sexta-feira, 28 de junho de 2013

Freud



“As falácias por serem modas não deixam de ser falácias”   Chesterton



Para melhor avaliarmos as críticas contundentes que Chesterton faz a Freud, é indispensável uma primeira aproximação ao seu pensamento e personalidade. 1



Sigmund Freud (1856-1939), médico neurologista, foi o fundador da teoria psicanalítica. Foi muito influenciado na faculdade de medicina por um professor darwinista, C. F. Claus e, no que diz respeito à sexualidade, por Schopenhauer e Nietzsche. Iniciou os seus estudos sobre fisiologia sexual com a disseção do sistema reprodutor masculino de enguias, em 1881, mas não obteve resultados científicos relevantes. Diria sobre Nietzsche: “Na minha juventude ele representava a nobreza que eu não conseguia alcançar.”

Apesar da sua responsabilidade na morte do amigo íntimo E. Fleischl-Marxow, que a seu conselho se viria a tornar viciado em cocaína a partir de 1885, o próprio Freud a tomava, diluída em água, e atestava o seu carácter inofensivo. Escreve à sua noiva Martha Bernays em 1885: “Quando nos reencontrarmos, eu serei um homenzarrão selvagem com cocaína no corpo.” Adopta a cocaína e a hipnose para o tratamento de doenças neurológicas e acaba sendo considerado um charlatão pelos seus colegas. Utilizava a cocaína como terapia de uma “doença” a que chamava neurose nasal reflexa e encaminhou vários supostos doentes para serem operados ao nariz, por esta suposta doença, pelo único colega seu amigo, W. Fliess. Uma das cirurgias teve um desenlace fatal, a de Emma Eckstein.


O falecimento do pai, em 1896, conduziu-o à análise dos seus próprios sonhos e ao reviver da sua infância, pois deste modo acreditava poder combater a sua própria neurose. Na obra que escreve, A Interpretação dos Sonhos, uma auto-análise, Freud afirma que a génese dos seus próprios problemas psiquiátricos se encontra numa atracção sexual pela mãe e numa hostilidade para com o pai; desta auto-análise nasceu o famoso Complexo de Édipo.


Na sua teoria geral sobre o comportamento humano identifica duas pulsões ou forças: um princípio do prazer ou eros e um princípio da realidade ou tanatos. Do conflito entre estes dois princípios resultaria o comportamento e as neuroses ou repressões. A posição de Freud relativamente a estes princípios não é neutral. Ele identifica o eros como um princípio vital e o tanatos como um princípio de morte, de negação. O tratamento das neuroses ou a sua evicção residiria no predomínio do eros sobre o tanatos, que é como dizer, o predomínio dos instintos sobre a razão.

Nietzsche não o diria melhor. Libertação sexual, um eufemismo para libertinagem. A ética, que para Nietzsche era apenas efeito do ressentimento dos débeis, era para Freud uma psicologia de repressão.

Estas pulsões agiriam na mente humana, que possuiria três componentes primários:

-O id, local dos instintos e das pulsões primárias, responsável pelos desejos ou pulsões mais primitivas e perversas. É a sede das pulsões: a orientação sexual, libido ou eros e a pulsão de morte ou tanatos.
-O Superego, contraria e limita o id e representa os pensamentos morais e éticos internalizados na criança pela nefasta educação dos pais.
-O Ego, permanece entre ambos e gere o conflito entre o id e o superego. É a ele que Freud chama a consciência e, da boa gestão deste conflito, nasce o equilíbrio. No ego manifesta-se o id, sob forma daquilo a que Freud denomina “a necessidade de satisfazer o prazer e evitar a dor”. A arte e a religião são manifestações de uma libido sempre insatisfeita.

Nesta gestão é crucial a abolição do sentimento de culpa e a anulação da ética judaico-cristã. Neste, como noutros aspectos é mais uma vez evidente a influência de Nietzsche:
“A dor da consciência é indecente!”


Toda a religião fica reduzida a uma neurose obsessiva:

“A tentativa de obter uma forma de protecção contra o sofrimento mediante uma reelaboração ilusória da realidade é empresa de um grupo considerável de pessoas. As religiões humanas têm que ser classificadas no grupo das ilusões massivas deste tipo”, O Porvir de uma Ilusão, 1927.

O seu ódio religioso era particularmente dirigido ao cristianismo:

“Eu não creio que Cristo fosse um grande mestre. Ele falhou como professor e como divindade. Os seus ensinamentos são ingénuos e destrutivos. Qual dos seus ensinamentos é realista? Amar o nosso próximo como a nós mesmos? Isso é uma tola impossibilidade! Oferecer a outra face?...Para seguir o martírio de Cristo porque os mansos herdarão a terra? Claro que sim, serão nela sepultados! Acham coincidência que Cristo instrua os seus discípulos a serem como crianças para entrarem no Reino de Deus? Isso aconteceu porque o homem nunca aceitou que está só no universo e a religião transforma o mundo inteiro no seu infantário!”





A influência de Nietzsche é evidente:

“Nietzsche tinha um conhecimento mais profundo de si mesmo do que qualquer outro homem que já viveu ou que venha provavelmente a existir.”

A essência do freudismo é precisamente a tentativa de eliminação do sentimento de culpa. Para Freud resulta da tensão entre o desagradável superego e o ego. Não é pertença do homem, não lhe é intrínseco, mas resulta de imposição social. Por isso o homem deve-se livrar dele para dar livre curso às suas fantasias sexuais.

Freud acreditava que todos os seres humanos nascem polimorficamente perversos. O desenvolvimento sexual processar-se-ia em etapas, de acordo com a área em que a libido estivesse mais focalizada: a etapa oral (chupeta), a etapa anal (retenção de fezes), a etapa fálica (manipulação de órgãos genitais), o complexo de Édipo com a focalização incestuosa na mãe.




Freud teve enorme êxito com esta construção da teoria psicanalítica por várias razões:

-Talento literário e imaginação.

-Messianismo: ele acreditava ter a chave secreta para interpretar a vida humana, uma espécie de gnosticismo. Este gnosticismo mereceu-lhe acolhimento junto dos intelectuais. Nada ultrapassa o orgulho narcísico de um intelectual se considerar um eleito, um sábio, separado dos outros homens e conhecedor dos seus segredos, no fundo jogar o papel de um deus.

