domingo, 31 de março de 2013

Natal, Ramos e Páscoa – O Regresso a Casa



“Porque onde há um testamento, é necessário que se dê a morte do testador”

“Eu sugiro que as pessoas vejam a história cristã como se fosse um conto pagão. A Fé é apenas a história de um Deus que morreu pelos homens. Agora suponhamos que nunca tínhamos ouvido falar de Cristo. Suponhamos que só sabíamos da terra e dos filhos dos homens deambulando por ela. O que pensaríamos nós dessa história de um Deus morrer para que os homens pudessem ser aceites e como a contaríamos?"  (The Thing, 1926).

"Como resolveria Cristo os problemas modernos se estivesse hoje no mundo? 
Esta pergunta comporta dois dogmas: a de que os problemas do mundo de hoje são muito diferentes dos problemas do mundo de ontem e a de que Cristo não se encontra, de facto, no mundo. 
Isto implica reduzir Cristo apenas ao seu tempo, o Cristo histórico: "As soluções de Cristo não se aplicam a nós os modernos". Este é um ponto de vista dos ateus ou agnósticos, mas também dos crentes que “dormem” e só acordam quando ouvem “mas não se faça a minha vontade mas a Tua”. 
Mas esta suposta vinda “de novo” de Cristo aponta a Natividade, o Natal, e as suas soluções para os problemas apontam para a Páscoa, a Paixão e a Ressurreição. Então, o Natal e a Páscoa encontram-se estreitamente relacionados (Good Housekeeping, 1932).

“Desde esse dia, nunca mais bastou afirmar que Deus está no céu e o mundo está direitinho, dado que corre o boato de que Deus abandonou o céu para o endireitar” (O Homem Eterno, 1925).

Dizia Belloc que a Natividade e a Ressurreição estão de facto relacionadas. “Numa alma forte um amor dura o suficiente para ser transformado numa amizade sólida, absorvendo as qualidades do dever e quase também as da virtude. Então o amor desfaz-se da decadência da nossa natureza e segue vivente, suportado por um princípio imortal.”

"As três dádivas do Natal são que Cristo foi coroado como um Rei, venerado como um Deus e morreu como um homem. A estranheza acompanha mesmo as coisas divinas. O Natal implica que se não pensamos de forma correcta sobre as coisas importantes, acabaremos por pensar errado sobre a maioria das coisas. Os conceitos básicos e as energias eternas começaram aqui, na caverna de Belém. A festa da encarnação e a festa da ressurreição, desenrolam-se em duas grutas, a de Belém e a de Jerusalém." (São Tomás de Aquino, 1933).

“O Natal é demasiado belo, demasiado tradicional para que os secularistas o suprimam. Nada há de errado no mundo moderno excepto o facto de que não se encaixa no Natal. O critério do que é humano ou do que é verdade não pode ser: «encaixa-se nos valores do mundo moderno?», mas sim: «o mundo moderno encaixa-se no Natal, na vinda de Cristo?» (Illustrated London News, "The Wrong Books at Christmas", 1908).

“…no Templo, quando as mesas são derrubadas e atiradas pelas escadas abaixo, como trastes velhos, e os mercadores ricos são expulsos a golpes de chicote, o que é tão incompreensível para os pacifistas quanto a não resistência o é para os militaristas (…) mas há sempre alguém que sente aquela repugnância refinada de quem nunca se deixa de comover com a violência, em especial a violência contra os que estão bem na vida…” (O Homem Eterno, 1925).



"A gratidão, talvez o maior dos deveres humanos, é talvez também o mais difícil” (porque muito do que somos e do que fazemos não se originou de nós próprios). Cristo curou dez leprosos e só um agradeceu. Cristo disse: “não foram dez os curados? Onde estão os outros nove?”, Lu 17, 11-19, (The Illustrated London News, 1935).


“A história de Cristo é pois a história de uma viagem…e vai ascendendo gradualmente em direcção às montanhas, que se encontram mais perto das nuvens de trovoada e das estrelas, até à Montanha do Purgatório. Ele anda por lugares estranhos, como se estivesse perdido. É possível detê-lo pelo caminho, para com Ele discutir, mas o seu rosto permanece voltado para a cidade da montanha (...) e detém-se numa volta do caminho, chorando à vista de todos…” (O Homem Eterno,1925).

Cristo é aclamado, nos Ramos, à entrada de Jerusalém, como Rei. Aclamado não pela elite, mas sim pelo povo. E que espécie de Rei? Um Rei montado numa jumentinha, filha de uma jumenta, Jo 12, 12. Já algo semelhante tinha acontecido em Belém, onde foi adorado pelos simples e pelos estrangeiros e perseguido pela elite. Mas qual foi a reacção do povo à perseguição que lhe moveu o poder?

“Os pobres a quem Ele pregou a boa nova, a gente comum que gostava de o ouvir, a populaça que tinha formado tantos heróis e semideuses no velho mundo pagão, também deu mostras da fraqueza que estava a dissolver o mundo. Sofria dos males que muitas vezes se detectam na ralé das cidades, em especial na ralé das capitais, em períodos de declínio social…Reconhecemos em tudo isto a população urbana que bem conhecemos, com os seus medos e as suas caixas jornalísticas…Era a alma da colmeia, essa coisa pagã: É melhor que morra um só homem pelo povo." (O Homem Eterno,1925).
 
“…e Deus foi abandonado por Deus…”, (O Homem Eterno, 1925).
 





“...no meio daquele horror, daquela vociferante solidão de deserções, uma voz se ergueu em homenagem. Uma voz surpreendente, proveniente do último sítio de onde se estava à espera que surgisse, do pilar do criminoso. E Ele disse a esse rufião sem nome: «hoje mesmo estarás comigo no Paraíso». O representante de Roma apenas consegue dizer: «O que é a verdade?». Uma das principais personagens ocupa aquele que parece ser o inverso do seu papel. Roma era quase um sinónimo de responsabilidade. Mas passou, para todo o sempre, a uma espécie de estátua imóvel de irresponsabilidade. O homem não conseguia ir mais longe. Postado no assento de juiz, um romano tinha lavado as mãos do mundo…neste drama decidiu-se o destino da antiguidade.

