Conhecida como a Fenomenologia do Espírito, a obra mais obscura e fascinante de
Hegel
deveria chamar-se a Fenomenologia da Mente. Isso porque Geist quer dizer mente ou espírito e Hegel parece usar por vezes um sentido, por vezes outro; outras vezes um sentido equívoco. Na verdade, Hegel parece querer dizer que a história tem uma mente que a dirige, uma vez que a filosofia não é mais do que o tornar-se ciente do Geist no seu papel orientador da história. A história como percurso de uma mente que a dirige. O dever do homem seria tornar-se ciente desse facto e, por meio de tal, ciente de si próprio. Da mesma forma, o Estado como o Geist objectivado, a personificação da razão objectiva.
deveria chamar-se a Fenomenologia da Mente. Isso porque Geist quer dizer mente ou espírito e Hegel parece usar por vezes um sentido, por vezes outro; outras vezes um sentido equívoco. Na verdade, Hegel parece querer dizer que a história tem uma mente que a dirige, uma vez que a filosofia não é mais do que o tornar-se ciente do Geist no seu papel orientador da história. A história como percurso de uma mente que a dirige. O dever do homem seria tornar-se ciente desse facto e, por meio de tal, ciente de si próprio. Da mesma forma, o Estado como o Geist objectivado, a personificação da razão objectiva.
UMA VIAGEM ALUCINANTE
Do ponto de vista prático, é muito mais
claro conceber a Fenomenologia e a
história como uma viagem; uma viagem, uma descoberta, em que se volta ao ponto
de partida. A História não é mais do que a viagem da humanidade ao longo do
tempo. A viagem de uma procura pelo sentido do que é a humanidade e do seu
propósito. A ciência da experiência da própria consciência, o inteirar-se de si, a mente que tem
como objecto a si mesma, é a Fenomenologia
– uma viagem helicoidal, descendente, para dentro de nós – o conhecer-se a si
próprio. Estas duas viagens, a colectiva e a individual, encontram-se quando o
indivíduo, a consciência individual, viaja desde o imediato ou sensível até à
ciência sistemática. Por outras palavras, a consciência particular para se
inteirar de si vai ter que percorrer o caminho já percorrido pelo espírito, ou
seja pela humanidade, i.e., o caminho da História. Por isso, Hegel afirma que a
Fenomenologia é uma psicologia. Entender o sentido da História é entender o sentido de si próprio.
Hegel vê a História como um registo
fóssil, um registo das etapas do pensamento da humanidade. A História não é
mais do que uma viagem de reflexão intelectual e de descoberta cognitiva. A viagem
termina quando a humanidade toma consciência de si, da sua natureza, da sua
identidade. Na verdade este reconhecimento ou retorno, é a descoberta duma
natureza que já era mas que se desconhecia. Este caminho percorrido pelo
colectivo dos homens ou “pelo espírito” terá que ser também percorrido pela
consciência particular, para que alcance o conhecimento absoluto, ou seja, para
que constate a sua natureza, o que já era desde o início mas que não conhecia;
numa palavra: o retorno.
Hegel diz que tudo o que acontece na
História acontece necessariamente, porque a história não é mais do que o
progresso do desenvolvimento da mente. Como vimos com Kant, fenomenologia é o
estudo do modo como as coisas se nos apresentam, como as percebemos. Logo, a
fenomenologia da mente é o estudo de como a mente se nos apresenta, de como
percebemos a mente. Como estuda a mente o modo como a
própria mente se apresenta perante si mesma?
Hegel responde tratando o conhecimento
como um fenómeno. Kant tinha dito que nunca podemos conhecer a coisa em si, mas
que podemos conhecer os fenómenos. Hegel parece dizer que a própria natureza do
conhecimento é dúbia; ou seja, que não podemos conhecer com segurança. Hegel, na verdade, afirma que existem níveis diferentes
de conhecimento fenoménico, ele mesmo, até finalmente se tornar conhecimento
absoluto, i.e., conhecimento. Tudo o resto são tentativas crescentes de tentar
conhecer. Chama a isto as diferentes
formas de consciência (cap. I a IV).