-Com Marx, Nietzsche, Freud e Einstein, o mundo tinha deixado de ser o que parecia ser, e não se podia confiar na razão, na ética ou na tradição ( interpretação  da História a partir de uma atitude de suspeita): chegara a altura dos instintos.

-O relativismo moral e o anticlericalismo atingira o seu apogeu. Allan Bloom escreve: “Vi crescer neste país o relativismo de valores num grau que ninguém poderia antecipar.” Nos filmes de Woody Allen tropeça-se constantemente em neuroses de índole sexual que são ultrapassadas apenas com boa vontade.

-A análise do que está oculto ou privado, como o mundo onírico ou o sexo, sempre fascinaram o homem, sempre foram um filão inesgotável de inspiração na arte e na literatura.




Após a popularidade, começaram as dificuldades:

-Os fenomenologistas atacaram a suposta natureza científica da teoria psicanalítica ao revelar o seu fundo apriorístico e artificial- no fundo o psicanalista encontra apenas o que espera encontrar.

-Os comportamentalistas sublinharam que Freud neurotizou a sexualidade ao associá-la a incesto, perversão e transtornos mentais. Enfatizaram a elaboração de uma conclusão generalista a partir de dois factos particulares: a obra clássica “Édipo Rei” de Sófocles e a relação particular de Freud com o pai e com a mãe- uma falha grave no método científico.

-Karl Popper desmascarou a natureza não científica do trabalho de Freud: em vez de achados altamente específicos, que pudessem ser postos à prova por meio da redução ao absurdo ou pela submissão ao teste da não contradição, que conduzissem a um quadro global, Freud preferiu a elaboração de teorias de carácter geral a partir de convicções pessoais e de experiências particulares- isso impossibilita a sua comprovação.

-William Sargant demonstrou, a partir da sua experiência com traumatizados de guerra, que doentes altamente traumatizados são altamente sugestionáveis. A psicanálise pode apenas provocar estados de alta sugestionabilidade, em que os doentes expressam as crenças do próprio psicanalista.

-Freud caracteriza o esquecimento das actividades auto-eróticas durante a infância pelo receio de castração, uma vez que as experiências auto-eróticas sem objecto, se reportam remotamente à mãe como objecto. Mas Freud não explica em que medida as actividades auto-eróticas são mais reprimidas do que aquelas que se acompanham de fantasias incestuosas.  Nem tão pouco porque não substituiu a ideia perniciosa de que alguém foi abusado pela mãe, pela ideia mais inócua de que apenas a desejou.

-Voloshinov e G K Chesterton foram as únicas pessoas que salientaram o erro clamoroso de imputar a uma criança o horror do incesto, que é, na verdade, património de uma civilização.


“Uma moda consiste em conceber tudo acerca do nascimento como estando relacionado com o sexo, como outros poderiam achar que tudo consiste em apanhar minhocas…estas modas vão-se muito rapidamente, e nem é preciso picar as bolas de sabão porque elas rebentam por si.
Há, contudo, uma consideração que se deve fazer. 
É típico destas manias que elas não conseguem convencer a mente, mas elas turvam-na. Sobretudo escurecem-na. Todas estas descobertas tremendas e temporárias têm o fascínio singular de que não são apenas degradantes, mas também deprimentes. Nenhuma leva em conta as verdadeiras e sérias conclusões deste mundo. Mas cada uma pode provocar feridas profundas e desastrosas na mente do homem comum…em vez de encontrarmos perdão para os nossos pecados, pecados que cometemos por nossa própria culpa, obtemos a mais fantástica lenga-lenga mental, envolvida no manto da ciência, que nos explica que os nossos pecados não são pecados, e o que quer que seja que tenhamos feito, não foi por nossa culpa. O mal perpetuado por esta falácia tem duas consequências: nós tornamo-nos menos responsáveis pelas nossas acções pecaminosas e aguardamos um perdão que nunca chega. É o casamento de Freud com Darwin, uma pseudo-ciência com outra.” Chesterton, The Century Magazine, 1923.


Mais recentemente, George Steiner afirmaria: “A teoria de meu pai como rival sexual e de um certo complexo de Édipo universal parece-me um melodrama irresponsável."






Freud que procurava fornecer uma confirmação científica para as afirmações formuladas por Nietzsche, percebeu o perigo da insustentabilidade científica do seu trabalho e o perigo de ruína.

Escreve a Jung: “Temos que fazer da teoria sexual um dogma, uma fortaleza inexpugnável.”

Chesterton não o poupa por abandonar os argumentos: “Os ignorantes chamam-lhe Freude, os eruditos chamam-lhe Fróide; eu chamo-lhe Fraude”. Assim, redondinho, sem eufemismos!



Em conclusão: 

Freud forneceu um pensamento de tipo ideológico ou filosófico, não uma teoria científica. 
Porque extrapolou da sua experiência pessoal para todos os neuróticos, depois para todos os doentes mentais e, finalmente, para todos os indivíduos. 
Porque as suas observações não são repetíveis sob as mesmas condições, nem universais; não são verificáveis, não obedecem ao princípio da não contradição. 
Porque o seu método padece de indução e de conceitos a priori
Porque a sua formulação de id, ego e superego encontra semelhanças gritantes com os conceitos cabalísticos e gnósticos de soma, psyque e pneuma. 
Porque a sua elaboração parte de um objectivo apriorístico, não obtido através da ciência: a de fornecer um suporte fisiológico ao conceito cínico de sexualidade, compromisso e culpa, formulado anteriormente por Nietzsche.

Uma criança cujo pai bate na mãe seguramente desenvolve sobre ele um conceito muito diferente daquela outra criança cujo pai partilha carinho e amor com a sua mãe. Repulsa pelo pai que bate na mãe é como a repulsa pelo intruso que nos assalta a casa; não é como a simpatia com alguém que convidamos para jantar.


