sábado, 17 de janeiro de 2015

Chesterton Para Principiantes – Ortodoxia Alta Dialéctica



O sentido original da filosofia é o amor à sabedoria. A filosofia tem não apenas sistema, mas uma
organização coerente. No entanto, se lhe faltar visão, i.e., penetração na vida humana concreta e no mistério do ser – o facto misterioso e fascinante de que existe algo que não é o nada – o filósofo falha o seu papel de ser uma grande alma.


É precisamente aqui que a filosofia cristã tem um vazio para preencher, um contrapeso que equilibre a balança no sentido da sanidade. Chesterton, ao nunca procurar ser sistemático porque não era um académico, nunca pretendeu ser um filósofo profissional, mas seduz-nos pelo seu pensamento, convidando-nos a segui-lo e a sistematizá-lo; dir-se-ia que construiu uma via em aberto.

Em contrapartida, ele sempre seguiu a distinção fundamental expressa por Platão entre o filosofar responsável e irresponsável. Filosofar irresponsavelmente é conduzir a busca pela sabedoria divorciada das exigências da experiência quotidiana, baseada apenas na mera abstracção, abandonando o sistema assim construído à condição de um puzzle, estático, não possuindo mais movimentos do que um peixe num aquário.1


Se as provas da existência de Deus se encontrarem na natureza e na experiência prática quotidiana, à medida que nos separamos delas por abstracção excessiva, adquirimos uma visão distanciada, fria e seca, dessas mesmas provas, reduzindo-as a um mero jogo conceptual ou retórico. Nós apenas podemos provar aquilo que está ausente, o que está presente deve ser revelado, não provado.

A Santa Igreja ensina que Deus, sendo o princípio e o fim de todas as coisas, pode ser conhecido pela luz natural da razão humana, como é afirmado em Rom 1:20, “As suas perfeições invisíveis, tanto o Seu eterno poder quanto a Sua divindade, tornam-se visíveis quando as suas obras são conhecidas pela inteligência”.







FILOSOFIA E TEOLOGIA


Na medida em que um crente baseie as suas afirmações apenas na Revelação permanece como crente; mas quando o crente defende as suas afirmações com base na razão, torna-se um filósofo de uma filosofia cristã: a ortodoxia. Esta foi a posição de Chesterton que tratou de colocar sempre as suas afirmações no território da razão e para fora do terreno de uma Igreja a que, até 1922, não pertencia. Como ele dizia “Eu estou no adro e indico a quem passa o caminho para dentro da Igreja”.


 

A filosofia tem que levar em conta que nenhum homem pode pensar sozinho, porque isso o afasta de um princípio fundamental da vida: nenhum homem é uma ilha. Portanto, a comunhão dos santos é não só um conceito teológico como inteiramente filosófico.


Uma outra ideia de Chesterton, a democracia dos mortos, é não apenas teológica, como inteiramente filosófica, porque inteiramente humana. Nas palavras de T. S. Eliot, a comunicação dos mortos é uma projecção flamejante para além da linguagem dos vivos

Quem hoje poderá afirmar que a sua imaginação, imaginário ou ideário, as suas imagens da vida nada têm que ver com alguns pensadores mortos? Aristóteles, Platão, Heráclito, São Tomás, Kant, Marx, Freud, Wittgenstein, Foucault, etc., continuam a determinar o pensamento ou os pensamentos modernos. O presente carrega sempre a lição do passado. O crente é um homem precedido e tem consciência disso, porque toda a época tem a sua miopia e a sua mancha cega. É o crédulo que, sendo um homem precedido, não admite a precedência.


A história não é a noite escura em que todos os gatos são pardos nem é um elevador gigante que conduz os homens à época em que por acaso nos encontramos. Estes dois erros de Hegel são claramente apontados por Chesterton.

A tradição é exactamente a arma mais poderosa que esta geração possui para relativizar os relativistas. O dogma relativista bem expresso de dentro, por G.B. Shaw - “a única regra de ouro é que não existem regras de ouro” - não é um paradoxo, é uma contradição. Todo o relativista é um dogmático.2


A civilização cristã europeia foi construída com base numa imagem, numa pessoa, numa face, Jesus Cristo. Os princípios da dignidade humana fundam-se exactamente neste princípio imagiológico: cada homem é uma máscara de Deus.

