"O homem é a medida de todas as
coisas", Protágoras
Escrever sobre Kant
(1724-1804) de forma acessível não é fácil. Kant escondeu o cerne do seu
solipsismo num primado de categorias, juízos, críticas (da razão pura, da razão
prática, do juízo). A sua linguagem parece a linguagem de um iniciado na escola
pitagórica. Ocorre a ideia de que raras são as pessoas que realmente leram a
obra de Kant e menos as que a entenderam bem, embora existam muitos arautos do
virtuosismo da sua filosofia. Sobretudo da sua ética. Por vezes os entendidos
parecem ser os menos objectivos. Ocorre-me o ex-presidente do Supremo Tribunal
de Justiça, que emitiu uma série de boçalidades sobre a primazia da moral
kanteana sobre a moral cristã.
Esse professor abstracto, que escrevia
em estilo abstracto sobre questões abstractas, é a fonte primária da ideia mais
perigosa de todas para a fé (e, portanto, para as almas): a ideia de que a
verdade é subjectiva.
Os simples cidadãos da sua Königsberg
natal (actual Kaliningrado, Rússia), onde o filósofo viveu e escreveu durante a
segunda metade do século XVIII, parecem ter entendido isso melhor do que muitos
académicos profissionais, porque lhe deram o apelido de “o destruidor” e davam
o seu nome aos cachorros.1
Kant é o cerne da filosofia moderna. Se Descartes
colocou o homem no centro do mundo, Kant forneceu-lhe uma ética alternativa à
ética cristã e construiu um sistema centrado no homem, uma espécie de torre de
Babel. Deus deixou de poder ser conhecido e teve que se submeter, se é que
realmente sobreviveu, à ética dos homens. O contrato social de Rousseau
atribuiu à lei o valor do dogma, retirou o foco do bem geral, para o centrar no
indivíduo, enfraquecendo, por consequência, a família. Ao afirmar que “o que se
pergunta num Parlamento quando se propõe uma lei não é se as pessoas aceitam ou
rejeitam a proposta, mas se ela está em conformidade com a vontade geral que é
a vontade delas”, retira-se ao indivíduo a possibilidade de efectuar um juízo
crítico sobre a lei em si e a depositar nas mãos dos deputados “o sentimento da
vontade geral” - que realmente expressa o interesse das classes dominantes – e
que deve ser tomada como a vontade da própria pessoa. Rousseau viria a ser uma
das maiores influências em Kant, juntamente com o empirismo de Berkeley e Hume
e o mecanicismo de Newton. Após Kant tudo se submete à lei, até o pensamento
humano.*
Mais do que qualquer outro pensador,
foi Kant quem impulsionou a deriva tipicamente moderna da objectividade para a
subjectividade (exactamente o inverso do que ocorreu na física coperniciana,
porque colocou o homem no centro do “mundo”). Isso pode parecer
bom até nos darmos conta de que implicava a redefinição da própria verdade como
algo subjectivo. As consequências dessa ideia têm sido catastróficas.
Quando conversamos com alguém que não
crê, percebemos que o obstáculo mais comum à fé hoje em dia não é nenhuma
dificuldade intelectual honesta (como o problema do mal ou o dogma da
Trindade), mas a convicção de que a religião não pertence ao campo dos factos
nem das verdades objectivas. Assim, qualquer tentativa de tentar convencer outra
pessoa de que a fé é verdadeira – objectivamente verdadeira, verdadeira para
todos – passa a ser considerada de uma arrogância intolerável.
De acordo com essa mentalidade, a
religião é teórica, não prática; tem a ver com valores, não com factos; é
subjectiva e privada, não objectiva e pública. O dogma seria um “extra”, e um
“extra” daninho, porque fomentaria o dogmatismo. Ou seja, a religião, no fundo,
não passaria de uma ética. Além do mais, uma vez que a ética cristã é muito
parecida com a ética das outras grandes religiões, pouco importa ser cristão ou
não; o importante é ser “boa pessoa”.
Kant é em larga medida o responsável
por esse modo de pensar. Ele ajudou a enterrar a síntese medieval entre fé e
razão, e descreveu a sua filosofia como “tirar do caminho as pretensões da
razão para abrir espaço à fé”, como se fé e razão fossem inimigas, não aliadas.