Ao terceiro dia os amigos de Cristo ao chegarem ao local viram o sepulcro vazio e a pedra rolada para o lado. Em diferente grau eles aperceberam-se da nova maravilha; mas mesmo então eles não se aperceberam bem que o mundo tinha morrido numa noite. O que eles contemplavam era o primeiro dia de uma nova criação,  um novo Céu e uma nova Terra. 
E, no semblante de um jardineiro, Deus passeava de novo no Jardim, na brisa, não da tarde, mas da madrugada.


…temos a sensação de que a Morte era a noiva de Cristo como a pobreza era a noiva de São Francisco. Temos a sensação de que a vida de Cristo foi, em certo sentido, uma espécie de caso amoroso com a morte, um romance da busca do sacrifício definitivo. Desde o momento em que a estrela se ergue no alto, qual foguete de aniversário, até ao momento em que o sol se extingue, qual tocha funerária, toda a narrativa avança sobre asas, com a rapidez e a orientação de um drama, que culmina num acto que está para além das palavras.” (O Homem Eterno, 1925).






Mas os cristãos não fazem a elegia da morte. Nunca Cristo, por aceitar a morte, deixou de exaltar a vida. Foi Ele quem exaltou os passarinhos, os lírios do campo, os rostos das crianças, a esperteza das serpentes, a simplicidade das pombas. Nunca São Francisco que chamou à morte sua irmã, deixou de chamar aos pássaros seus irmãos e espantar-se com a natureza e a terra, sua irmã. Não! O êxtase do regresso a casa não é a exaltação da morte do misticismo nórdico ou germânico. Nunca São Paulo deixou de nos falar na orientação correcta da vida e das igrejas, apesar da lição sobre a passagem de uma ontologia mortal a uma imortal, 1 Cor 15.

"O altar é um local de sacrifício. Mas este é um altar como nenhum outro. Só neste altar Deus se sacrifica a Si para Si próprio." (Christendom in Dublin, 1932).

Deus oferece a si próprio o melhor que havia para oferecer pelo resgate do homem comum: a perfeição humana.

“Porque onde há um testamento, é necessário que se dê a morte do testador. Um testamento só entra em vigor depois da morte, pois, enquanto o testador vive, não tem validade alguma…Sem efusão de sangue não há remissão”, Heb 9, 16-23.

A liturgia católica é lindíssima. Até os estetas se fascinam com os cânticos, as leituras, os trajes, a atmosfera. Os cépticos acham-na ridícula e estranha. Da posição de onde olham é muito natural que assim pensem, pois eles consideram-se a si próprios animais. Ora a liturgia não é deste mundo, no sentido em que não vem deste mundo. Seguramente não vem do mundo animal. E a sua participação é própria de espíritos, não de animais. É natural que um animal a olhe com estranheza, porque vinda de um mundo que lhe é estranho.

“Aos da minha fé só há uma resposta à questão da vinda de Cristo. Cristo está na Terra hoje, vivo, em milhares de altares. E Ele resolve os problemas das pessoas exactamente do mesmo modo como os resolvia quando estava na terra num modo mais comum. Quero dizer, Ele resolve os problemas de um pequeno número de pessoas que escolhem de vontade própria ouvi-Lo. Ele não apelou a um sultão do Oriente ou a um conquistador romano no Seu tempo. Ele não apareceria como um polícia ou uma outra autoridade agora." (Good Housekeeping, 1932).

“Se calhar ainda estamos de algum modo no Paraíso, só os nossos olhos é que mudaram.” (Christendom in Dublin, 1932).

Se Deus aparecesse nos noticiários da TV que lugar restaria à liberdade humana, ao livre arbítrio e à Fé? Como poderíamos duvidar de uma evidência? Como faria o homem o caminho da confiança, de volta a uma relação entretanto traída? Não! A maior razão da Fé reside na salvaguarda da liberdade humana. Em reganhar uma confiança entretanto perdida pela Queda. É preciso viver a revolução permanente, contra o espírito da época, contra a heresia da moda. Só assim se obtém o perdão e o regresso a casa.

António Campos
Anália do Carmo



sexta-feira, 29 de março de 2013

O Tédio e o Regresso a Casa - Homesick at Home and Homecoming


A parábola do filho pródigo, Lucas 15:11-32, aponta-nos a primeira e fundamental via de regresso a casa: a misericórdia. Só ao perdoar os outros podemos obter o perdão para nós próprios. A ela voltaremos no final a propósito do Natal, Ramos e Páscoa. O que ela também nos indica, na sua parte inicial, tal como na questão da Queda, Gen 3, é que muitas vezes abandonamos o nosso lar, afastamo-nos, deambulamos e, finalmente, regressamos a casa. Em suma, a idolatria do eu, uma separação unilateral, a angústia da solidão e a ânsia pelo regresso a casa, para, como diz Scruton, obter consolação.

A doutrina da queda é, nas palavras de Chesterton, a mais saudável das doutrinas: ela admite a possibilidade de emendar decisões que decorrem da vontade humana, afirma o livre-arbítrio, a responsabilidade humana, o juízo sobre ela, a possibilidade do perdão dos homens e do perdão de Deus. A queda não resultou da falta de obediência ipso facto, mas por algo de mais grave: a traição do Amor. Não se partilha o amor sem confiança e nada há de pior para acabar com essa comunhão do que a traição. Por isso a desobediência se tornou tão grave: a impossibilidade de comunhão no Amor de Deus. A questão do pecado original não reside primariamente na desobediência, mas sim na desconfiança e traição. É tão óbvio que qualquer relação entre duas pessoas assenta no mesmo pressuposto. Por isso, Jesus Cristo, mais tarde, num outro jardim, esteve perante uma situação análoga, mais dramática e deu uma resposta radicalmente diferente que mudaria o curso da humanidade e do mundo.