Deste conceito resulta uma enorme dissonância com Hegel: não só o estadista é um mero homem, sujeito a todos os erros e limitações dos outros homens, conceito a que Chesterton chama a Doutrina da Queda (o que o leva a ter aversão por todas as formas de despotismo e a defender a democracia), como as críticas do seu mordomo são inteiramente válidas, porque o seu mordomo vive no mundo dos homens e não no mundo artificial da política e dos gabinetes (e não é legítimo afirmar, como Hegel, que as críticas do seu mordomo, tal como as dos professores, ao carácter das figuras históricas, parte apenas da inveja ou da mesquinhez).





O MÉTODO


Qual a atitude correcta para se apreender a realidade? A resposta é esquecê-la e voltar a olhá-la com os olhos de uma criança. “Se não fores como crianças não entrareis no Reino dos Céus!”

A percepção vence o argumento. Assim, na descrição da realidade, a ilustração é superior à argumentação, porque, como dizia Dostoiévski pela boca de Raskolnikov, a um argumento sempre se pode contrapor outro argumento, mas nada se pode opor à evidência, ao absurdo, à iluminação ou “insight”.


Chesterton, atendendo à sua hermenêutica (interpretação) da realidade, seguiu uma epistemologia (teoria, método e validade do conhecimento): descreveu o seu estilo como a descrição de coisas familiares a partir de ângulos insuspeitos, acendendo novas luzes na imaginação, por forma a que as possamos ver com a inocência da surpresa.

O seu método consistia em fazer ver, não em demonstrar logicamente, e é por isso que sentimos um estremecer, “um acordar”, quando o lemos. Ele acreditava que o melhor que podia fazer pelo seu semelhante era pô-lo a pensar de tal modo que ele conseguisse ver da mesma maneira que Chesterton via, era portanto “mostrar”, não “demonstrar”, “porque o mais forte dos desejos de conhecimento é o desejo de saber qual o propósito do universo e qual o nosso propósito.”


A sua preocupação fundamental era relacionar qualquer verdade com o sentido da vida humana e, ao fazê-lo, estava a pensar filosoficamente, no sentido em que estava a encontrar o sentido de ser humano. Chesterton preocupava-se com as ideias porque “não podes virar uma coisa do avesso se não sabes qual é o lado direito” e porque para agir, primeiro tem que se pensar no que se vai fazer e como se vai fazer, de outro modo pode sair asneira.

Chesterton não foi um filósofo que tenha feito uma contribuição original para a história do pensamento humano sobre a realidade do real, no sentido em que o foram Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Kant, Hegel ou Kirkegaard. Mas ele fez pelo menos duas grandes contribuições que continuam de plena importância na actualidade:


- Ele foi insuperável no modo como satirizou os pontos fracos da filosofia da sua época.


- Embora a sua filosofia não fosse original, o modo de a expressar era inteiramente original.


Ele esteve sempre interessado nas ideias mais importantes, nas coisas últimas; ele não era apenas um amante da sabedoria, ele possuía uma sabedoria intuitiva. Ele tinha um pensamento que Hegel caracterizou como “especulativo”, i.e., pensava num assunto no sentido em que entrava nele, o via de dentro e o virava do avesso para detectar incongruências. Chesterton nunca utilizava a razão como sinónimo de lógica, uma vez que via o que “ligava” as coisas em vez de provar essa ligação. Sobretudo porque utilizava o senso comum, a chamada “convergência de probabilidades” (de J. H. Newman). A “certeza” de Chesterton assenta naquilo de que nenhum homem são duvida.


E a concordância com esta atitude vem de um lado insuspeito, Bertrand Russell. Em Os Problemas da Filosofia, Bertrand Russell discute a realidade; afirma que realmente existe um mundo exterior. Por outras palavras, que existe uma realidade para além dos nossos sentidos e dos nossos pensamentos. Após concluir que tal realidade existe, Russell escreve:

“O argumento que nos trouxe a esta conclusão é sem dúvida menos consistente do que desejaríamos, mas isso é uma característica de muitos argumentos filosóficos; e, portanto, vale a pena determo-nos um momento no seu carácter geral e na sua validade. Todo o conhecimento tem que ser construído sobre as nossas convicções instintivas, algumas mais fortes do que outras, enquanto que outras foram, por hábito e associação, enredadas noutras crenças, não realmente instintivas, mas no que é falsamente suposto pertencer ao que é aceite instintivamente.