Para Hegel, conhecer o absoluto, ou o
conhecimento real do que verdadeiramente é, é o objectivo da filosofia. Hegel
sublinha claramente que não desiste de tentar conhecer, porque se parasse na
afirmação de que não é possível conhecer, isso seria uma forma dogmática de
conhecimento e teria igualmente que dela duvidar. Aliás, Hegel socorre-se do
argumento céptico ao afirmar que ele toma pressupostos: que existe uma
diferença entre nós e a realidade, i.e., entre o sujeito e o objecto, que
existe uma diferença entre o nosso conhecimento e a realidade, embora o nosso
conhecimento seja tratado como algo real (mesmo que seja para afirmar a
realidade da sua impossibilidade). Partindo do cepticismo, Hegel mergulha no
idealismo, i.e., tudo está dentro da mente.
Na sua tentativa de refutar os
empiristas, mas, deve dizer-se, sobretudo Kant, recusa tratar o conhecimento
como um instrumento ou um meio de conhecer uma realidade da qual se encontra
separado. Hegel afirma que tentar conhecer o instrumento do conhecimento já é
uma forma de conhecer, i.e., trata-se de procurar conhecer antes de conhecer. E
assim, muito simplesmente Hegel expõe Kant. Por outras palavras: Kant centra no
“eu” o sujeito e o objecto e afirma que o único verdadeiro conhecimento é a priori. Dessa forma nunca podemos
alcançar um conhecimento verdadeiramente objectivo, no sentido em que só
lidamos com fenómenos. Hegel afirma que ao partirmos do “Eu penso em geral” – Ich denke überhaupt – nunca poderíamos
ter chegado a uma outra conclusão, i.e., o resultado já estava contido na
premissa. Pensar é sempre pensar algo, é alteridade. O sujeito implica o
objecto, a subjectividade requere a objectividade. Quando a mente se relaciona
apenas com ela mesma, ensimesma-se, torna-se autista. O resultado não é
racionalidade, é idiotia. Kant tinha caído numa tautologia.
Para Hegel, a única abordagem do
conhecimento é um exame da consciência a partir de dentro, como ela aparece a
si mesma, i.e., uma fenomenologia da mente. Hegel dá o exemplo do escolástico
que afirmava não se dever aventurar na corrente antes de aprender a nadar, para
o refutar e dizer que devemos mergulhar corajosamente na corrente (da
consciência) para aprender a nadar.
(O exemplo é infeliz, pois qualquer bom
nadador poderia facilmente esclarecer que a corrente seria a condição mais
inapropriada para aprender a nadar. Hegel que tinha uma cultura prolífica nunca
leu São Tomás).
A humanidade toma consciência da sua
própria consciência na idade moderna com a Reforma. Até então tinha andado cega (!).
Esta viagem colectiva de auto-reconhecimento só é possível se o próprio sujeito
se tornar auto-consciente-de-si.
A Fenomenologia
do Espírito seria assim a história detalhada do processo de treinar e
educar a consciência até que ela alcance o nível de ciência. A meta da
Fenomenologia seria então a de demonstrar a possibilidade de alcançar o
conhecimento genuíno, i.e., o conhecimento real do que verdadeiramente é, ou
seja, o ponto em que o conhecimento não é mais compelido a ir além de si. Tal
só é possível mediante a construção de um sistema infalível, de outro modo a
razão poderia enganar-se.1
UMA FILOSOFIA QUE É UMA PSICOLOGIA
As 14 estações da cruz2
Começamos por ter consciência de uma
forma simples de consciência, a que Hegel chama consciência sensível. Mas esta
revelar-se-á como uma forma não genuína de conhecimento, pelo que se desdobrará
numa outra que por sua vez se revelará inadequada e se desenvolverá noutra,
continuando o processo até se alcançar o verdadeiro conhecimento. A esta
consciência de uma forma inadequada de conhecimento, Hegel chama a negação determinada, que por sua vez é
uma forma de conhecimento (se sabemos que um certo conhecimento não é exacto,
já sabemos alguma coisa), i.e., uma forma de consciência.
Como funciona a negação determinada,
i.e., como sabemos que uma determinada forma de conhecimento ainda não é
absoluto?