“Nós esquecemo-nos de quem realmente somos. Tudo o que chamamos racionalidade, sentido prático e positivismo, apenas significa que em certos períodos mortos da nossa vida, nos esquecemos que tínhamos esquecido. 
Aquilo a que chamamos espírito, arte e êxtase, apenas significa que num raro momento de felicidade, voltámos a lembrar-nos que tínhamos esquecido. 
A Queda significa que o que quer que eu seja, não sou eu próprio. Este é o primeiro paradoxo da nossa religião; algo que nunca compreendemos em toda a sua profundidade: nós somos em verdade não só melhor do que somos, mas ainda mais naturais do que aquilo que somos. A felicidade não é apenas uma esperança, mas de certo modo, uma memória: a de que somos reis em exílio.” All Things Considered, 1908.


Chesterton diz que nós fizemos mau uso de um mundo bom; não fomos apenas mergulhados num mundo mau. Fizemos um mau uso da vontade, e, portanto, declara que esse mau uso pode ser corrigido pelo uso adequado da vontade. O que se passa no nosso tempo com o aquecimento global e o envenenamento do planeta é, também, a tradução desta metáfora. “Todas as crenças, excepto esta, de alguma maneira se tornam reféns do destino. Um homem que tenha esta visão da vida vê a luz sobre uma série de coisas” All Things Considered, 1908.

Mas o afastamento e o regresso a casa também se aplica ao que Chesterton designou como “Homesick at home”: O caminho mais curto para regressar a casa por vezes não é permanecer quieto, mas dar a volta ao mundo e regressar a casa como referido em Manalive, 1912  e em The Coloured Lands, ed. post., 1938. O homem que vive com a mulher e os filhos vários anos e que nem neles repara. Tinha-se tornado mais distante e egocêntrico sempre na ânsia de algo diferente todos os dias. Então um dia resolve conhecer mundo e encontrar um lar onde não morra de tédio. Passam vários anos e, finalmente, após dar uma volta ao mundo, de ter uma miríade de empregos e trabalhar em outras tantas cidades, regressa a casa, numa tarde solarenga de Verão e repara na sua mulher, em quem dantes mal reparava, a deitar água numa jarra. Finalmente teve olhos para reparar na beleza da sua mulher, dos seus filhos e do local onde vivia, uma quinta atravessada por um rio.







Belloc por seu lado especula sobre uma experiência que é a sua; sobre como quem nasce no seio da Igreja Católica, frequentemente tem uma experiência similar de reconversão. Em matéria de fé, se entendida como um presente, ela tem que ser aceite de livre vontade, como qualquer presente. Desse modo permitimos que a fé, na sua inteligibilidade própria, fale connosco. “Aqueles nascidos na Fé, frequentemente passam por uma experiência de cepticismo na juventude, por vezes durante anos. É um fenómeno comum...alguns nunca retornam. Mas é um fenómeno muito frequente – e é a isto que eu me refiro – que muitos para quem o cepticismo foi um apelo muito forte durante a juventude descubram, pela experiência da vida e pela constatação da realidade nas suas diversas formas, que as verdades transcendentes que são ensinadas na infância, mantêm a sua validade integral perante a razão mais madura.”


 A segunda “conversão” para Belloc, consiste na constatação de que as alternativas propostas pelos cépticos não fazem tanto sentido como aquelas que são aprendidas na infância e que, de repente, nós as adoptamos, aprendemos e com elas queremos viver. Belloc sublinha assim os diversos tipos de convertidos que chegam à Igreja de todos os tipos de proveniência. Encontramos o cínico e o sentimental, o tolo e o sensato, o que duvida e o que não se interroga o suficiente. Mais: encontramos pessoas a entrar na Igreja vindas de todo o tipo de experiências e nacionalidades. “Passa-se a entrada da Igreja Católica sem dúvida pelo espectáculo, admiração e imitação do seu grande carácter. No dia seguinte, passa-se a entrada da Igreja Católica vindo da solidão absoluta, e fica-se surpreendido por encontrar o convertido ainda ignorante da missa e do grande efeito católico no carácter.”


Belloc sublinha uma frase famosa, já exprimida também pelo seu amigo Chesterton: “A Igreja é o lar natural do Espírito Humano”. Esta é uma expressão brilhante e paradoxal, uma vez que a Igreja não é uma casa de habitação. A menos que o nosso espírito consista em algo que não é natural, da natureza física. Essa multitude de portas de entrada na Igreja Católica, “tantas como há pessoas” nas palavras de Ratzinger ou “dois homens não entram pela mesma porta” nas palavras de Chesterton, convergem porque apontam a uma única realidade. “É nesta convergência de testemunhas que nós encontramos uma das inumeráveis provas de que a nossa religião assenta numa base racional. A religião sobrenatural assenta numa base racional sólida" (Prefácio de Belloc a The Catholic Church and Conversion, Chesterton, 1927).


Quinta-feira Santa é o dia da instituição da eucaristia. Um Deus que se oferece em sacrifício a Si próprio. O sacerdote que nos lava os pés, o Deus que nos lava os pés.
Jejum, nenhum animal faz. Só os espíritos jejuam. Jejuar é concordar com Deus, afirmar que o homem não é apenas mais um animal.
Como dizia Chesterton, o pensamento dominante moderno condena jejuns e abstinências ocasionais, mas decreta jejuns perpétuos, como a proibição de fumar e de comer carne.






O bebé levantou os olhos, curioso,
E, timidamente, disse:
Uma influência no sentido da experiência
É produzida na mente moderna.



Eu sinto a vontade de deambular, para aprender
Pelo teste, experiência, sentido prático,
Que o fogo é quente e o oceano profundo,
E os lobos, carnívoros.

O meu cérebro exige complexidade,
O querubim com ceceio, chorou.
Eu olhei para ele, e disse apenas:
Vá em frente. O mundo é grande.
Uma lágrima rolou pelo seu bibe:
No entanto, da minha vida devem sumir
O amor simples do sol e da lua,
Os jogos antigos na relva;

Agora que volto para casa
Podiam estas coisas ser reencontradas?
Eu olhei para ele e disse apenas:
Vá em frente. O mundo é redondo.
Greybeards at Play (velhotes que brincam) – excerto de Envoy, Chesterton,1900



(nesta primeira conversa com os nossos amigos, Chesterton e Belloc, apontámos o paralelismo entre a relação do homem com o seu lar e com a Igreja – a decisão humana de sair e, eventualmente, de voltar a casa – sabe-se lá em que medida ela também influenciada pela presença de Deus no mundo. A segunda conversa incidirá sobre a decisão de Deus de levar o Homem de volta a casa e chamar-se-à Do Natal aos Ramos e dos Ramos à Páscoa)


António Campos
Anália do Carmo



domingo, 24 de março de 2013

Chesterton e o Estado - Parte II


“A Ashlar não é só o indivíduo aperfeiçoado, é também o Estado”, Albert Pike, Morals and Dogma of Freemasonry.