Abordemos Freud com os olhos de um ateu, numa perspectiva sem Cristo: 

Aquilo que Freud nos propõe é o abandono de um relato religioso de séculos, feito de tradição oral e escrita, alguma datada, como o rolo de Isaías de Qumran, de experiências particulares e colectivas de comunicação com a divindade, por parte de um povo, o judeu, de onde era originário, que se conta entre os povos mais instruídos e eclécticos da Terra, com uma formação que se assemelha à formação militar, uma disciplina religiosa escrupulosa guardada incólume por séculos, por milhões de homens instruídos. Muitos descreveram ter visto e até falado com Deus, mas nunca nenhum descreveu um encontro com o Id

E o que nos dá em troca?

Uma fantasia saída da sua cabeça, a que nem remotamente se poderá chamar ciência. 
Em desespero de causa apela para que a aceitemos como dogma. Nem Epicuro tinha ido tão além. Recusa ver o desejo sexual como parte de algo mais vasto a que se chama amor. 
Ignora ostensivamente que a primazia dos instintos sobre a razão nega o compromisso e induz sofrimento no outro. 
O seu conceito de sexualidade é cínico, frio, impessoal, utilitarista, hedonista, mecânico, bestial, sem consideração pelo outro, sem amor. O sexo aumentou tanto que se tornou um vício e a finalidade mais importante, senão única, da vida. O amor diminuiu tanto que ficou entregue a homens fracos, ignorantes e tíbios.


Para um céptico honesto ainda é mais difícil vislumbrar o vulto imerso do id do que o brilho da face de Cristo. Só ao diabo pode lembrar, chamar a cada criança o assassino de seu pai.





António Campos
Anália Carmo




1 Este primeiro texto remete-nos a uma abordagem a Freud indispensável para compreender as críticas contundentes do seu contemporâneo Chesterton. Ambos morreriam em Londres ou nos seus arredores, Chesterton em 1936, Freud em 1939, após mais de trinta cirurgias a um cancro do palato, um sofrimento, nas suas palavras, indizível, provavelmente por uma injecção letal de morfina a seu pedido.
A segunda parte será inteiramente dedicada à análise de Chesterton sobre Freud.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

G.K. Chesterton e F. Nietzsche



“Era Deus quem, nos últimos dias da Criação, se aninhou sob forma de serpente debaixo da árvore do conhecimento. Então, ele recuperou-se de ser Deus. O diabo é apenas o descanso de Deus nesse 7º dia.”  Nietzsche



Na reconstituição do diálogo virtual entre Chesterton e Nietzsche efectuado pela sociedade chestertoneana americana, assistimos ao confronto entre o pensamento doentio de um escritor louco, solitário e contraditório, e o pensamento sóbrio de um homem são, com família e senso comum.


Friedrich Nietzsche (1844-1900), era uma criança obediente e terna, bondosa, submissa e respeitadora, "o pastorzinho". Esse foi um dos seus paradoxos. A miopia, que o conduziu à cegueira, foi uma das ironias da sua vida. A sua exaltação dos fortes e o aniquilamento dos fracos foi, não só um paradoxo, mas uma miopia.


Muitos atribuem à sífilis terciária a loucura de Nietzsche, incluindo Dale Ahlquist. Mas em Leipzig, onde Nietzsche terá frequentado prostitutas e bordéis homossexuais, ele já era adepto do pensamento de Schopenhauer. E existe aquele pequeno detalhe de que a sífilis terciária só se manifesta 8 a 30 anos após a primo-infecção. E, claro, existem outros problemas a considerar: nem toda a neuro-sífilis produz paranóia e nem toda a paranóia que ela possa causar implica um ódio profundo ao ser humano. Há escritores paranóicos, como Franz Kafka, que parecem sofrer, mas têm empatia, compaixão e um esforço construtivo. Parece que o papel fundamental e determinante da personalidade prévia e do livre-arbítrio, nunca são consideradas no caso de Nietzsche. Tal, só indica a monstruosidade dos seus postulados e afirmações, por mais que a sua prosa seja embriagadora, poética, metafórica, musical. 
Mas ouçamos o que Nietzsche diz de si próprio:

“Meu pai morreu demasiado cedo- faltou-me a conduta severa e superior de um intelecto masculino… Sem dúvida eu era um entendido em sombras.” O Viajante e a sua Sombra, 1879. 

“Convoquei a Roma uma assembleia de príncipes; quero mandar fuzilar o jovem Kaiser. Adeus.” Carta a Strindberg, 1888.  Assina Nietzsche-César, Dionísio ou, o Crucificado.


Por várias vezes falou da necessidade de nos mascararmos, como numerosas seriam as suas máscaras. 
Ficou conhecido pelas suas afirmações de que Deus está morto, de que necessitamos de outro homem, um super-homem, de que a moralidade acabou, uma vez que, no seu conceito, Deus era o guardião da moral. 
Nietzsche iria causar a maior revolução que a Terra tinha conhecido até então, todos os meios justificariam os fins, fazendo a apologia da vontade e da força: “vocês dizem que uma boa causa justifica uma guerra; eu digo que uma boa guerra justifica qualquer causa”. Os fracos deveriam ser eliminados pelos fortes ou, inclusive, nem deveriam nascer, os indesejáveis deveriam ser esterilizados, o casamento só deveria ocorrer sob supervisão médica, muita gente deveria ser sacrificada, a fim de que se salvasse a Humanidade.


Existem duas grandes influências em Nietzsche: Schopenhauer (1788-1860) e Darwin (1809-1882).


O seu pessimismo inicial vem da influência de Schopenhauer:

Deus não existe, a matéria é má, vale mais não nascer, vale mais morrer do que viver, não existe qualquer sentido para a vida. A suprema felicidade é apenas pessoal e consegue-se pela anulação da vontade, pela ascese- como tal, não é possível ser feliz. O suicídio só é mau porque é um acto voluntário. Existe predestinação, não existe livre-arbítrio, nem Bem e Mal; o mundo é uma representação e o homem luta para chegar ao nada, à não existência, a um estado onde se dissolverá, sem individualidade, numa espécie de éter, o nirvana oriental. Não existe uma consciência individual; cada consciência humana expressa tons de uma consciência comum, a que Chesterton chama, A Alma da Colmeia
Sobre o pessimismo, Chesterton afirma que o Mal é tão grande que o Bem não existe, pois tudo o que é material é mau. Por outro lado se Deus é Criador do que é material, então o pessimismo transforma Deus num demónio. 