Peguemos na forma de consciência mais
primitiva: a certeza sensível. No seu caminho para descrever o isto ou o agora, facilmente percebemos que o não podemos descrever sem o
recurso a universais, i.e., a certeza sensível não pode ser descrita pela
linguagem. Demos um exemplo: se eu digo rosa, utilizo um conceito de que
participam inúmeros objectos semelhantes aos que quero descrever, se eu digo
"agora" quando é meia noite, esse conhecimento do agora está caduco
logo de imediato. Por outro lado, agora também é um universal, pois existem
vários “agoras”.
(Este é um ponto crucial, porque elimina
a certeza da percepção sensível, contrariamente ao que afirmava o pensamento
tomista e será alvo de crítica detalhada. Rosa pode referir-se a várias objectos dessa cor, mas como obtive eu o conceito rosa? Não foi pela percepção sensível em primeiro lugar? Será que um cego sabe o que é a cor rosa?).
Hegel ultrapassa duas objecções: os
nomes particulares e as verdades místicas. Na Lógica afirma que os nomes próprios são desprovidos de sentido (!)
e sobre as verdades místicas ele admite que existe algo que não pode ser
descrito por palavras, mas esse algo, o indizível, "é apenas o
não-verdadeiro, o não-racional, o puramente acreditado"(!).
(Como se o conhecimento não fosse todo
ele acreditado, necessariamente acreditado com base na razão!).
Para Hegel o que é incomunicável não
pode ser conhecimento. Assim se demonstra, a partir de dentro, a inconsistência
da realidade sensível, na medida em que os particulares sensíveis necessitam de
uma classificação com o recurso a universais, i.e., um esquema conceptual. Esta
primeira negação determinada é então uma primeira forma de conhecimento, que
nos projecta para níveis mais altos de consciência.
A CONSCIÊNCIA DE SI
A consciência classifica os objectos
segundo as suas propriedades universais, mas, por isso ser inadequado (como
vimos), o entendimento impõe as suas próprias leis à realidade. Da mesma forma
que falamos de força e gravidade e não as visualizamos, assim também a
consciência ao tratar das suas criações, tenta entendê-las. É a consciência de si latente.
A auto-consciência é a consciência de si a que falta algo: o
objecto. Aqui começa a liberdade, pelo desejo de possuir o objecto. A
auto-consciência é, contudo, também a consciência de que existem outras
auto-consciências individuais. Quando o objecto é outra consciência de si, ele transforma-se em obstáculo.
A consciência
de si influenciou quer marxistas quer existencialistas. Para Hegel, se
existisse apenas um homem e nada mais ele nunca teria noção de si. Para ele, a
consciência de si precisa de algo com que se comparar; i.e., um objecto
externo. Eu só tenho consciência de mim se existir algo que não sou eu. A
partir daqui Hegel dá um salto qualitativo: ele assume que se existe algo que
não sou eu, eu desenvolvo com esse algo uma relação, um amor-ódio. Para Hegel,
esta relação amor-ódio materializa-se sob forma de desejo. Desejar é querer
possuir, sem destruir mas despojando o objecto da sua individualidade, da sua
oponência, da sua externalidade.
Disse um salto qualitativo, porque se
baseia numa premissa muito apreciada pelos marxistas: a verdade nunca pode ser
alcançada por contemplação, mas sim agindo no mundo e transformando-o, ou seja,
destruindo a sua natureza e reconstruindo-o segundo a realidade operativa
daquele que possui: a chamada "unidade de teoria e prática" dos
marxistas. Esta noção, de que o ser consciente-de-si
descobre que para se realizar completamente tem que mudar o mundo externo e
torná-lo seu, está inscrita na lápide de Marx: "Os filósofos apenas
interpretaram o mundo de vários modos; a questão porém é mudá-lo."
Mas se suprimimos, englobando, o
objecto oponente que serviu para nos identificarmos, como nos
identificaremos? Por isso, o desejo é um estado insatisfatório da consciência-de-si. Hegel apresenta uma
solução obscura no sentido profundo da palavra: o objecto da consciência-de-si passa a ser também uma
consciência de si, e portanto passa
não apenas a ser um objecto que deve ser possuído e portanto negado, mas uma consciência-de-si que deve ser possuída
e portanto negada. O argumento, apesar de obscuro, parece ser sinistro: parece
implicar que para a consciência-de-si
não se requere um qualquer objecto, mas apenas uma outra consciência-de-si pode tornar alguém consciente-de-si. Ou seja, um
ser humano não teria consciência de si fora de uma sociedade humana – esta é a
base do idealismo objectivo ou alemão.