A filosofia deve mostrar-nos a hierarquia dos nossos credos instintivos, começando por aqueles em que acreditamos mais firmemente, e mantendo-os tão livres de misturas irrelevantes quanto possível. Deve ser evidente que na sua formulação final as nossas crenças instintivas não se contradigam; antes formem um Sistema harmonioso. Só se pode recusar uma crença instintiva na medida em que ela colida com outras; portanto se elas se harmonizarem entre si, todo o sistema é confiável.”


Com a ressalva de ser, naturalmente em Russell, um argumento que exclui a fé na transcendência, com ele lá se vai Descartes e a dúvida metódica, Kant e o idealismo alemão…


Chesterton não tinha o raciocínio ordenado, progressivo e sistemático de um académico como Lewis. Isso é certo. Mas Foi Chesterton quem levou Lewis até ao argumento ontológico de Jesus Cristo. O Jesus Cristo resumido por Lewis na tríade, mentiroso/louco/Deus, é indicado por Chesterton em três páginas do capítulo A História Mais Estranha do Mundo do livro O Homem Eterno. Chesterton viu e levou lá Lewis. Lewis compreendeu, sistematizou e explicou-nos para que víssemos claramente.3





A Ética e a Lei


O episódio do diabolista trouxe a Chesterton a necessidade imperiosa de traçar limites, porque de outro modo não existe modo de delimitar e julgar a acção do mal. Esses limites são essenciais à existência da liberdade, não a anulando mas libertando-a. 

Ao definir limites, o homem é absolutamente livre dentro e fora desses limites, sabendo no entanto que ao ultrapassar os limites, terá que pagar o preço da responsabilidade. Este preço pode ser de natureza moral, religiosa, legal ou social. Mas sem estes limites à liberdade individual, não existe modo de respeitar a liberdade de todos. Em O Poeta e os Lunáticos, G. Gale interroga-se sobre o que é a liberdade, concluindo que ela é a capacidade que alguém pode ter de ser ele próprio. A liberdade consiste na auto-limitação. Encontramo-nos limitados do meio exterior físico pela nossa pele e do meio existencial pela nossa mente.


Esta necessidade de traçar uma linha, define a individualidade, a propriedade e a liberdade. Mas ela é também a solução para um outro problema: o problema do julgamento. Nenhum homem está em posição de julgar, mas o julgamento é absolutamente necessário à vida gregária e à organização social. Portanto, existem mais garantias de existência de um julgamento justo se ele for guiado por leis, ou seja, por limites, que levam em consideração valores morais, como o inestimável valor da pessoa humana, da liberdade e da responsabilidade, que são sinónimos de dignidade humana – ninguém se lembra de exigir um comportamento responsável a um animal.


“Quando se destroem todos os pesos e medidas, se nega a existência de tabelas ou normas, se destroem as tabelas de cálculo ou os instrumentos de medida que a sabedoria do homem fabricou; sim, é difícil dizer o que é o sexo normal e a perversão; o que é religiosidade e fanatismo. É especialmente difícil quando se começa a dizer: «A única regra é que não há regras».


Isto torna-se especialmente difícil quando se considera que todos os nossos antepassados eram uma corja de idiotas num deserto ululante de ignorância; que os seus ideais eram fetiches e dogmas fantasiosos. Isto torna-se penoso se se deixa sistematicamente de fora a possibilidade de que a humanidade tenha uma experiência de moralidade – sobretudo da má moralidade. Isto parece-me consistir em levar longe demais o princípio de que ninguém tem o direito de apontar qual é o caminho.”


“Ninguém tem o direito de falar de progresso sem antes definir o que é o bem.”









António Campos



1 Talvez seja por isso que Chesterton não obteve reconhecimento no meio literário. Até Harold Bloom - que editou uma colectânea sobre Chesterton - exclui Chesterton da sua classificação dos génios da literatura, muito provavelmente pela mesma razão que criticou T. S. Eliot: A sua opção pelo judaísmo gnóstico e cabalístico afastou-o da compreensão fundamental da sua própria religião revelada, sobretudo ao não aceitar que Deus possa coexistir com o livre arbítrio humano e o problema do mal.


2 É também o mote das sociedades secretas: tudo é relativo, excepto o facto de que tudo é relativo.