“Parecia-me que Schopenhauer se estava a dirigir a mim, pessoalmente”, Schopenhauer como educador, Nietzsche, 1874.



De Darwin, numa fase posterior, Nietzsche herda o optimismo:

O mundo está errado porque quem o controla são os mais fracos, uma classe de escravos, que impedem o seu progresso porque utilizam a moralidade, para submeter os mais fortes. 
O mundo pode e deve ser mudado, deve sofrer uma revolução para se livrar da moralidade e de Deus, para que, tal como na natureza, apenas sobrevivam os mais fortes. Os mais fracos devem ser eliminados ou escravizados. 
A vida é a vontade de poder. Os novos valores da humanidade devem radicar no homem forte, poderoso, nobre e belo. 
O determinismo é marcante: o destino individual está no homem desde o início, inscrito num perene movimento da vida, circular, em que tudo o que foi, voltará a ser, o eterno retorno1
Chesterton diria que os optimistas não acreditam num destino do homem após a morte, mas aprisionam o homem num destino antes de nascer! O optimismo, diria ainda Chesterton, tem a concepção de um Mal tão pequeno que nem existe; faz do diabo, Deus.


A época de Nietzsche, suficientemente louca, com a emergência da Prússia e de Frederico, O Grande, com o pensamento de Hegel, Marx, Göthe e Wagner, não foi, contudo, tão louca que tivesse reconhecido a sua obra em vida.
O reconhecimento e identificação viriam mais tarde com o cumprimento das suas profecias. Os seus super-homens chegaram ao poder na revolução russa bolchevique em 1917 e, na Alemanha, em 1933. O resultado foi catastrófico. Milhões de mortos, judeus e cristãos, quer na União Soviética, quer na Alemanha nazi. Os super-homens demonstraram o que Nietzsche verdadeiramente dizia: o homem morreu, não Deus.

Diz Chesterton: Nietzsche sugere-nos que pairemos acima das bestas, abolindo a única coisa que nos coloca a todos acima das bestas: o sentido do pecado.

Dale Ahlquist afirma que Nietzsche queria negar Deus porque queria negar o pecado. E ainda hoje ninguém quer falar de Deus porque ninguém quer falar do pecado, que é a verdadeira razão da nossa separação de Deus.






Mas, mesmo com toda esta catástrofe, este genocídio, em nenhuma época Nietzsche é estudado com tanto entusiasmo e paixão como na nossa época. 
As nossas universidades ensinam as doutrinas de Nietzsche às novas gerações de estudantes, omitindo sempre a sua insanidade e as suas consequências. Mesmo este texto, no meu próprio país, seguramente encontrará uma dezena de académicos que nele encontrarão uma centena de reparos. Curiosamente, contam-se pelos dedos de uma mão os académicos que podem apontar as várias incorrecções que cometemos com Chesterton. E Chesterton previu tudo isto: a ascensão dos nazis ao poder na Alemanha e o despotismo, a pobreza e a escravatura socialista na Rússia. Disse mesmo, em 1934, que a guerra se iniciaria na Polónia. Previu a eugenia do nosso tempo e a chegada ao poder dos plutocratas.

Todos o esqueceram.

Pelo contrário, a insanidade que ele apontou a Nietzsche, progrediu para o Gramscismo, o Existencialismo e o Desconstrucionismo.

“Não existem factos, só interpretações.”

“Tu tens o teu caminho; eu o meu. Quanto ao caminho certo, ele não existe.”

“Todas as coisas dependem da interpretação; a interpretação que prevalece num determinado tempo é função do poder, não da verdade.”

“O sentido da vida e a moralidade depende de cada um. Os fortes expandem-se experimentando tudo e vivendo de forma arriscada. A vida consiste em muitas possibilidades e devemos experimentá-las a todas. As religiões que ensinam a misericórdia, a culpa, a compaixão, o arrependimento, estão erradas. Uma vida boa está sempre em mudança, desafia, é desprovida de culpa, intensa, criativa e arriscada.”


Se a imortalidade não existe, a vida torna-se insuportável. E porque não há-de a vida ser insuportável?2 

A vida de Nietzsche foi. 
Incapaz de constituir família ou de ter uma relação duradoura com uma mulher, excepto a sua irmã. Seriamente doente a partir de 1870, aos 26 anos, até final da sua vida, por mais 30 anos! Onze anos louco, internado num asilo. 
A Polónia, de onde clamava ter as suas verdadeiras origens, viria a ser uma das principais vítimas, de um lado e do outro da fronteira, dos seus super-homens. Morreu em Weimar, o nome da república que foi a antecâmara da ascensão do partido nacional socialista na Alemanha. 


Deus já tinha morrido há muito tempo, antes dele, mas continuava vivo, e, ao que dizem, à frente da sua Igreja. 
Os cristãos encontraram o caminho para fora do túmulo, porque, como diz Chesterton em O Homem Eterno, têm um Deus que lhes mostrou o caminho.

Relativamente a este ateu, como alguns dos outros oriundos da negrura das florestas do Bradenburgo, como sublinha Chesterton, o seu ateísmo escondia um paganismo; o seu paganismo escondia a adoração pelo demónio:

Se um demónio vier e te disser que tens que voltar a viver esta vida uma e outra vez, vezes sem fim, ficarás abatido e triste ou experimentarás um momento de exaltação sublime? Na verdade, dir-lhe-às: tu és o meu deus e eu nunca ouvi nada mais divino!” 3



A “novidade” do pensamento de Nietzsche já tinha sido expressa por Sófocles ou pelos gnósticos, cátaros e albigenses. A sua “novidade” remonta a Heráclito e a Esparta. A sua "novidade" é pagã, pré-cristã. O seu pensamento já acorrera a outros, como Shakespeare, que o atribui a loucos como Ricardo III:

"A consciência não passa de uma palavra que os cobardes usam
 Concebida a princípio para amedrontar os fortes.
 Que os nossos fortes braços sejam a nossa consciência, as espadas a nossa lei!"



O homem comum está com Shakespeare, e considera o cavalheiro alemão um louco.
Só os académicos e as escolas do nosso tempo o consideram lúcido e apelativo.