O sistema de alternância partidária também é analisado por Chesterton, que dele desconfia: "Gudge, o plutocrata, quer um industrialismo anárquico. Hudge, o idealista, fornece-lhe o lírico elogio da anarquia. Gudge quer mulheres operárias porque são mais baratas. Hudge diz que o trabalho as liberta. Gudge quer trabalhadores incansáveis e obedientes. Hudge prega a lei seca para os operários." Chesterton advoga que ambos os sistemas vêem o indivíduo, homem ou mulher, apenas do ponto de vista económico, como factor de produção, mesmo que pelo caminho se lhes deva negar o conforto familiar. Uma heresia que nega as palavras de Cristo: ”Nem só de pão vive o Homem”. Diz Chesterton que a grande heresia do nosso tempo é mudar a alma humana para se adaptar às circunstâncias, evitando mudar as circunstâncias para se adaptarem à alma humana. Quer socialistas quer grandes capitalistas são inimigos da propriedade, porque o capitalismo é um sistema em que quase ninguém possui e o socialismo nega o direito a todo o tipo de propriedade. 

Chesterton vai mais além. Diz que é a acumulação imoral da propriedade de plutocratas e banqueiros que fornece a dialética que aponta para os socialistas: "Gudge governa por um rude e cruel sistema de pilhagem e exploração do trabalho de homens e mulheres, que é completamente inibitório da liberdade familiar e conducente à destruição da própria família. Hudge, abrindo os braços ao universo, com um sorriso profético, anuncia-nos que a família é qualquer coisa que deveremos, em breve, gloriosamente ultrapassar... Se a concentração materialista prosseguir, o homem será um dia dono de coisíssima nenhuma, nem sequer do seu próprio corpo", Autobiografia, 1936.


Chesterton alerta que o nosso sistema de alternância democrática é um esquema que funciona em circuito fechado: "Hudge o socialista e Gudge o capitalista, ambos destroem a família: um em nome do Estado, o outro em nome do indivíduo!...Para o socialista, a dificuldade de cada um ter o seu quarto de dormir, ao abrigo de estranhos, chama-se Fraternidade. Para o capitalista, a necessidade de se ter que subir trinta lances de escadas antes de chegar a casa chama-se Esforço. E agora desejo segredar ao ouvido do leitor uma suspeita horrível que por vezes se apodera de mim: a suspeita de que Hudge e Gudge estão secretamente de sociedade; de que a polémica que publicamente sustentam, não passa de negócio combinado. De que o jogo, sempre a passar das mãos de um para o outro, não se faz por simples acaso”, Os Disparates do Mundo, 1910.

Chesterton vai ainda mais longe nas suas alegações: "Eu não sei se o compadrio de Hudge e Gudge é consciente ou inconsciente. Apenas sei que ambos continuam a deixar sem lar o homem comum. Apenas sei que continuo a ver o Silva vagueando pelas ruas, pelo cinza do crepúsculo, olhando tristemente para os postes, para as vedações e para os candeeiros amarelos que continuam a guardar a casa, que nem por isso é menos sua, apesar de nunca lá ter entrado", Os Disparates do Mundo, 1910.

Mais uma vez se sublinha que esta forma de considerar a política e o exercício do poder apenas em função da economia, tão comum no nosso tempo, desrespeita o aviso de Cristo, como Bento XVI  explica no seu livro “Jesus de Nazaré”, cap II, pág 64: “Nem só de pão vive o Homem”…O pão é importante, a liberdade é mais importante, mas o mais importante é a fidelidade constante e a adoração jamais atraiçoada” (Bento XVI cita o jesuíta alemão Alfred Delp).
Outro facto alarmante na política é que são sempre os mesmos nomes a dominá-la, em Inglaterra e nos Estados Unidos. “Ainda haverá, julgo eu, quem negue ser a Inglaterra governada por uma oligarquia. Um homem que tivesse adormecido há trinta anos sobre um jornal, se acordasse agora com o jornal do dia actual, pensaria estar a ler notícias do mesmo jornal. Num, encontraria Lord Robert Cecil, Mr Gladstone, Mr. Wyndham, um Chamberlain, um certo Churchill, um Trevelyan e um tal Buxton. No outro, encontraria Lord Robert Cecil, Gladstone, Wyndham, Chamberlain, Churchill, Trevelyan e Buxton. Se isto não é ser governado por meia dúzia de famílias, então não sei o que tal expressão significa. Talvez sermos governados por extraordinárias coincidências democráticas.”, Os Disparates do Mundo, 1910.
O desafio que deixamos para o nosso tempo refere-se aos Estados Unidos, o centro imperial do ocidente. Na presidência, na direcção dos serviços de investigação e dos serviços secretos, das grandes corporações, os nomes Bush, Dulles, Hoover, Helms, Aldrich, Rockefeller, Warburg, Kuhn, Loeb, Schiff. É surpreendente como o poder político se tem norteado pelo nepotismo neste grande país.

John Kennedy representou uma luz que se abriu na América. Relacionou-se com a maior parte desses nomes. Forçou a demissão de Allen Dulles, o mentor do resgate de nazis para a CIA, a operação Paperclip: “Vou agarrar a CIA, parti-la em pedaços e espalhá-la pelo ar!”- JFK um mês antes da sua morte. A sua eliminação física foi uma luz que se apagou. O seu irmão, Robert, perguntou no dia a seguir à sua morte ao director da CIA: “Foi a CIA quem matou o meu irmão?”. Allen Dulles foi nomeado para a comissão Warren, apesar de odiar Kennedy. O seu subdirector na CIA, irmão do mayor de Dallas, também foi nomeado para a comissão de investigação da morte de Kennedy. O assassinato de Kennedy permanece um dos maiores segredos dos Estados Unidos da América. Ficamos surpreendidos por, num país com 400 milhões de almas e várias universidades de topo, também observarmos estas coincidências democráticas.