O Senhor e o Escravo
Vamos chamar à consciéncia-de-si, pessoa. Estão em relação duas pessoas. Cada uma
delas necessita de reconhecimento da outra. Uma necessidade mútua. Agora Hegel
vai dar outro salto qualitativo:
A consciência-de-si
para atingir o estado mais "puro" não deve estar vinculada a objectos
materiais: nem ao seu próprio corpo nem ao corpo da pessoa de quem busca
reconhecimento. Portanto, deve-se empreender uma luta de vida ou de morte com a
outra pessoa. O combate violento é um processo fundamental e necessário à afirmação
de uma pessoa como tal! As pessoas que não arriscaram a sua vida ou que não
atentaram contra a vida de outrem, ou não são pessoas de todo, ou, pelo menos,
nunca provaram que são pessoas!
Se a humanidade trilha um caminho único, como vão as consciências individuais primeiro separar-se, pela liberdade e desejo de possuir e superar o outro (a outra consciência de si) e depois unir-se de novo?
Neste combate mortal, em geral o
vencedor poupa o vencido, não por misericórdia mas por necessidade: o vencedor
teria acabado com a sua fonte de reconhecimento. O vencedor transforma o
vencido em escravo. Assim nunca existe reciprocidade entre quem governa e quem
é governado. O escravo trabalha no mundo material para o senhor usufruir. No
entanto, o senhor ao considerar o escravo "uma coisa", também
fracassa na obtenção do reconhecimento. O escravo, ao trabalhar no mundo
material, modifica o mundo, transforma as suas ideias em algo permanente,
enquanto que o senhor nada constrói, só usufrui. Assim, o escravo ultrapassa o
senhor na medida em que se torna mais consciente-de-si, torna-se mais ciente da
sua consciência. No trabalho, mesmo sob uma mente hostil, o escravo descobre
que tem uma mente própria. Foi daqui que Marx extraiu a sua concepção do
trabalho alienado. Ao passar ao capitalista a realização do seu trabalho, o
trabalhador perde a sua essência objectivada, a sua mais-valia.
(Infelizmente para ambos, Hegel e Marx,
é pouco provável que o usufruto não torne alguém consciente-de-si. O que é a
arte? A filosofia? Se alguém tiver que trabalhar todos os dias como escravo
dificilmente encontrará tempo para a filosofia ou para a arte. Quem obtém o
reconhecimento na História? É esse homem comum trabalhador ou políticos,
filósofos e artistas? Quem modifica mais o mundo?).
(E se a tortura, a sedução, a
dependência, o medo, não forem formas de consciência-de-si, porque não se
esgota o crime? Quando os artistas entregaram as suas obras aos mecenas
perderam notoriedade? Quem deixou o seu nome na História, artistas ou os seus
senhores? Frederik Hendrik ou Rembrandt, Frederico Wilhem IV ou Hegel? Foi precisamente
a noção errada de mais-valia como resultante apenas de tempo de trabalho para a
realização de um bem, ignorando o valor da arte, da inovação e da
singularidade, uma das maiores fraquezas da doutrina económica e social de Marx.
É exactamente esse erro que leva Marx a
propor a abolição da propriedade privada e a divisão dos seres humanos entre
governantes e governados como solução para o trabalho alienado. Quanto à
abolição da propriedade privada, Marx retira ao pobre a possibilidade do seu
sustento; quanto à divisão entre governantes e governados quer a revolução
francesa quer Hegel já haviam demonstrado que se tratava apenas da divinização
do Estado como entidade racional objectivada, suprimindo todos os cidadãos que
se lhe opusessem. O estado totalitário).
Hegel considera que é o estoicismo que
reconcilia o problema do trabalho alienado, na medida em que o estóico, seja
senhor seja escravo, encontra a liberdade no seu próprio recolhimento: "No
pensar sou livre, porque não estou num outro mas em contacto simples e
unicamente comigo mesmo. O objecto que para mim é a minha realidade é a minha
própria existência. A essência desta consciência é ser livre, quer no trono
quer nas cadeias." Na mente de um homem nenhum tirano pode dominar.