O que aconteceu à nossa época para o considerar apelativo? Porque se encontra nos programas de filosofia das nossas universidades como um ícone estético? Porque há inteiros sistemas de filosofia e de arte que defendem a eugenia, a fealdade, a ausência de moral, de Bem ou de Mal, da verdade, do correcto significado das palavras?

A resposta que ocorre, a mais horrível e inquietante, é que por baixo desta ideologia se esconde um ódio místico à infância, à maternidade e à Igreja de Deus. A outra resposta, que nos chega na calma pesada e soturna de um Outono, é de que algo grandioso e horrível, algo angustiante e tenebroso, se prepara no interlúdio. E que o crepúsculo se vai abater sobre a terra dos homens; não o dos ídolos, mas o dos demónios.


                                     (legendas em português no canto inferior direito)

António Campos

1 É verdade que aquele tipo de recorrência a que Buda chamava a “Roda da Tristeza”, o pobre Nietzsche lá conseguiu arranjar maneira de chamar Alegre Sabedoria ou Gaia Ciência. Ocorre-me dizer que, se a sua ideia de alegre sabedoria era esta simples e nua repetição, sempre gostaria de saber qual seria a sua ideia sobre uma Triste Sabedoria. Mas é um facto que, no caso de Nietzsche, esta ideia não pertence ao momento do seu exórdio, mas antes ao momento do seu esgotamento. Ela apareceu no fim da sua vida, quando já estava perto do colapso mental e, na realidade, é algo de bem contrário às suas primeiras e melhores inspirações: essas que falavam de uma liberdade selvagem ou de uma inovação fresca e criativa. Pelo menos uma vez, ele tentara partir para novas ideias, mas só lhe serviu para acabar ele próprio partido- pela roda. Chesterton em São Tomás de Aquino, 1925.


2 "O discurso de Nietzsche é forte e sedutor. Mas o seu tom é sempre de desdém. Ele tratava o homem com um desprezo profundo, com um sarcasmo infinito; ele escarnecia mas não sorria. Os seus seguidores têm as mesmas características. Nunca ninguém encontrou uma alegria nietzscheana." Chesterton versus Nietzsche, reconstituição de debate virtual da sociedade chestertoneana americana.



Deverão existir poucos outros exemplos de vida que nos recordem tanto as palavras de Mt 12, 36-38:

Todo o homem 
néscio prestará contas pelas suas palavras. Porque pelas tuas palavras serás justificado e pelas tuas palavras serás condenado.


Iosif Stalin, o carniceiro georgiano, no quarto dia de coma tem um instante de lucidez. Aponta uma das muitas fotografias ampliadas que decoram as paredes- as que tirou com Nadja num Verão feliz: uma menina alimenta um cordeiro com um biberão. É uma ironia. Em 5 de Março de 1953 a agonia recomeça. Desfigurado, tenta respirar. Ergue o braço esquerdo. Svetlana, a filha, dirá depois que foi um último gesto de ameaça, como se quisesse amaldiçoar todos os presentes.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Eça de Queirós e G K Chesterton III



"O jornal exerce todas as funções do defunto Satanás, de quem herdou a ubiquidade; e é não só o pai da mentira, mas o pai da discórdia." Eça de Queirós





Chesterton era filho de um comerciante imobiliário londrino bem sucedido, da classe média, que distinguia a diferença entre viver e ganhar a vida. O testemunho sobre o teatro de bonecos que tinha em casa indicam-nos um lar com carinho, partilhado e feliz. Nada apontava Chesterton à Igreja Católica, uma vez que o seu pai era um liberal na política e na religião, sendo seguidor do Rev. Stopford Brooke e da sua “nova teologia”, uma secessão da Igreja Anglicana sob forma de Unitarismo. Casou, como socialista ateu, em 28 de Junho de 1901, aos 27 anos, por amor, com a irmã da namorada de um amigo, “uma rebelde conservadora contra os dogmas dos libertários”. Ambos pobres, sem meios de subsistência, casaram contra a vontade das suas famílias. A mãe de Frances Blogg considerava Gilbert “um convencido”. 

Antes de conhecer a noiva, tinha feito uns versos a uma hipotética amada:

“Acerca daquela que ainda não encontrei
Pergunto-me o que estará ela a fazer
Agora, ao pôr-do-sol
Talvez a trabalhar, ou a tocar, preocupada ou sorridente,
Estará a fazer chá, a cantar uma canção, ou a escrever,
A rezar, ou a ler?
Será uma pensadora, como eu sou um pensador?
Estará neste momento a olhar pela janela
Tal como eu estou agora a olhar pela janela?”


E as palavras que escreveu a propósito da sua declaração a Frances:

"Se eu tiver alguma relação com esta moça, eu colocar-me-ei de joelhos; se eu tiver uma relação com ela, ela nunca me desiludirá; se eu depender dela, ela nunca me abandonará; se eu a amar, ela nunca me fará ciúmes; se eu confiar nela, ela nunca me atraiçoará; se eu a recordar, ela nunca me esquecerá. Se calhar nunca mais a vou ver. Adeus. Saiu tudo de supetão: mas não deixei nada por dizer..."



Manteve-se a seu lado toda a vida. Tinha uma concepção paritária do sexo feminino ou mesmo superior, por via da maternidade. Opunha-se ao sufragismo, não porque descresse da inteligência da mulher ou do seu valor, mas porque estava convencido que o sufragismo era apenas mais um instrumento dos movimentos libertários, que varriam a Europa desde os finais do séc XVIII e séc XIX, e que apenas se destinavam a combater o matrimónio e a família.


Eça nasceu como filho ilegítimo no seio de uma família tradicional, nado em segredo e dissimulação, com paternidade apenas reconhecida aos quarenta anos. Foi educado pelos avós e por uma ama brasileira, sem a presença dos pais, interno no colégio da Lapa no Porto, até rumar a Coimbra e à Universidade, onde se licenciou em Direito. Foi entre os seus camaradas da universidade e, mais tarde, no Cenáculo, que encontrou o seu “teatro de bonecos”. Neto de um juiz desembargador e filho de um juiz de origem brasileira, que foi par do Reino e fidalgo cavaleiro da Casa Real, a sua carreira fez-se em grande medida no aparelho do Estado. Reservado e de saúde frágil, tímido, alto e esguio, manteve sempre a reserva e a prudência de um diplomata. Eça casou aos 40 anos, num casamento de conveniência, com a filha dos condes de Resende. Até ao casamento, teve várias relações conhecidas com outras mulheres1.