Assim, consumou o divórcio entre fé e razão iniciado por Lutero.
O filósofo pensava que a religião jamais
poderia ser objecto da razão; deveria ser unicamente uma questão de sentimentos,
de emoções e de atitudes. Esse postulado influenciou profundamente a maior
parte dos educadores religiosos actuais (entre os quais redatores de catecismos
e teólogos), que deixaram de lado a rocha-mãe da fé, os factos objectivos
narrados na Sagrada Escritura e resumidos no Credo dos Apóstolos.1
Quanto ao conceito de aquisição do conhecimento, Kant
inicia a sofística moderna. Tal como os antigos sofistas, cobrava para dar
educação, concentrada no logos ou discurso, usando estratégias de argumentação.
Foi o primeiro filósofo após a Idade Média a tornar-se um académico
profissional. Esta profissionalização da filosofia ficou institucionalmente
firmada após Kant.
Os sofistas afirmavam que a virtude é passível de
ser ensinada e é relativa, pois a moralidade ou imoralidade de um acto
não poderia ser julgada fora do contexto cultural em que aquele ocorreu. A
principal doutrina sofística consiste numa visão relativa do mundo
(contrariamente a Sócrates que, sem negar a existência de coisas
relativas, buscava verdades universais e necessárias). Não é o ser humano quem
tem que se adaptar a padrões externos a si, que sejam impostos por qualquer
coisa que não seja o próprio ser humano.
Para Górgias, mesmo que se admitisse que o "ser" existisse, seria impossível captá-lo. Mesmo que isso fosse possível, não seria
possível enunciá-lo de modo verdadeiro e, portanto, seria sempre impossível
qualquer conhecimento sobre o "ser". Os
sofistas tentavam explicar o mundo fenomenal, sem recorrer a quaisquer
princípios fora dos fenómenos. Eles acreditavam que isso poderia ser feito
incluindo o observador dentro do mundo fenomenal. A sua recusa em ir além do
fenómeno era, para Platão, a grande fraqueza no seu pensamento. O que Górgias
atacou não foi a realidade percebida, nem o poder de a perceber, mas a
tentativa de atribuir existência ou não (com as implicações metafísicas de uma
tal operação) ao que percebemos à nossa volta2. O paralelo com Kant
é inevitável.
Contrariamente ao que se crê, no nosso tempo, a
“iluminação” alemã, chamada Ilustração, Aufklärung,
assentava, na Prússia, não só num ambiente de liberdade vigiada e cerceada, mas
de dependência e coacção de artistas e filósofos para com os seus senhores,
mecenas políticos. Por isso Kant elabora para Frederico, o Grande (1712-1786),
o mote: “Obedeçam e serão capazes de raciocinar tanto quanto quiserem!” e
Frederico, o Grande, adopta a máxima: “O meu povo tem a liberdade de dizer o
que quiser, desde que obedeça.”
Kant era um homem que o comum dos mortais
consideraria um maníaco desequilibrado3:
Viveu sempre no mesmo sítio, Königsberg, de onde
nunca se afastou mais do que 40 Km, comia apenas uma refeição por dia,
efectuava uma maquinal caminhada diária sempre às três horas da tarde e sempre
com a mesma duração de 30 minutos. Apenas não a efectuou duas vezes em toda a
sua vida: um dia para saber pelo carteiro notícias da Revolução Francesa, outro
dia porque se embrenhou na leitura do livro Emílio,
do suíço J. J. Rousseau (1712-1778), um manual de educação escrito por um homem,
misantropo, que colocou todos os seus cinco filhos num orfanato e depois
escreveu um livro sobre educação. Viveu sempre apenas com o seu criado, Lampe,
até o despedir no final da sua vida por pretenso assédio sexual. Lampe,
ex-soldado do exército prussiano, tinha ordens expressas para o acordar todos
os dias às 4.55h da manhã com o berro: “HERR PROFESSOR; SÃO HORAS!”