Hegel inicia uma viragem pronunciada
para dentro, mas esta ainda não é a etapa final, na medida em que a debilidade
do estoicismo resulta de que o pensamento separado do mundo real não tem
qualquer conteúdo determinado. As suas ideias são desprovidas de substância
concreta. Por isso, a etapa seguinte percorrida pela mente é o cepticismo. Como
o cepticismo é contraditório em si mesmo, como vimos anteriormente, uma vez que
afirmar não conhecer é uma forma de conhecimento, Hegel passa para a noção de consciência infeliz ou alma alienada que atribui ao
cristianismo.
Na alma
alienada, o dualismo senhor-escravo concentra-se numa única consciência - o
que na verdade se assemelha mais ao que se passa no mundo real, uma vez que
ninguém é absolutamente senhor ou absolutamente escravo. A alma
foge deste conflito interno almejando ser semelhante a Deus, sendo puramente
espiritual. No entanto, a realidade é que ela também se encontra neste mundo
material com os seus sofrimentos, desejos e prazeres. Embora este argumento
tenha sido usado contra Kant - a ética que coloca o ser humano contra si
próprio, contra aquilo que deseja e que é a sua natureza - é agora usado contra
o cristianismo, na medida em que este coloca Deus num "além" que está
fora do mundo humano (!).
(Esta é uma concepção mais islâmica ou
ariana do que originalmente cristã, uma vez que nesta, embora Deus seja
distinto do mundo, ele encontra-se nele presente e nele opera).
Para Hegel, Deus é uma mera projecção
da mente humana, um alter ego, uma
construção mítica. A alma alienada
não percebe que as qualidades que cultua em Deus são na verdade qualidades dela
própria, projectando a sua natureza num ponto para além dela própria, fazendo
com que o mundo onde viva pareça miserável e insignificante.
(Esta concepção pessimista é crucial e não
poderia ser mais radicalmente oposta à de Chesterton, para quem o mundo é uma
coisa maravilhosa e excitante!).
A resposta de Hegel é que só o
panteísmo ou um humanismo que considere divina toda a humanidade seria imune à
sua concepção de consciência infeliz
pela miséria do mundo onde vive - resulta claro que o panteísmo de Hegel é uma
saída para o seu pessimismo. Quando a consciência
infeliz entender que os atributos que criou para Deus, são afinal atributos
de si própria, torna-se consciente-de-si.
(Hegel abriu a porta ao ateísmo).
A Razão: Panteísmo, a Mente e a História (Cap. V)
Se a
consciência-de-si se desenvolve pela acção no mundo modificando-o, pelo
conflito, se as mentes humanas se encontram unidas num panteísmo, então a
história nada mais é do que o progresso da mente rumo à liberdade, na forma em
que Hegel a concebia e que já foi exemplificada. A história não está nem nunca
esteve em aberto, ela segue um curso fixo e determinista - tinha que ser assim
e nunca poderia ter sido de outro modo! O carácter da Fenomenologia é tão
abstrato, tão desprovido de individualidade, tempo ou lugar, que se se tivesse
desenvolvido em Nárnia com o Peter Pan, o resultado final seria o mesmo!
Embora a História consista no progresso
da consciência da ideia de liberdade (a liberdade racional objectivada no
Estado) e a Fenomenologia consista no
caminho para o conhecimento absoluto, para Hegel liberdade e conhecimento
absoluto são inseparáveis. Se a mente é a força propulsora da História, os nossos
desejos individuais são um obstáculo, uma areia na engrenagem para alcançar a
liberdade. Não a liberdade de agir, mas a liberdade de ter uma mente livre de
todas as influências sociais que não sejam emanações dessa mente racional
colectiva objectivada no Estado. O homem que obedece ao Estado aceite pelos
cidadãos é verdadeiramente livre! O homem que desconfia do Estado ainda não é
livre! (De facto, a distância para Locke não poderia ser maior!).