Inicialmente tinha uma ideia da mulher, muito semelhante à de Proudhon2: um objecto de prazer, uma dona de casa, um casamento por conveniência. Mas esse conceito evoluiu, sobretudo desde que chegou a Inglaterra.

Embora os seus romances abordem o incesto, o adultério e a lascívia, Eça era tudo menos um iconoclasta revolucionário nos costumes; era mesmo um empedernido conservador. Mantinha um certo distanciamento com a mulher e os filhos3.


Basta observar um pouco as maneiras da inglesa moderna para se ver que ela poderá ser tudo – uma hábil cavaleira, uma excelente caçadora, um forte cocheiro, uma adorável amante, uma excelente atiradora à pistola, um óptimo companheiro de viagem, um atrevido parceiro para uma partida de bacará –, tudo, menos uma esposa e uma mãe. A maneira como se vestem, o atrevimento dos olhares, o hábito das conversações picantes, o vício do namoro, o gosto pelas bebidas fortes, a paixão pelos exercícios masculinos, a avidez de independência, o desdém público – tudo revela, a quem as conhece, uma tendência irresistível para o amor livre. A isto junte-se o temperamento ardente, uma imaginação excitada, uma natureza voluntária – e compreender-se-á a situação. A única coisa que a retém ainda é o medo da opinião, do escândalo, da impressão; no dia em que este salutar receio diminuir, ou por cair em descrédito ou por o impulso da paixão ser mais forte – a Inglaterra voltará aos tempos mais devassos da sua história, e repetir-se-á a época fatal dos Stuarts.” Crónicas de Londres, 1877.

Chesterton apreciava a exposição pública, a polémica e a contracorrente. Abandonou a Slade School of Arts, após 3 anos,  para trabalhar em jornais: The Speaker, The Clarion, The Daily News, The Daily Herald e fundou o seu próprio jornal- The Eye Witness, 1911-12, The New Witness, 1912-23, G.K.'s Weekly, 1925-36, The Weekly Review, 1936. Tal nunca o impediu de criticar os jornalistas e os jornais, ao apontar o vício das caixas jornalísticas, a superficialidade no tratamento dos temas, a propaganda, incluindo a política, e a sua posse pelos grandes grupos económicos. 

Procurou saber como se processava o financiamento dos partidos políticos, a sua relação com o poder económico na génese da corrupção. Demitiu-se do The Daily News ao dizer dos políticos e empresários, incluindo os liberais Cadbury proprietários do jornal (a família monopolista do negócio do cacau e dos chocolates que moveu uma acção contra o Estado Português para terminar com a economia de São Tomé, e perdeu o processo): 
“Alguns são velhos cavalheiros agradáveis, outros são velhos cavalheiros desagradáveis, outros são apenas velhos, não sendo de todo cavalheiros”. E ainda: “Os melhores ministros de Sua Majestade são agnósticos; os piores, adoradores do demónio.”

Na BBC, onde tinha um programa, de 1932 até 1936, afirmou: “Importamo-nos que se nacionalizem os caminhos-de-ferro ou as minas, mas não nos importamos que se nacionalize a fala ou a língua”, numa referência ao monopólio estatal da BBC. Tinha que entregar previamente os textos que ia ler, mas, a bem da liberdade de expressão, não tinha forçosamente que estar restrito ao conteúdo do texto. A sua mensagem alcançou milhões, embora já fosse famoso desde os 32 anos.



Entre 1904 e 1908, a sua vida era um frenesim: em 1904, na sequência dos seus trabalhos sobre Dickens e Browning, Sir Oliver Lodge oferece-lhe a regência da cadeira de literatura inglesa na universidade de Birmingham, mas ele declina; fazia regularmente prelecções na Igreja de São Paulo em Covent Garden, escrevia em jornais; dava conferências em organizações políticas, económicas, religiosas; escrevia no Daily News e, de 1905 até 1936, no Illustrating London News, a sua coluna semanal, “Our Notebook”; escreveu livros: G. F Watts (1902), Twelve Types (1902), Robert Browning (1903), The Napoleon of Notting Hill (1904), O Clube dos Negócios Estranhos (1905), Hereges (1905), Charles Dickens (1906), O Homem Que Era Quinta-feira (1907), Ortodoxia (1908). Tinha encontros regulares com Joseph Conrad, Henry James, Laurence Binyon, James M. Barrie, Max Beerbohm, Swinburne, George Meredith, Yeats e Granville Barker. Foi por esta altura que ganhou a imagem de distraído, porque estava realmente submetido a uma pressão imensa. Foi uma das razões por que mudou de Battersea para Beaconsfield, nos arredores de Londres.

Chesterton nunca se coibiu de criticar a política do seu país nem de afirmar a sua religião num ambiente hostil. Estudou com afinco a Weltanschauung alemã por forma a melhor a poder expor à luz da verdade. 
Foi um homem contra a corrente, contra a Zeitgeist, um líder de uma minoria, destemido, um visionário, um homem não escravo do seu tempo. 
Um homem que lemos para melhor compreender o nosso tempo e, afinal, todos os tempos. Um verdadeiro intelectual católico, embora se considerasse a ele próprio um homem comum. Afirmava mais ideias do que personagens e, mesmo em O Homem Que Era Quinta Feira, a que Chesterton chamou um pesadelo, e The Flying Inn, as personagens parecem mais ideias encarnadas. Mesmo as histórias de detectives têm para Chesterton o apelo de um filme, um drama, uma imagem pictórica, um simbolismo, um sistema de teologia.
Num dos seus primeiros livros de ensaios, The Defendant, 1902, ele caracteriza a moral da história de detectives: “ao tratar das sentinelas vigilantes que guardam os postos avançados da nossa civilização, tendemos a lembrar-nos que vivemos num acampamento militar, que faz a guerra a este mundo caótico, onde os criminosos, os filhos do caos, não são mais do que traidores que vivem dentro dos nossos muros.” 


