terça-feira, 26 de agosto de 2014

Chesterton Para Principiantes – A Epistemologia



Uma das razões por que Chesterton não utiliza um sistema de pensamento para aplicar à
realidade - cartesianismo, empirismo, idealismo, utilitarismo,... - é porque ele acredita que a realidade é multiforme; parte dela factualmente explicável, outra intuitivamente apreensível e outra fora do âmbito da compreensão humana, o mistério. Qualquer tentativa de aproximação à realidade não deve ser com um sistema, mas sim não sistematizada, multiforme.  A tentativa de encaixar a realidade resultará sempre em deformação ou amputação. É por isso que o pensamento de Chesterton não parece sistematizado, mas ele é inteiramente filosófico, com uma linha condutora. O seu recurso ao paradoxo e à ilustração é a sua abordagem a uma realidade que não repousa apenas na lógica, mas também em emoções, na percepção, na sensatez, na apreciação do resultado da análise. A realidade que apenas aceita a lógica não é racional, porque a emoção, a intuição, a exigência de um resultado conforme ao sentir prático da maioria dos seres humanos, organizados em família e em sociedade, são absolutamente racionais, na medida em que não estão disponíveis para seres irracionais. Chesterton contribui originalmente de dois modos fundamentais: a expressão - que trataremos separadamente como filosofia da linguagem - e a crítica aos sistemas filosóficos e aos filósofos do seu tempo, por comparação com o sentir comum dos homens, de experiência feito, senso comum, num processo de comparação/identificação a que Hegel chamara a consciência-de-si.



DO LIMITE MÁXIMO DO QUESTIONAMENTO AO MÍNIMO MÍSTICO DE GRATIDÃO



O acontecimento do diabolista na Slade School of Arts, obrigou Chesterton a traçar uma linha, a reconhecer um limite ético mínimo para não violar o outro, culminando o seu conflito interno entre dois mundos estreitos: o de que tudo é mente (Hegel, Wilde, Nietzsche) e o de que tudo é matéria (Marx, Shaw). Nas palavras de R. Scruton: “Podemos dizer que o sentido de sacrifício é uma coisa boa, mas apenas se tu sacrificas a tua própria vida; quando sacrificas a vida de outras pessoas passaste dos limites.” Este traçar de limite fez Chesterton voltar à natureza primária das coisas: a existência. A existência é bela porque existe, porque é. É então que é resgatada da sua infância a memória do teatro de marionetas e dos contos de fadas. Porque a criança e o poeta compreendem os factos e são extrovertidos. Eles não os manipulam nem os retorcem com os processos internos da lógica.

Para escapar às complicações da formatação da realidade pela lógica interna, regressou à forma mais elementar de percepção, o êxtase ou encantamento: a atenção e importância que a criança confere ao mundo, como etapa essencial de aprendizagem e ligação ao mundo exterior. Esta simplicidade de percepção conduz à iluminação. O primeiro acto das coisas é o ser. Chesterton viu este centro – o ser – mais claramente do que as próprias coisas: “Se uma coisa não for nada mais, pelo menos ela é; e isso é bom.” E ainda: “A existência reduzida aos seus limites primários, era suficientemente extraordinária para ser excitante. Mesmo que a luz do dia seja um sonho, é um sonho luminoso; não é um pesadelo.” Todo o homem poderia não ter sido, porque a vida é contingente, cheia de acidentes e acontecimentos inesperados, dependente no seu início da decisão de outrem.



ESSÊNCIA E EXISTÊNCIA



Para os existencialistas, como Sartre, a essência precede a existência em quase todos os objectos que utilizamos no quotidiano, excepto no homem. Significa isso que os objectos são primeiro pensados e só depois criados, i.e., primeiro pensamos no objecto para pregar pregos e só depois construímos o martelo que concebemos. No caso particular do homem esse movimento não é admitido, i.e., o homem não foi concebido, simplesmente aconteceu, no decorrer de um longo processo natural mecânico. Entregam a responsabilidade da origem ou causa e da finalidade do homem a um processo, de natureza intermédia como qualquer processo, não porque o homem seja menos complexo do que o martelo, mas porque pensar numa essência para o caso do homem implica a admissão de um intelecto racional infinito criador.