Mas seria Chesterton apologista da anarquia? "Sem autoridade não existe liberdade. A liberdade encontra-se condenada à extinção, a menos que exista um direito reconhecido à liberdade. E, se admitimos que existem direitos, tem que existir uma autoridade que os possa garantir." G.K.’s Weekly, 1928.
E sem dúvida que era um patriota: "Não só o patriotismo é parte da política prática como é mais prático do que qualquer política", Chesterton em Irish Impressions. "O patriotismo que desaprovo é o imperialismo de Kipling, a força do mais forte, a certeza a priori da vitória. Mas defendo a velha ideia liberal de nacionalismo contra a nova ideia de internacionalismo; e a justeza da guerra defensiva (…) HG Wells aprova o tipo de guerra que eu desaprovo em absoluto: a que ameaça os pequenos estados para lhes poder extorquir o ouro. E ele desaprova a única espécie de guerra que eu prezo: a guerra da cultura e da religião em demanda do destino moral da humanidade. Defendi a velha ideia liberal de patriotismo contra a velha ideia socialista de internacionalismo”, Autobiografia, 1936.
Embora tivesse a lucidez de criticar o seu próprio país em The Crimes of England, 1916: “…as piores influências na Inglaterra vieram do Império Alemão. Pior, tinham sido emprestadas pela Alemanha. Era da política pró-alemã o apoio ao herói protestante na Prússia ou aos Príncipes Protestantes de Hannover, que nos tinham envolvido na questão com a Irlanda ou coisas ainda piores. Todo o nosso imperialismo recente tinha sido o elogio da Prússia, à maneira de um modelo e de uma desculpa”.

Não admira pois que a aristocracia inglesa tivesse, como afirmou Belloc, ignorado Chesterton. O prémio Nobel da literatura para o qual estava nomeado em 1935, foi cancelado.
"Oh Deus da terra e do altar,
Inclina-te e ouve o nosso clamor.
Os nossos governantes vacilam,
O nosso povo à deriva, morre.
As paredes do dinheiro sepultam-nos
As espadas do escárnio dividem,
Não afasteis de nós o vosso relâmpago,
Mas levai o nosso orgulho.”
O God of Earth and Altar, 1906





António Campos do sono e da condenação,
livrai-nos, bom Senhor!

Amarre uma corda em vida
ao príncipe, ao sacerdote e ao escravo,
que ligue as nossas vidas,
que nos fira e salve a todos;
em ira e exultação
em chamas, com fé, livres
para erguer uma nação viva,
uma espada única para Ti."

Chesterton, Oh God of Earth and Altar, 1906

Chesterton e o Estado - Parte I



“Uma vez abolido Deus, o Estado torna-se o deus”, Chesterton, Christendom in Dublin, 1932.


Uma das dimensões dos homens do nosso tempo, a política, só pode ser compreendida mediante o conhecimento do conceito de Estado. A sua personificação mais conhecida é a obra “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel, escrito em 1513. As ideias do livro, embora nunca o mencionando explicitamente - o que se tornou um hábito na política – estão na origem do famoso aforismo “os meios justificam os fins”. Voltaire diria mais tarde na sua carta a Thériot: “É necessário mentir como um demónio, não timidamente, nem só temporariamente, mas sempre, e com audácia!” 

Maquiavel diz que é preciso ser dissimulado, mas não deixar transparecer essa dissimulação. Não é necessário possuir as qualidades, mas é preciso parecer. Parecer ser piedoso, fiel, humano, íntegro e religioso. No entanto, agir sempre conforme as circunstâncias e não adoptar um comportamento ético definido. Defende o primado da justiça sobre a misericórdia: “A morte de um bandido só faz mal a ele mesmo, enquanto a sua prisão ou perdão faz mal a toda a comunidade”. O Príncipe deve ser cruel com as pessoas, mas parcimonioso com a propriedade. Tira partido do lado mais sombrio da natureza humana: “As pessoas esquecem mais facilmente a morte do pai do que a perda da herança.” Tem uma visão prática e fria do exercício do poder: “A um príncipe convém mais ser temido do que ser amado.” Erasmo de Roterdão, um sacerdote católico que colocava em dúvida a Santíssima Trindade, amigo de Lutero e de Thomas More, publicaria Institutio Principis Christiani em 1516, Thomas More publicaria a Utopia também em 1516 e Lutero faria a publicação das suas 95 teses em Wittenberg em 1517. O ambiente era intelectualmente adverso e atacava os princípios mais firmes da Igreja, sobretudo vindo do seu próprio interior, dos seus sacerdotes e teólogos.

A concepção moderna do Estado é em grande medida neoclássica (César ou Presidente, Senado ou Parlamento, e Exército com Serviços Secretos). Até as colunas de Corinto à entrada das instituições públicas são marca simbólica da civilização pagã. Já para não mencionar o nome de deuses pagãos dado aos planetas, aos foguetes da NASA, a programas desenvolvidos no âmbito do Estado ou a sistemas informáticos, e os jogos olímpicos.

O princípio da separação de poderes saído da Revolução Francesa - legislativo, executivo e judicial – um princípio louvável, enferma de vícios fundamentais: a nomeação de muitos dos altos titulares de cargos do poder judicial é efectuada por votação de membros do poder executivo ou legislativo. O chefe do partido é simultaneamente o chefe do governo, o que limita a liberdade dos deputados e diminui a independência do poder legislativo. Os líderes do partido são eleitos internamente por uma minoria de membros do partido. À população geral só é dado escolher entre líderes de diversos partidos previamente determinados, o que transforma as eleições num plebiscito. Para piorar o cenário, as listas de deputados concorrentes às eleições são determinadas pelo partido, o que premeia os membros que se “portam bem”.