Para Hegel a razão é universal. Tudo o
que é um obstáculo à razão é uma limitação à liberdade da mente. O maior
obstáculo ao ordenamento racional do mundo resulta de os seres humanos não
perceberem que as suas mentes são parte de uma única mente universal. As mentes
particulares dos seres humanos individuais estão ligadas, porque partilham a
mesma razão universal comum. Se eles não entenderem, os untermensch, então é dever dos übermench
fazê-los entender, usando todos os meios necessários. Com heteronomia no pensar não se
alcançará a liberdade!
Da mesma forma como na primeira
percepção, a percepção sensível, não se podia definir um "isto"
particular, também aqui a mente humana individual, presa de uma concepção de si
mesma que não reconhece a razão como inerentemente universal, não pode
encontrar a liberdade na escolha racional.
Deste modo entende-se melhor a conexão
que existe, para Hegel, entre conhecimento e liberdade: "O deus grego
Apolo indica-nos a solução: homem,
conhece-te a ti mesmo!3 O propósito deste provérbio não é um
tipo de conhecimento que visa as particularidades das fraquezas e dos defeitos
de alguém: não é o indivíduo particular que é exortado a tomar ciência da sua
peculiaridade, mas a humanidade em geral que é convocada a tomar consciência de
si mesma."
(Quem leu a epistemologia de
Chesterton, compreende porque se insiste no conhecimento de Hegel. O desprezo
de Chesterton pelo "Todo", faz dele uma verdadeira consciência-de-si relativamente a Hegel
e um filósofo tout court).
Mas se esta viagem mental, fantástica,
atinge os picos da abstracção, como pode Hegel referir que sempre se focou no
concreto, que as coisas meramente abstractas não possuem existência e que o
mero particular não existe? A solução resulta de duas das suas mais conhecidas
afirmações: “Tudo o que é racional é real e tudo o que é real é racional” e “A
filosofia não tem outro objecto que não Deus e, por conseguinte, ela
é essencialmente uma teologia racional”.
Isto significa que a mente de Deus se
torna objectivada apenas pela sua
particularização na mente das suas criaturas materiais finitas. Da mesma forma,
as diferentes culturas são diferentes “espíritos” ou mentes colectivas e as
diferentes épocas na História não são mais do que a mente universal a tomar
“consciência-de-si”. (Resulta bastante óbvio que Hegel antecipa as ideias do
séc. XIX sobre um progresso histórico linear rumo à civilização, que o verão de
1914 se encarregou de estilhaçar com fragor, deixando a mente humana órfã para
sempre das certezas iluministas).4
Esta “conceptualização” das
características ou estruturas do mundo em si, quer na dimensão da vida
subjectiva (idealismo subjectivo ou inglês), quer na dimensão objectiva das
características culturais das quais a vida subjectiva apresentaria dependência
(idealismo objectivo ou alemão) atribuem ao trabalho de Hegel o título de “realismo
conceptual” ou “neo-Aristotelismo”. O processo de consciência-de-si integrado no processo de consciência-de-si ou auto-melhoramento de Deus, “a mente absoluta”,
remetem-no para o idealismo absoluto.
Os existencialistas retiraram de Hegel
a ideia de finitude e de dependência cultural e histórica, deixando cair o
panteísmo do “absoluto”. Os marxistas tomaram as noções de trabalho alienado,
de determinismo histórico, de dialética na acção – a reconstrução do mundo
utópico ateu – e de homem novo com legitimidade para “iluminar” se necessário
pela violência – as vanguardas iluminadas.
O Conhecimento Absoluto
(Cap. VI)
Se a meta da Fenomenologia é o
conhecimento absoluto e a meta da História é a consciência da liberdade, como é
que o auto-conhecimento é o conhecimento absoluto? Para Hegel esse conhecimento
absoluto ou real reside nos nossos pensamentos, na nossa mente. A sua ideia
central é a de que a realidade última é a mente, não a matéria. A sua
fundamentação assenta na impossibilidade de obter conhecimento de uma realidade
objectiva independentemente da mente. Tudo se inicia com a sua negação da
certeza sensível, do valor do particular, da inexistência das verdades místicas,
do conhecimento intuitivo incomunicável. Então os objectos materiais, não podendo
ser conhecidos sem participação da consciência, revelam-se produto da
consciência.