3 Chesterton não tinha um sistema demonstrativo que pudesse ensinar e convencer outros da sua validade. Nesse sentido está desligado da filosofia moderna. O seu método é mais ilustrativo, uma aufklarung, um novo aude sapere, ousa saber. Ele não impõe o seu sistema para fazer prova de algo; ele leva-nos lá e deixa-nos contemplar a realidade e retirar as nossas próprias conclusões.

Desse ponto de vista o seu método assemelha-se à dialética de Sócrates. A sua ironia não assume a forma de questionamento formal, mas de paradoxo. Ao expor contradições internas numa afirmação ou num conceito, ao fazê-lo ver de um outro prisma, ele obriga à reformulação – é uma espécie de maiêutica.

Ele mostra-nos uma convergência de probabilidades antes insuspeitas e a direcção certa.

Esse era também o modo que exercia na conversação, mesmo em casa com convidados. Referia sempre algo que alguém tinha previamente afirmado, incluindo a pessoa, e depois levava a conversa numa outra direcção sem expor a pessoa que referira, mas incluindo-a.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Chesterton Para Principiantes: Newman e o Sentido Ilativo




Para se compreender o sistema filosófico de Chesterton, a sua fenomenologia, a sua epistemologia, o seu argumento ontológico para a existência de Deus, é fundamental conhecer a hermenêutica de John Henry Newman (1801 - 1890).




- A CRIANÇA


Um dos mais importantes temas dos sermões de Newman foi a fé e a obediência a Deus. Newman chamou a atenção para a necessidade de uma atitude semelhante à de uma criança, de simplicidade e confiança, que lhe permite o acolhimento e a reverência perante os contos de fadas. Newman afirma que a mente de uma criança nos dá o tom do que deve ser a atitude em igreja: a criança distingue o bem do mal, mas não adopta a postura orgulhosa do livre-espírito. Ela tenta aprender com os outros, não se coloca na posição de ser ela a medida de todas as coisas, da verdade. Isso torna as crianças mais receptivas à fé, porque “Cristo assim o quis, que nós alcançássemos a verdade, não pela especulação engenhosa, pelo raciocínio ou investigação particular, mas pelo ensino.”


- A RAZÃO IMPLÍCITA


Newman opôs-se ao entendimento da razão defendida pelo iluminismo, uma noção minimalista de razão, que se coloca na posição de julgar toda a verdade exigindo sempre a evidência científica, contrapondo que a fé em Deus é possível sem uma evidência formal. De facto, Newman defende que muitas verdades são implícitas. Muitas vezes uma pessoa não consegue explicar o que ela sabe ser verdade, mas tal não diminui a veracidade das suas afirmações.

Um inglês pode nunca ter viajado até ao mar, mas está absolutamente certo que a Inglaterra é uma ilha. O que o conhecimento tem de implícito é geralmente a sua natureza mais forte. Newman não dava um valor absoluto à argumentação: “Muitos homens vivem e morrem por um dogma, mas ninguém se deixa tornar um mártir por uma afirmação…Ninguém morre pelas suas conjecturas: morre por realidades.”



Por vezes não conseguimos explicar bem porque razão suspeitamos da virtude de uma pessoa ou porque razão confiamos noutra que mal conhecemos. É um processo mental que passa de ponto para ponto por algum indício subtil, pela mera probabilidade, por uma associação de ideias, por se guiar por uma lei de experiência prévia, pelo testemunho de outros, pela impressão popular expressa em provérbios, por uma memória longínqua.

Como sublinhou Newman, trata-se de uma atitude muito semelhante à do alpinista que progride na sua ascensão por meio de uma mirada rápida, uma mão ágil, um pé firme, sentido mais do que sabendo ele próprio como trepa num penhasco vertical liso, mais pelo que adquiriu pela prática do que por qualquer regra isolada, não deixando rasto atrás de si e incapaz de ter jeito para ensinar a outros.


Pela peneira da razão implícita, o resultado da experiência pode dirigir-nos a conclusões. Por oposição a esta análise espontânea da experiência, a razão explícita é a análise de todo este movimento espontâneo de interpretação da experiência, por meio da cadeia de causalidade e da lógica convencional. É este tipo de análise que permite compreender o tipo de racionalidade presente na maioria dos julgamentos que fazemos na nossa vida diária: “Todo o homem possui uma razão mas nem todo o homem pode dar uma razão”.