Mas ainda existem três poderes que actuam na sombra. As sociedades secretas, os plutocratas e os “mass media”, que se encontram em grande medida interpenetrados. Sem dinheiro não há visibilidade nem posse dos media, sem media não se ganham as eleições internas nem as gerais, não se modula a opinião pública. As sociedades secretas são essencialmente centros de influência e poder ao mais alto nível e, pela sua natureza secreta, alguma coisa escondem. Portanto, não surpreende que certas pessoas com crimes graves não recebam a punição devida e sejam reabilitadas nos media, enquanto que outras, por crimes bem menores, são rapidamente julgadas, condenadas e destituídas dos seus cargos. Por outro lado, os Estados com os direitos mais garantidos, possuem serviços secretos que fazem as maiores atrocidades, sob o véu da ocultação, do silêncio, do terror e da aniquilação.

Esta exposição simplista e genérica é importante para caracterizar o raciocínio de Chesterton.

 Na verdade Chesterton não gostava do partido conservador, os Tories, que achava defensor da acumulação da propriedade e dos privilégios da aristocracia – “o aristocrata não tem vergonha de viver à custa do Estado”-, mas apreciava a atitude conservadora para a tradição - “a tradição é dar poder de voto aos nossos antepassados e portanto alargar a democracia” - e para não modificar o que está bem – “é necessário repintar várias vezes uma parede de branco para que ela se conserve branca”- Ortodoxia, 1908. Quanto ao partido dos socialistas, o Labour, é conhecido o seu profundo antagonismo, pois “os socialistas negam ao pobre o direito a ser remediado, o direito à propriedade” e os socialistas centram a sua esperança apenas nesta vida e lançam a sua crença e moral nos braços do Estado. “Defendi a Instituição da Família contra a fantasia platónica do Estado”, Autobiografia, 1936. "O meu sentido de justiça, liberdade e igualdade é um pouco diferente do que é corrente hoje em dia. Eu defendo a liberdade das pequenas nações e das famílias pobres. Defendo os direitos do homem contra todas as formas de super-homem. Defendo a propriedade dos pobres. Eu não compreendia o que queria dizer liberdade até a ouvir chamar pelo seu outro nome, a dignidade humana", Autobiografia, 1936.

Critica também a ideia de que, se a maior parte dos homens não abraça o ideal socialista, é necessário um outro homem, iluminado, que compreenda este ideal. Tal como dizia Nietzsche e antes, Hegel e Marx, com o seu “übermensch”, cujo conceito conduziu a Auschwitz, a Hiroshima e ao Gulag. “Defendi os sagrados limites do homem contra aquilo que Shaw, Nietzsche e outros socialistas, consideraram os poderes ilimitados do super-homem. O homem foi feito mais sagrado que qualquer super-homem, porque os seus limites se tornaram sagrados como uma casa, por causa daquela gruta talhada na rocha onde Deus se fez menino", escreveu pouco antes da sua morte, em 1936. A propensão socialista para pertencer a sociedades secretas teosóficas como a de madame Blavatsky, a quem Chesterton chama bruxa em “Os disparates do mundo”, e a Fabian society também são motivo de crítica. Porque não são democráticas e porque procuram outro “Theos” incluindo no seu seio aqueles que apenas combatem Deus. Uma espécie de relação Lenine, socialista, com Bakunin, anarca, ambos inimigos de Deus. Inimigos entre si, ligados por um ódio comum à religião e à tradição.

Finalmente, Chesterton militou no partido liberal, mas rapidamente se desiludiu com a política, pois concluiu que quem manipula o curso de um partido, mesmo o partido liberal, é sempre a plutocracia, com o seu dinheiro e influência na edição dos jornais.
“Outro exemplo da ironia humana é que é mais fácil morrer na guerra do que dizer a verdade na política" Autobiografia, 1936.  
"Os políticos têm que ser progressistas. Têm que viver no futuro porque sabem que apenas fizeram asneiras no passado." Chesterton, Confessions and Denials, 1935.
“Os homens de quem as pessoas esperam que se ocupem do bem público estão demasiado ocupados para aceitarem o cargo. Mas o político está sempre à espreita. Ele é a pestilência do tempo moderno. O que deveríamos fazer era converter a política numa dimensão unicamente local. Manter os políticos suficientemente perto para os podermos esmurrar. Os aldeões que se juntam debaixo da maior árvore da aldeia bem que os podiam lá enforcar. É surpreendente como tão poucos políticos são enforcados.”, Chesterton, 1921, The Cleveland Press Interview.

António Campos

sábado, 16 de março de 2013

Salut, Francisco!






Tivemos o privilégio de testemunhar no dia 13, dia de Nossa Senhora de Fátima, uma singular ocorrência na
Igreja Católica: a eleição de um Papa, o sucessor de Pedro. Mais singular se tornou, porque o Cardeal escolhido não é tão novo como se esperava, não é exatamente progressista, é pela primeira vez um sacerdote da Companhia de Jesus, pela primeira vez provém de fora da Europa, um latino-americano, e escolheu um nome que jamais tinha sido escolhido por qualquer eleito, Francisco.

O silêncio que se seguiu à sua nomeação, entre os presentes na Praça do Vaticano, mostra o quanto os pensamentos de Deus distam dos pensamentos do homem, “tão longe distam a terra do céu, assim distam os Meus pensamentos dos vossos pensamentos”, Is 55, 9. Mostra, além do mais, o quanto o povo católico, i.e., a Igreja, também se deixou contaminar pela “zeitgeist”, o espírito da época em que vivemos.


O Papa não vem do maior país católico do mundo, o Brasil. Nem tão pouco do país onde os católicos contribuem com uma das mais heróicas batalhas intelectuais do nosso tempo, em circunstâncias particularmente difíceis, os Estados Unidos da América. Nem ainda do país com mais cardeais no conclave, a Itália. Mais uma vez a Igreja segue caminhos diferentes das probabilidades humanas. Isso diminui a importância dos cardeais brasileiros, americanos ou italianos não eleitos? Quem assim supor ainda está fora dos muros da cidade de Deus. Os cargos na Igreja são de serviço, não de poder. Ainda agora o eleito comentou com os outros cardeais: “Deus vos perdoe pela escolha que fizeram”.