Eça também escreveu em jornais, sobretudo o Diário de Notícias em Portugal e a Gazeta de Notícias no Brasil, mas tudo indica que conhecia muito bem o mundo da imprensa e dos seus gatekeepers: "O jornal exerce todas as funções do defunto Satanás, de quem herdou a ubiquidade; e é não só o pai da mentira, mas o pai da discórdia."

Eça limitou-se a fazer um retrato da sociedade do seu tempo. O seu objectivo foi transmitir uma atmosfera, de que era crítico. Existe uma estética e uma crítica. É um romancista e um retratista, não um polémico ou propagandista. A sua timidez levava-o a evitar a arena pública.

Encontra-se contudo subentendido nesse retrato um ambiente psicológico: inicialmente iconoclasta e devoto do positivismo e do progresso, e, no final, de regresso ao homem comum, concreto, à família, à religião, à terra; à rejeição do pessimismo como filosofia.4


Partilha com Chesterton o apreço pela arte: "O apreço exterior pela arte é a sobrecasaca da inteligência. Quem se quererá apresentar diante dos seus amigos com uma inteligência nua?" Ecos de Paris, 1888; o apreço pelo sentimento humano: "É o coração que faz o carácter" ; a desconfiança pela sobrepopulação das cidades, "Os sentimentos mais genuinamente humanos logo se desumanizam na cidade", A Cidade e As Serras, ed post 1901; a desconfiança pelos plutocratas em O Mandarim e o Plutocrata, 1880; a rejeição do ateísmo e do positivismo.5


A preocupação com o homem comum, tão marcada em Chesterton, sofreu uma evolução notável em Eça. Desde a marcada indiferença inicial até ao profundo interesse final – no seu mais ignorado e interessante romance autobiográfico tardio, A Cidade e As Serras, preconiza-se uma relação entre as elites e o povo de forma a que aquelas promovam este, socialmente. O personagem central, Jacinto de Tormes, representa a elite portuguesa afrancesada, desprovida de autenticidade, que enaltece o progresso urbano e industrial e se desenraíza do solo e da cultura do país. Mas Jacinto farta-se de Paris, vai viver para Tormes e trata de melhorar o nível de vida e instrução daqueles que para ele trabalham.

Eça foi seguramente um homem da sua época. Chesterton, uma vez na aurora da Igreja Católica, seguiu sempre em frente, sempre em crescendo. Eça teve com a Igreja uma relação inicial de afastamento de casa e uma relação final de regresso a casa, embora alguma dúvida metafísica, dostievskiana, pareça ter subsistido. O seu diletantismo e o dos seus amigos do grupo "Vencidos da Vida", tê-lo-ão afastado de chegar a porto certo, de fazer uma opção radical, de ruptura definitiva com o passado. Terá ficado pelo conforto da desilusão, pela ambiguidade do "pois", tão portuguesa. Ficou apenas com a angústia de ver envelhecer um mundo que julgara novo, e de ver reaparecer um mundo que julgava velho. 


Eça sempre buscou ser um intelectual e ser reconhecido como tal. O seu alter-ego era Flaubert e os realistas franceses do seu tempo. “Balzac e Dickens são os grandes criadores da arte moderna, mas não devemos ignorar a influência de Flaubert no Realismo. Pela minha parte tentarei seguir Balzac e Flaubert”, Cartas de Londres. Mas que diria ele hoje se soubesse que é considerado o equivalente português do autor de Madame Bovary? Ou que os críticos do conceituado jornal inglês The Observer o equiparam a Dickens, a Balzac ou a Tolstoi? Ou que Zola o considerou melhor que Flaubert?

Chesterton deixou uma mensagem, política, moral, filosófica e religiosa. Viveu e morreu de acordo com ela. A sua preocupação foi alertar o homem comum, sobretudo os católicos, sobre os perigos intelectuais que levariam ao afastamento da família e de Deus, à dissolução social. Nunca recusou vir para a arena pública esgrimir argumentos. Sempre com consideração, cortesia e respeito pelos seus oponentes, que também o respeitavam. Em Do We Agree?, 1923, George Bernard Shaw (Pigmalion/My Fair Lady) admitiu ter admiração por ele; H G Wells admitiu que se estivesse errado e Chesterton certo, esperava ter entrada no Céu pela mão de Chesterton. O seu estilo literário do paradoxo foi bem definido pelo seu amigo Mons. Ronald Knox: “O que é um paradoxo senão a afirmação do óbvio fazendo-o soar como falso?”

Dois homens diferentes, duas vidas distintas, mas dois hábeis pintores de ideias e de ambientes.

Um, jornalista, filósofo, teólogo, escritor policial, poeta, ensaísta e, naturalmente escritor. A sua vida foi sempre uma progressão em crescendo em direcção à sanidade, ao senso comum, ao bom senso.

O outro, um diplomata, sobretudo um romancista, que ambicionava ser grande como os romancistas franceses, mas que terá ficado a dever aos ingleses o seu estilo muito próprio e o seu lugar na História. Como se na sua cabeça Jane Austen vigiasse Flaubert, como se Elisabeth Bennett envergonhasse Emma Bovary. Como se vislumbrasse que Flaubert descreve uma certa alma feminina, com clareza e sem piedade, enquanto que Austen descreve a alma masculina, claramente e com sensibilidade. Como se o suicídio de Emma Bovary fosse inteligentemente substituído pelo afastamento de Maria Eduarda. A sua segunda fase, com A Ilustre Casa de Ramires, Os MaiasA Cidade e as Serras, destrói a imagem de um Eça ícone do materialismo e do ateísmo. Eça terminou a sua vida mais próximo da mulher e da família, da pequena urbe e do homem comum, mais próximo do porto de Chesterton do que do porto de Comte. 

Ambos grandes escritores e de honestidade intelectual indiscutível. Um, um homem da sua época e algo determinado pela sua circunstância, o outro, um homem de todas as épocas e de todas as circunstâncias.

Chesterton é maior do que Eça. Porque Eça retratou o espírito do seu tempo, enquanto Chesterton retratou o espírito humano. Eça retratou o homem como um animal social, Chesterton retratou o homem como um ser espiritual. Eça retratou a alma do ambiente, Chesterton retratou a alma humana. Eça mostrou-nos o vício e o deboche social da sua época e de todas as épocas. Chesterton deixou-nos uma mensagem espiritual para a nossa época. Sobretudo porque reconhecia que a Inglaterra do seu e do nosso tempo tinha já perdido Jane Austen para sempre. “Jane Austen pertence ao mundo desaparecido de antes desta idade gloriosa do progresso para a qual eu escrevo.”The Victorian Age in Literature, 1913.