A vida que viveu, de maneirismos, de estereótipos,
de hábitos deprimentes (como até Nietzsche afirmou), foi quase abstracta. Foi
uma ode à educação pietista4 que recebeu, “de extremo rigor e receio,
autêntica escravatura da juventude”. Essa disciplina pedantescamente sombria,
“desses fanáticos”, provoca-lhe uma aversão a todas as formas de religião, que
não se encaixam no espartilho da razão formulada pela sua própria cabeça. Apesar
de apreciar a vida social, não partilha a sua vida pessoal. Exibe sinais de
misantropia: embora desse algum dinheiro às suas irmãs, manteve-se longe do
contacto de todos os seus irmãos por mais de 25 anos. Nunca partilhou a sua
caminhada diária com ninguém pois receava falar e assim respirar pela boca em
vez de pelo nariz, o que na sua opinião lhe provocaria doenças. Também tinha
sinais de misoginia: “O casamento é apenas um acordo com o fim do uso recíproco
dos órgãos sexuais”. Detestava os fluídos corporais, razão porque o seu quarto
não era aquecido, para evitar em absoluto qualquer sinal de transpiração na sua
camisa de dormir.
Kant viveu só, apenas ajudado pelo criado Lampe,
que despediu em 1802. Escreveu no seu diário: ”Nunca mais me deve ser recordado
o nome Lampe”. Entre 1802 e 1804, ano de sua morte, Kant vive um epílogo
atormentado por terrores nocturnos, pela demência, pela desorientação, pela
insónia e o medo de adormecer, pela cegueira, pelo mergulhar cada vez mais para
dentro de si próprio5. É uma ironia. Uma de suas irmãs, de quem Kant
evitou rigorosamente qualquer contacto, tratou dele nos últimos dois anos. Não
a reconhecia. Não sabemos se ela o fez por estrito sentido do dever ou por
compaixão. Ironicamente ficou sepultado em Königsberg, hoje Kaliningrad,
enclave russo. Caíram bombas sobre a sua cidade, a população alemã foi
estuprada, chacinada e deportada, perdeu a nacionalidade, logo para um povo que
o seu Kaiser, Frederico II, considerava bárbaro6.
A primeira ideia que importa reter é que todo o
pensamento de Kant parte do “Eu” e dele nunca chega a sair. Como se, como dizia
Balmes7, tivesse pânico de sair da ilha da sua mente e mergulhar num
oceano de desconhecido - à semelhança do medo que sentiu em abandonar a sua
cidade e conhecer mundo.
Algumas das bizarrias deste método são mais
aparentes, porque objectivas, nas formulações de Kant sobre ciência:
-“Estou seguro de que a orientação do eixo da Terra
pode mudar por influência das explosões vulcânicas.”
-“O período de rotação da Terra está a aumentar
devido ao atrito das marés contra o leito do mar provocado pela lua.”
-“Estou convencido que a electricidade provoca
estranhas configurações de nuvens e uma doença generalizada nos gatos.”
O pensamento filosófico de Kant é marcado pelo
cepticismo, por uma perda de fé, quer na religião, quer na metafísica, quer
mesmo na noção de bondade humana. Por isso as sociedades onde predomina a moral
de Kant, são sociedades onde os cidadãos se vigiam uns aos outros e
imediatamente se denunciam. A sua formulação tem subjacente o princípio de que
todos os homens são maus ou, como diria Rousseau, se tornaram maus. Bom mesmo,
só o selvagem e o nascituro. Em Kant não há lugar à misericórdia nem ao perdão,
mas ao respeito da lei. A moral é uma formalidade e esgota-se na lei. Em Kant a
caridade resume-se ao cumprimento de um dever, independentemente dos seus
resultados práticos. Não existem acções morais exemplares, as acções morais são
sempre singulares. Ninguém se deve sentir feliz por praticar o bem.
“As emoções
humanas representam o mais radical fracasso da razão e do racionalismo, na
medida em que tomam a ética como o aspecto supremo da humanidade, acima do
conhecimento.”8
António Campos
Descarregar PDF: https://www.academia.edu/10287043/Kant_-_Uma_Cr%C3%ADtica_Elementar
1
http://blog.quadrante.com.br/kant-a-verdade-subjetiva/
* Art d’Arriver au Vrai, Philosophie
Pratique, Jaime Balmes, 5éme ed, August Vaton, Paris, 1860
2 Rafael Gambra, História Sensilla de la Filosofia.
Ediciones Rialp, SA, Madrid, 1991.