- A CONVERGÊNCIA DE PROBABILIDADES


A convergência de probabilidades é um conceito que resulta da nossa experiência pessoal, empírica ou reflectida, e da comunicação de outros. Mas nós não aceitamos como válida a comunicação de qualquer um. Nós fazemos um juízo sobre as pessoas, baseados em muitas das suas características, do modo como usam a palavra, do modo como se comportam relativamente a outros. Nenhum item por si, nesta avaliação, é suficiente para podermos definir a pessoa ou como a avaliamos, mas é a convergência das várias impressões que temos sobre a pessoa que nos faz construir o quadro geral que formamos dela.



É esta fenomenologia que usamos sobre nós próprios, sobre os nossos amigos e os nossos familiares, sobre as pessoas que nos são apresentadas ou que entrevistamos, sobre o próprio mundo, que nos fazem retirar ilações sobre nós, sobre os outros e sobre Deus. 


Nós justificamos a adesão às certezas da vida não por inferência, mas pela razão implícita, mesmo que para tal não tenhamos provas irrefutáveis. Os exemplos que Newman dá são prolíficos: temos a certeza que o nosso “eu” não é o único ser existente; que existe um mundo externo; que existe um sistema constituído por partes e por um todo; que existe um universo regulado por leis; que o futuro é determinado pelo passado; que existem cidades chamadas Lisboa, Paris ou Londres, mesmo que nós nunca lá tenhamos estado; que Paris ou Londres devem estar hoje mais ou menos como estavam ontem quando lá estivemos, a menos que uma catástrofe tenha entretanto ocorrido. 

Sabemos que isto é verdade por uma convergência de motivos: o testemunho de outros, o nosso senso comum ou sensatez, o modo como sentimos que é o desenrolar natural das coisas, para que tenham consistência e congruência e sejam absolutamente distintas dos sonhos.


E formamos esta opinião por uma convergência de probabilidades.





Como dizia Chesterton, “um elefante ter uma tromba pode ser coincidência, mas todos os elefantes terem tromba é uma conspiração”. É evidente que são as opiniões que formamos sobre as coisas e as pessoas que conduzem às decisões mais importantes da nossa vida.


Trata-se de um processo muito semelhante ao utilizado ao analisar um acontecimento histórico ou a investigação de um homicídio. Obviamente que os acontecimentos históricos, tal como um crime determinado, não podem ser reproduzidos porque já ocorreram. Isto distingue-os dos fenómenos científicos que são reprodutíveis, porque a criação está em desenvolvimento, sempre a ocorrer repetidamente.

Então chegamos à explicação histórica e ao revelar dos meandros do crime, não com uma prova irrefutável, que seria voltar a presenciar o crime ou o acontecimento histórico, tantas vezes quantas o sistema no-lo exigisse, mas antes com base numa série de indícios indirectos: o local da batalha, o número de mortos, o benefício do vencedor, as mudanças políticas e geo-estratégicas, o testemunho pessoal, o cadáver, a arma do crime, o motivo e a oportunidade, etc. É a convergência e consistência destas provas indirectas que nos apontam a solução.


Newman dizia que relativamente ao problema da existência de Deus, deveríamos usar o mesmo tipo de processo com a mesma honestidade, porque ele é inteiramente racional. A relação entre este raciocínio multiforme e complexo, na análise no julgamento das coisas concretas da vida, e o silogismo lógico que lida com conceitos mais ou menos abstratos, assemelha-se à relação entre uma pintura ou fotografia e um mero esboço. 

A mente chega a uma conclusão inevitável por meio de premissas múltiplas apenas prováveis, por meio de objecções superadas, neutralizando teorias contrárias, por dificuldades progressivamente ultrapassadas, excepções que confirmam a regra, correlações antes negligenciadas numa verdade revelada, num processo lento e de fim incerto, que subitamente se ilumina e desemboca numa conclusão clara e inevitável. A esse processo que usamos para retirar essas ilações, desde a convergência de probabilidades até à conclusão, seja no que concerne à investigação histórica, à investigação criminal ou à ontologia, Newman chamou o sentido ilativo.