Os meios de comunicação social laicos logo se apressaram a chamar os grupos de hereges para comentarem a eleição. Como classificar grupos que se auto-denominam como “Nós somos Igreja”, i.e., nós também somos Igreja? Os católicos nunca diriam “nós somos Igreja”, mas sim “nós somos a Igreja”. Só os hereges clamam que também pertencem à Igreja, porque na realidade se encontram fora dela e impõem condições para entrar.

O nome Francisco encerra vários significados. “O hábito castanho daqueles que se cobrem de pó”, dizia Chesterton. Está de acordo com o cardeal que não gosta de convites para almoços, que vive num apartamento e anda de transportes públicos. Também significa missão. A missionação e literacia da Companhia de Jesus. Está de acordo com um homem que lê Fyodor Dostoievski e Jorge Luís Borges. Um chestertoniano. O seu primeiro pedido para a oração do povo por ele, recordou-nos Santo Agostinho. A sua oração à Virgem Maria na dominicana Santa Maria Maggiore, revela-nos a sua catolicidade. Para os católicos que se ocupam das profecias apocalípticas, o Espírito Santo proporcionou-lhes o Papa do “Fim do Mundo”. Também eles não se podem queixar. Deus, como sempre, revela-nos que tem sentido de humor.

Sobra, contudo, uma dúvida.

Por várias vezes a confraria do avental expulsou os jesuítas, confiscando-lhes as propriedades e património. Em Portugal, com a I República, uns expulsos, outros na prisão, outros assassinados. Um dos mais célebres foi António Paulo Ciríaco Fernandes que viria a desenvolver uma actividade prolífica no Brasil e é referenciado várias vezes por Gustavo Corção, sobretudo na sua crítica à aproximação marxista de Maritain. Já com o Marquês de Pombal tinha acontecido algo de semelhante. Património confiscado, prisão, assassínio e expulsão, de que resultou o fecho dos colégios e um país sem ensino secundário por uma inteira geração.

A dúvida que fica, uma perplexidade que só o tempo poderá revelar, é que relação vai ter a confraria com este jesuíta mariano e frugal, que não precisa de muito para viver com dignidade e que não acredita em almoços grátis. Temos um Papa Francisco, ou seja, etimologicamente, um homem franco, livre, liberto pelo desapego voluntário. A Igreja é feita de homens livres que acreditam, não na “ashlar” ou pedra polida, mas sim na pedra angular. Aliás, o aviso ressoa pela eternidade: “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular” Mt 21, 42.

Jorge Mario Bergoglio tem algumas publicações sob a forma de artigos e livros, desde “Meditações para Religiosos” de 1982, passando por “Diálogos entre João Paulo II e Fidel Castro” de 2004, escrito após a viagem papal a Havana em Janeiro de 1998, em que foi assistente de João Paulo II, até “Nós como cidadãos, nós como Povo” de 2011. Uma fonte preciosa para conhecer o pensamento do jesuíta tímido e austero, que luta com a mesma determinação, contra marxistas e plutocratas. 

Esteve contra a liberalização do aborto e o casamento homossexual:
“Sem a família que reconhece a dignidade da pessoa por si mesma, a sociedade não consegue perceber este valor nas situações limítrofes. Somente uma mãe e um pai podem dizer com alegria, com orgulho e responsabilidade: vamos ser pais, concebemos o nosso filho. A ciência olha para isso de fora e faz indagações sobre a pessoa que não nasce, do centro, da sua dignidade; para concluir que o aborto nunca é uma solução. Temos que escutar, acompanhar e compreender a partir do nosso lugar para salvar as duas vidas: respeitar o ser humano menor e indefeso, adotar medidas que possam preservar a sua vida, permitir o seu nascimento e depois ser criativos na busca de caminhos que o levem ao seu pleno desenvolvimento.”

“Uma mulher grávida não leva no ventre uma escova de dentes, tão pouco um tumor. A ciência ensina que desde o momento da concepção, o novo ser tem todo o código genético.”


A palavra abre o caminho mas os olhos precisam de ver. 
Um dos mais fantásticos momentos que tivemos com Jesus Cristo foi o episódio com o paralítico de Cafarnaum. Jesus disse que lhe perdoava os pecados. Uns zombaram, outros ficaram indignados, pois segundo a Torah só Deus tem o poder de perdoar os pecados. Aí Cristo virou-se para o paralítico e disse autoritariamente: “Para saberdes que o Filho do Homem tem neste mundo o poder de perdoar os pecados, digo-te: levanta-te, toma o teu catre e anda” Mc 2, 1-12. 
Sempre os milagres de Cristo se relacionam com o que está a dizer. 
Nunca foram, por assim dizer, um espectáculo por si. 
Isso é o Verbo: palavra e acção. Se acreditamos que é o Espírito Santo que preside à Igreja de Jesus Cristo, é possível, apenas possível, que após a limpidez e iluminação da palavra de Bento XVI se siga a acção de Francisco. 
Para que os nossos olhos vejam...




António Campos

sábado, 9 de março de 2013

Bento XVI e G. K. Chesterton


     Nem sempre os autores que bem conhecemos são aqueles que mais citamos. Por isso, não são abundantes as citações de Chesterton feitas pelo Papa Bento XVI. Mas é bem claro o conhecimento pleno da sua obra, transparecendo nos seus textos muitas vezes a cuidadosa leitura dos livros do escritor inglês. Mais interessante ainda, me parece, é a aproximação que se pode fazer do modo como se pôs ao serviço da verdade, servindo-a, tal como G. K. Chesterton, através da fé e da razão.
     De facto, se Chesterton ficou conhecido pelos vigorosos debates que, no seu tempo, teve com alguns intelectuais de nomeada, o Cardeal Ratzinger protagonizou também debates importantes com filósofos e teólogos contemporâneos, e cuja repercussão ainda hoje perdura. Lembremos, do primeiro, e a título meramente exemplificativo, os célebres Debates Blatchford em 1904, e os vários que teve com Bernard Shaw, entre eles o de 1923, na presença de Hilaire Belloc, mais tarde publicado com o sugestivo nome de “Estamos de acordo?”. Quanto ao segundo, são conhecidos os debates, no Centro Evangélico de Cultura de Roma, em 1993, com o professor valdense Paolo Ricca, da Faculdade de Teologia da Comunidade Valdense, minoria protestante italiana; com o director da revista  MicroMega, Paolo Flores d’Arcais, no Teatro Quirino de Roma, em 2000, perante cerca de 2000 pessoas e sob o tema “Existe Deus? Um confronto sobre verdade, fé e ateísmo”; o debate promovido pela Academia Católica da Baviera, com sede em Munique, com o filósofo alemão Jünger Habermas sobre os fundamentos morais do Estado; e, nesse mesmo ano, com o historiador italiano Ernesto Galli sobre “História, política e religião”.

