desejariam ter imitado o camponês.

1Samitus ou samito é um tecido de seda ou de veludo

2O jogo da cabra-cega parece provir da China Antiga, dinastias Zhou ou Han

3Chesterton serve-se do trocadilho meia/stocking com investir no mercado de capitais/stocking ou stock Exchange. Em português, investiu o seu pé de meia na sua propriedade.

4Chesterton faz trocadilho entre guinéu (guinea), primeira moeda de ouro britânica cunhada à máquina e que valia uma
 libra e cinco pence, e porquinho da Índia (guinea pig). O porquinho da Índia deve o seu nome ao facto de provir das Índias Ocidentais (América Central) e custar um guinéu. O guinéu, hoje fora de circulação, era de ouro e deve o seu nome ao facto da maior parte do ouro no século XVII provir da Guiné.

5Soberano é a designação da libra em ouro de 22 quilates, com 7,937 gramas e 91,67% de pureza.


Sem comentários:

Enviar um comentário