(Convenhamos que esta conclusão é um
grande salto! É como dizer que como sem consciência não existe dor, não há
nenhuma picada de agulha que possa produzir dor).
Portanto, a consciência vê as leis da
natureza como leis por si produzidas e a si conformadas e, deste modo, a mente
toma-se a si própria como objecto do seu exame. A mente age na natureza
modelando os objectos materiais de acordo com o seu padrão. Começando pela
tentativa de conhecer como a mente conhece a realidade, concluímos que a
realidade é resultado da construção da própria mente.
Se a realidade é apenas uma construção
da mente, então podemos ter conhecimento genuíno da realidade. A mente não se
encontra separada da realidade, a mente é a realidade. O conhecimento não
precisa ir além de si. Conhecer não é um instrumento de apreensão de uma
realidade externa; conhecer é ver dentro de si. O conhecimento absoluto alcança-se
quando a mente entende que o que ela quer conhecer é ela mesma.
Tudo está na mente e não existe
qualquer realidade além dela. Enquanto a mente não entende isso, ela está
separada ou alienada. O conhecimento absoluto é a mente conhecendo-se a si
mesma como mente.
(A diferença existe entre as palavras
"criação" e "reconhecimento". A mente cria a realidade ou
reconhece a realidade? Eis a questão. Se a mente cria a realidade e se todas as
mentes constituem a realidade, então compreende-se como a história não é mais
do que uma construção ou progressão da ideia de liberdade. Liberdade no sentido
hegeliano, evidentemente: a submissão absoluta ao Estado).
António Campos
1 Os
enganos da razão: “Este descer a regiões sombrias onde nada se mostra fixo,
definido ou certo, onde os lampejos de luz se multiplicam por toda a parte, mas
flanqueados por abismos, vêem escurecido o seu brilho e são levados sem rumo
pelo retorno a um tempo onde produzem reflexos ilusórios mais do que
iluminação. No começo de todos os caminhos, torna-se a bifurcar e penetra no
infinito, perde-se e desencaminha-nos da nossa finalidade e direcção. Por
experiência própria conheço este estado de alma, o da razão, que surge quando
avança movida por interesse e se funde num caos de aparências. Interiormente
está segura do seu objectivo, no entanto não o captou nem esclareceu na sua
totalidade.”
2 As
14 Estações da Cruz ou as etapas da
viagem da mente na Fenomenologia.
Subdividem-se numa tríade: Consciência (Cap. I a IV), Razão (Cap. V), Espírito
(Cap. VI).
A consciência envolve a certeza
sensível (o aqui, o agora, o isto, o que é particular), a percepção (pode conduzir à ilusão e
revela a natureza contraditória do nosso conhecimento), o entendimento (a lei,
a ordem, a organização). A consciência termina na auto-consciência: a certeza
de si mesmo, a luta pelo reconhecimento e a liberdade (hegeliana).
A razão envolve a razão que observa (a
natureza e a auto-consciência ou as leis lógicas e psicológicas), a realização
ou materialização da auto-consciência pela sua própria actividade (atitudes
egoístas, moralidade, vaidade, orgulho) e a individualidade feliz em si mesma
(formulação racional das leis e sua verificação racional).
O espírito (a mente) envolve a ordem
ética (leis humanas e divinas, a culpa e o destino, a legalidade e as relações
sexuais, a família). O espírito que se aliena ou expressa na cultura: a Fé
(católica) e a Reforma, o Iluminismo, a Revolução Francesa e o Reino do Terror.
A moralidade e a consciência ou o espírito que tem consciência de si mesmo: o
dever.
3 Muito
se tem dito e escrito sobre o oráculo de Delfos. O conhecimento de si mesmo é
como caminhar atrás da própria sombra. Creio que seria muito mais sábio
afirmar: Homem, conhecerás a tua mulher e
o teu cão mas não te conhecerás a ti mesmo!
4 O
Lamento da Guerra – Como a Grande Guerra foi um grande erro (The Pity of War – Why
The Great War was a great mistake), com Niall Ferguson. Original BBC.
Disponível em português sob encomenda: Tape ID: 06645024/025 RTP2.
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