Os sofistas
ensinavam que todo e qualquer argumento poderia ser refutado por outro argumento,
e que a validade de um dado argumento residiria na verosimilhança (aparência de
verdadeiro, mas não necessariamente verdadeiro) perante uma dada plateia. Dada
sua alta capacidade de argumentação os sofistas são considerados os primeiros
advogados do mundo. São também considerados por muitos os guardiões
da democracia na Antiguidade, na medida em que aceitavam a relatividade da
verdade. Hoje, a aceitação do "ponto de vista alheio" é a pedra
fundamental da democracia moderna.
3 Christopher Want, Kant for Beginners, ed
Richard Appignanesi, 1996. http://hotfile.com/dl/170262997/2a032cc/Kant%20para%20principiantes.pdf
4 Ladislau Mittner, Storia della Letteratura Tedesca, Dal Pietismo la Romanticismo, Giulio Einaudi Editori, Milano, 1964.
Lutero aliou-se aos Príncipes contra o movimento camponês místico e irracionalista, dando origem ao luteranismo ligado e submetido ao Estado. Nasceu assim um protestantismo racionalista, que procurava dar uma interpretação da Escritura mais por meio da pesquisa “científica” dos textos sagrados do que pela inspiração pessoal, que os anabaptistas atribuíam à inspiração do Espírito Santo. Desde então, formaram-se duas correntes no protestantismo:
1 - Uma corrente racionalista, “científica”, ecléctica, do protestantismo, que procurava conhecer os mistérios da Bíblia por meio de uma hermenêutica fundamentada na pesquisa linguística e histórica nos textos sagrados;
2 - Uma segunda corrente mística e irracionalista, que pretendia ser guiada directamente por inspiração do Espírito Paráclito, e que iria dar origem às seitas mais radicais, comunistas e carismáticas, do protestantismo.
Foi nesta segunda corrente, que surgiu a figura mística do sapateiro Jacob Boehme, cujos escritos — profundamente eivados pela Cabala de Isaac Luria de Safed — vai ter uma influência decisiva e profunda no processo religioso, filosófico, artístico e científico de todo o Ocidente.
Foi dos escritos gnóstico-cabalísticos de Jacob Boehme que nasceu o Pietismo de Spenner, o qual, por sua vez gerou a Filosofia Idealista alemã e o Romantismo. Kant, Herder, Haman, Goethe, Schelling, Schleiermächer, Novalis, Hegel, foram de origem pietista.
Lutero aliou-se aos Príncipes contra o movimento camponês místico e irracionalista, dando origem ao luteranismo ligado e submetido ao Estado. Nasceu assim um protestantismo racionalista, que procurava dar uma interpretação da Escritura mais por meio da pesquisa “científica” dos textos sagrados do que pela inspiração pessoal, que os anabaptistas atribuíam à inspiração do Espírito Santo. Desde então, formaram-se duas correntes no protestantismo:
1 - Uma corrente racionalista, “científica”, ecléctica, do protestantismo, que procurava conhecer os mistérios da Bíblia por meio de uma hermenêutica fundamentada na pesquisa linguística e histórica nos textos sagrados;
2 - Uma segunda corrente mística e irracionalista, que pretendia ser guiada directamente por inspiração do Espírito Paráclito, e que iria dar origem às seitas mais radicais, comunistas e carismáticas, do protestantismo.
Foi nesta segunda corrente, que surgiu a figura mística do sapateiro Jacob Boehme, cujos escritos — profundamente eivados pela Cabala de Isaac Luria de Safed — vai ter uma influência decisiva e profunda no processo religioso, filosófico, artístico e científico de todo o Ocidente.
Foi dos escritos gnóstico-cabalísticos de Jacob Boehme que nasceu o Pietismo de Spenner, o qual, por sua vez gerou a Filosofia Idealista alemã e o Romantismo. Kant, Herder, Haman, Goethe, Schelling, Schleiermächer, Novalis, Hegel, foram de origem pietista.
5
Orlando Neves, 80 Vidas que a Morte não Apaga,
Público, 1997, pp. 57-60.
6 GK Chesterton, The Barbarism of Berlin,
1914.
7
Jaime Balmes, Filosofia fundamental, 1852
8 G.Mayos, Gonçal. Filosofía; Curso de
preparación para la prueba de acceso a la universidad para mayores de 25 años,
Barcelona: EducaciOnline, 2008, pp. 1-35.
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