     Merece uma referência à parte o diálogo estabelecido com o filósofo italiano Marcelo Pera, na altura presidente do Senado, e que teve origem numa lição que, em 2004, este professor italiano proferiu na Pontifícia Universidade Lateranense, e de uma conferência que o então Cardeal Ratzinger deu na Sala do Capítulo do Senado Italiano. Daqui resultou um livro, da autoria de ambos, com o título Sem raízes. Europa, Relativismo, Cristianismo, Islão. Parece, no entanto, haver uma continuidade entre os debates iniciados por G. K. Chesterton, no princípio do século vinte, e os que o Cardeal Ratzinger realizou no final do mesmo século e início do actual. Há, em todos eles, uma permanente ligação entre a fé e a razão, e um respeito natural pelo seu opositor intelectual que quase sempre, se não mesmo sempre, se transforma numa profunda amizade.

     É essa relação também entre a fé e a razão que está ainda subjacente à conhecida obra Hereges do escritor inglês, em que este, com a subtileza e o humor que lhe é particular, põe em causa as opiniões religiosas do seu tempo, que é também ainda o nosso, e abre novos caminhos para questões fundamentais do mundo contemporâneo. Tal como o Cardeal Ratzinger que, serenamente, critica os erros e desvios da cultura ocidental, em relação aos valores e princípios que estiveram na sua origem e criaram a sua identidade, e a vão agora, aos poucos, minando e destruindo. Foi, também ele, chamado o Papa do paradoxo pelo modo como, certeiro e de fino humor, escrevia e falava. Vem a propósito referir a definição correcta de paradoxo, tal como a deu Hilaire Belloc, aplicada a Chesterton, mas que é igualmente devida ao próprio Papa. O paradoxo, afirmou ele, não é qualquer tontice que se diz por meio de contradição, como por vezes julga o vulgo apressado e ignorante, mas, no seu significado original e culto, a iluminação de algo mediante uma justaposição inesperada.

     É ainda e sempre a estreita relação entre a fé e a razão, temperada com o sal da alegria cristã. Pois, como disse o Padre Brown ao desmascarar o ladrão que se tinha feito passar por um falso sacerdote: “ O senhor atacou a razão e isso é má teologia”. A teologia cristã, como o nome indica, embora muitos amiúde disso se esqueçam, tem Cristo como centro. Cristo que é fonte natural de alegria e, por isso, como disse o Cardeal Ratzinger numa homilia, nos leva a compreender a partir de então as palavras de Chesterton, “que os seres humanos, assinalados com a Cruz de Cristo, circulam alegres na escuridão”. E, noutro texto dos anos oitenta, acrescenta, numa linha claramente chestertoniana: A alegria profunda do coração é também o verdadeiro pressuposto do humor e, assim, o humor, sob determinado aspecto, é um índice, um barómetro da fé. Nos anos noventa, na primeira entrevista concedida a Peter Seewald, dirá: Considero muito importante, e diria que também é necessário para o meu ministério, que eu saiba ver também o aspecto divertido da vida e a sua dimensão alegre, e não levar tudo tão tragicamente. Um escritor – refere-se a G. K. Chesterton – disse que os anjos podem voar porque não se levam demasiado a sério. Talvez também nós pudéssemos voar um pouco mais, se não déssemos a nós próprios tanta importância.

     Isto, não obstante o pecado a que todos estamos sujeitos. Noutra homilia, em jeito de meditação dirigida aos sacerdotes, afirmou também o Cardeal Ratzinger: Sem conversão não nos aproximamos de Jesus nem do Evangelho. Há um paradoxo de Chesterton que exprime de maneira apropriada esta relação: conhece-se um santo pelo facto de ele se reconhecer pecador. O Papa do paradoxo, leitor de Chesterton, disse na última das famosas entrevistas ao jornalista alemão Peter Seewald, que a vida não se situa nas contradições mas nos paradoxos. O escritor inglês que, infelizmente, não pôde ler o Papa por que se adiantou a nascer, acrescentaria: “ o homem é muito mais confortado pelos paradoxos”.
      Há ainda, nesta breve ligação entre duas figuras cimeiras da cultura europeia do século vinte, um aspecto que merece ser salientado: a relação de ambos com a arte. A série de ilustrações sobre as estações da Via Sacra feita pelo pintor William Frank Brangwyn (1867-1956) serviu a Chesterton de ponto de partida para um conjunto de reflexões sobre o mesmo tema. O Cardeal Joseph Ratzinger antecedeu de cinco meditações sobre a Semana Santa o álbum que reunia as pinturas religiosas do pintor americano William Congdon (1912-1998), intitulado O sábado na história. Isto, sem falar, naturalmente, nos vários textos, quer de um, quer de outro, sobre arte e estética.
 
     Disse Chesterton: “A humildade acompanha todas as grandes alegrias da vida com a precisão de um relógio”. Bento XVI podia subscrever esta frase. Ele, que soube sempre aliar a simplicidade de quem muito sabe à humildade de quem muito reza. Ele, que incapaz de governar a barca de Pedro, porque alquebrado e doente, quis, ao recolher-se a um convento para orar por todos nós, a sós com Deus, continuar a ser o Servo dos servos de Deus, o Papa da humildade.
 
  
                                        António  Leite  da  Costa