“Para os romancistas é como se perdêssemos o melhor da família, o mais esbelto e o mais valido. Tal que começou pela estranheza acabou pela admiração”. 6
  
Carta escrita a 23 de Agosto de 1900 em que Machado de Assis expressa uma generosa e irrestrita admiração por Eça de Queirós.
                                                       “Da miséria fui escolhido” 7
                                              

António Campos

Anália Carmo (revisão e correcção)



Visita virtual à Casa de Tormes: http://www.feq.pt/vvfeq/index.html



1 Frank F. Sousa em “Cartas de Amor de Anna Canover e Mollie Bidwell para José Maria Eça de Queiroz, Cônsul de Portugal em Havana”, Lisboa, Assírio e Alvim, 1998, e o caso de “a bela desconhecida de Angers”, que justificou um livro de José Augusto França.

2 O filósofo Proudhon que foi uma grande influência para os anarquistas, defendia a mulher como um objecto de prazer do homem e a ele sujeita, devendo no entanto ser figura de proa dos movimentos libertários, para resgatar a mulher da tirania do matrimónio e a encaminhar para o serviço do falo. A letra A dentro do círculo significa “Anarquia é Ordem”. O círculo para ordem e A para anarquia. É uma analogia do lema Ordem e Progresso de August Comte.

3 Existe uma carta de Emília de Castro Pamplona (1857-1934), sua mulher, em que esta se queixava da indiferença com que o marido a tratava, dizendo-lhe que não era uma analfabeta e que pelo menos merecia receber um exemplar do jornal que ele acabara de fundar.



4 “O Pessimismo é uma teoria bem consoladora para os que sofrem, porque desindividualiza o sofrimento, alarga-o até o tornar uma lei universal, a lei própria da vida; portanto retira-lhe o carácter pungente de uma injustiça especial, cometida contra o sofredor por um destino inimigo e faccioso! Realmente o nosso mal amarga-nos quando contemplamos ou imaginamos o bem do nosso vizinho - porque nos sentimos escolhidos e destacados para a infelicidade, podendo, como ele, ter nascido para a fortuna. Quem se queixaria de ser coxo - se toda a humanidade coxeasse? E quais não seriam os urros, e a furiosa revolta do homem envolto na neve, friagem e borrasca de um Inverno especial, organizado nos céus para o envolver a ele unicamente - enquanto em redor toda a humanidade se movesse na benignidade de uma Primavera? (...) O Pessimismo é excelente para os Inertes, porque lhes atenua o desgracioso delito da Inércia.”, A Cidade e As Serras, 1901, ed post.






Positivismo e idealismo publicado em Julho de 1893 na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro e coligido no volume Notas contemporâneas:

“…O modo brutal e rigoroso com que o positivismo científico tratou a imaginação, que é uma tão insuperável e legítima companheira do homem como a razão...Eu, por mim, registo os factos. E penso que, agora, que o homem tomou posse da sua ardente companheira, a imaginação, e que tornou a provar as delícias que só ela lhe pode dar, não consentirá, nestes anos mais chegados, que o sequestrem dessa Circe adorável que transforma os seus amigos, não em porcos – mas em deuses.


É uma outra e renovada ansiedade de descobrir, neste complicado universo, alguma coisa mais do que força e matéria; de dar ao dever uma sanção mais alta, do que a que lhe fornece o código civil; de achar um princípio superior que promova e realize, no mundo, aquela fraternidade de corações e igualdade de bens, que nem o jacobinismo nem a economia política podem já realizar; e de achar, enfim, alguma garantia da prolongação da existência, sob qualquer forma, para além do túmulo. Esta é realmente a grande ansiedade, porque quanto mais a vida para cá do túmulo se alarga em actividade e se multiplica em força, mais profundamente se infiltra na alma a ânsia do não cessar... Em suma, esta geração nova sente a necessidade do divino.


Mas onde esta reacção contra o positivismo científico se mostra mais decidida e franca é em matéria religiosa. Ah! O nosso velho e valente amigo, o livre pensamento vai atravessando realmente uma má crise! Talvez a mais aflitiva que ele tem afrontado, desde que nasceu sobre os claros céus helénicos e que balbuciou as suas primeiras lucubrações cósmicas e éticas, sobre os joelhos de Tales e de Sócrates.


…Os simbolistas com bocados esfumados de verbo e farrapos indecisos de sentimento arranjam-nos um desses nevoeiros poéticos onde as almas agora têm a paixão de se aninhar e de se esconder.”


6  "Para os romancistas é como se perdêssemos o melhor da família, o mais esbelto e o mais valido. (…) Por mais esperado que fosse esse óbito, veio como repentino. Domício da Gama, ao transmitir-me há poucos meses um abraço de Eça, já o cria agonizante. Não sei se chegou a tempo de lhe dar o meu. Nem ele, nem Eduardo Prado, seus amigos, terão visto apagar-se de todo aquele rijo e fino espírito, mas um e outro devem contá-lo aos que deste lado falam a mesma língua, admiram os mesmos livros e estimavam o mesmo homem." (carta a Henrique Chavez publicada pela Gazeta de Notícias em 24/08/1900).

Camilo Castelo Branco, apesar da Questão Coimbrã que opôs Romantismo e Realismo, comentando a estreia de Eça na literatura portuguesa com o romance O crime do padre Amaro, prognosticava: "Admirável. Obra-prima que há-de resistir como um bronze a todas as evoluções destruidoras das escolas e da moda."

7 "What are we going to play? Knocking on Heaven’s door. This is Jesus. We love your early work. Follow, follow that man. He…He…we all do. Now, Matthew here, has got the right T shirt. He’s got a friend of mine on it. A friend of mine…Who got hurt. He’s lost his way. And now he’s loosing it too. And I thank God this evening, That I am here with you. Beautiful boy, With a beautiful way of see in the world. Beautiful boy, And he loves the girls. Beautiful man…Although there was friction inside him. Could he have made a kind of peril instead? Now we’re Knocking on Heaven’s door.