- O SENTIDO ILATIVO


Newman defendeu a racionalidade da “fé simples”. Chamou-lhe a faculdade ilativa ou senso implícito. Trata-se de um modo de raciocínio com uma dimensão inconsciente e implícita; vai das coisas concretas para a conclusão e não de proposições para proposições, como a inferência formal ou lógica.

Um homem alcança a certeza através deste sexto sentido, o sentido ilativo, “uma palavra cara para uma coisa comum”, a possibilidade de conhecer o desconhecido a partir das nossas experiências concretas: a beleza natural, as exigências da consciência (o sentido de culpa, as dores do remorso, a busca do perdão), a noção da contingência da vida, a paz transmitida por uma criança dormindo, a honra prestada a quem sacrificou a sua vida pelos outros, a beleza fascinante da Air in G String de J S Bach ou do Canon em D maior de Pachelbel, a beleza e angústia dos sonetos de Camões “Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades” ou “Alma Minha  Gentil que te Partiste”, ou, na verdade, de qualquer coisa bela criada, e chegar à conclusão de que tem que existir uma realidade transcendente subjacente a tudo, Aquele a quem chamamos ou conhecemos como Deus.


O homem alcança a certeza por meio desta capacidade de retirar ilações. Illatio em latim significa levar-nos a ou transportar-nos para uma conclusão mais larga e firme do que as premissas. É o mesmo processo de descobrir uma direcção na ausência de sol e de instrumentos, como o fazem os índios: não é algo fácil de explicar. Por exemplo, nos climas setentrionais, os ramos das árvores são mais longos no lado sul, o musgo está ausente no lado norte dos troncos das árvores...é um acumular de pequenas coisas que ao serem correlacionadas nos colocam na direcção certa. Como quem monta um puzzle.

Indicam-nos a direcção certa. Isto é o núcleo do sentido ilativo.

O silogismo, que usa a razão explícita ou inferência lógica, seria como um grosso cabo de cobre. O sentido ilativo que usa a razão implícita e reúne princípios, factos, testemunhos, experiências, registos, seria como uma cabo formado por múltiplos pequenos fios de cobre. O primeiro simboliza a demonstração matemática, o segundo a demonstração moral. Newman expressa bem a essência da mente inglesa: a ânsia pelo mundo platónico das ideias e das realidades invisíveis e a necessidade de factos precisos, gravados e verificados.



Um céptico pode argumentar que equivale a um salto de fé, mas não se trata de um salto porque o parecer favorável à fé tem uma dimensão cumulativa e de tensão interna; trata-se mais de crescer para uma convicção e não tanto de cair nela. A evidência da doutrina revelada baseia-se num agregar de probabilidades e não na argumentação hábil sobre cada uma delas. Newman usou o exemplo do polígono desenhado no círculo. À medida que o número de lados aumenta ele tende a parecer-se com o círculo. Nunca é o círculo mas a mente ignora a diferença e compreende-o como tal. Assim é, e só pode ser, o nosso conhecimento de Deus: não uma completude mas uma propedêutica.


Ora, a fé é um acto pessoal pelo qual uma pessoa apreende as verdades religiosas a partir dos testemunhos de outros. Um “espírito de criança” é a condição necessária para acreditar. Sem humildade é impossível acreditar em Deus, porque a pessoa define o seu próprio universo e fecha-se a qualquer realidade sobrenatural. O orgulho encerra uma pessoa numa esfera limitada de racionalidade; é a pedra de toque do mundo pós-kantiano.  É o "enfiar o universo dentro da cabeça", do lógico de Chesterton.

É necessário que o homem se deixe amar por Deus, aceitando com humildade a revelação de Deus, com a mesma atitude da criança que não supõe existir uma razão válida para que um adulto da sua confiança a engane ou lhe faça mal. O argumento moral para a existência de Deus, sumariamente descartado em Kant, reaparece em Newman. Swinburne afirmaria sobre a convergência de probabilidades: "se colocarmos dez baldes furados, uns dentro dos outros, teremos um contentor capaz de conter a água." Esse é o princípio físico da matéria.

Newman, ao regressar a Inglaterra após uma viagem em que esteve gravemente doente compôs “Conduz, Luz Gentil” em que suplica humildemente uma condução transcendente: “Embora conduzido outrora pelo orgulho/ Protegei os meus pés/ Eu não peço para ver o horizonte/ Um passo apenas basta”.




António Campos