Admitamos então que todas as coisas criadas têm uma raiz dupla: uma das raízes é uma forma ou essência, apreensível pela mente sob a forma de conceito. Mas a outra raiz é informe, uma energia que se encontra presente e na origem de todas as formas ou essências, fazendo-as existir, agir e ser. Os seus equivalentes físicos, seriam a matéria e a energia ou a relação dos líquidos com os continentes. A água enche todo e qualquer continente e adopta a sua forma. É exactamente esta ideia que nos conduz à outra dimensão da natureza da realidade: ela é divina mas é limitada; são os limites que definem a natureza das coisas. São os limites morfológicos que nos fazem distinguir uma árvore de um homem. Qualquer noção de amálgama não respeita o princípio da realidade.

Para dar um exemplo concreto desta dupla raiz na natureza das coisas criadas temos que entender que tudo foi concebido, ou seja, pensado, mas só algumas coisas concebidas são criadas. A essência das coisas é, portanto, anterior à sua existência, mas a existência é-lhe superior, no sentido em que nem todas as essências têm existência, enquanto que tudo o que tem existência se distingue pela respectiva essência ou categoria. Assim, unicórnios e sereias têm essência, mas não existência; podem ser pensados ou concebidos, mas não existem. Por outro lado, as coisas que existem, como um homem ou uma locomotiva, partilham a qualidade mais importante, a existência, mas distingue-os a sua natureza concebida, a essência ou qualidade daquilo que são. Admitindo que a essência precede a existência resulta óbvio o viés existencialista.


OCULTAÇÃO E MISTÉRIO



Mas então se todas as coisas têm em comum a existência, o Mal não é autónomo, na medida em que ele também partilha a existência com todas as outras coisas criadas. Portanto, a dialéctica de Chesterton, não autonomiza o Mal. O Mal não foi concebido como tal; o que aconteceu foi uma deformidade, um afastamento do propósito inicial, uma autonomização unilateral, um afastamento dessa fonte primária da existência, ou luz, no uso racional do livre arbítrio. É nesse sentido que Chesterton vê o que é secreto, a ocultação, como a manifestação das trevas num esforço de manter a impenetrabilidade da luz. Ocultação não significa mistério.

Mistério significa algo que nos cega pela sua luz, algo que não vemos pelo excesso de luz, não algo que se encontra escondido; antes algo que quando tivermos o olhar que lhe é adaptado será revelado. Para usar uma expressão de Kant, nunca será algo que veremos como aquilo que nós lá colocamos, mas algo que veremos pelo que é, pelo conhecimento intuitivo. A ocultação, pelo contrário, é algo que não vemos porque se encontra encoberto pela noite, pela escuridão. Ao menor raio de luz será desvendado. Podem ser difíceis de entender estas diferenças mas, contrariamente ao que afirmava Hegel, o Mal personificado não faz parte do Bem nem é o seu oposto perfeito: não só partilha com ele a existência, mas partilha de outras qualidades, como por exemplo, a razão, o conhecimento, a vontade, a inteligência. Portanto, está longe de ser um vazio, como pretendia Hegel.


A NATUREZA HOLÍSTICA DO CONHECIMENTO



No entanto, se todas as coisas estão ligadas pela existência, o conhecimento é holístico, tudo está relacionado entre si; mesmo se investigamos apenas uma determinada área de conhecimento, seja ela a arte, a filosofia, a ciência, é impossível não ser influenciado pela religião. Para Chesterton, uma filosofia que não leve em conta a teologia, não é verdadeiramente filosofia. Embora noutro sentido, ecoa as palavras de Hegel: “Filosofia é Teologia”. Na verdade, praticamente todos os filósofos fizeram afirmações de natureza religiosa, quer defendendo quer atacando a principal religião do Ocidente, o cristianismo. A teodiceia, a escatologia, a verdade, a ontologia, a existência, o livre-arbítrio na decisão humana e no curso da História, a pessoa de Jesus Cristo, foram temas para praticamente todos os filósofos. Nesse sentido, como afirma Chesterton em O Homem Eterno, os críticos são "filhos" do cristianismo.




A UNICIDADE OU NATUREZA PARTICULAR CONCRETA DO SER



Mas se o conhecimento é holístico, existe autonomia ou não das coisas criadas, ou seja, o ser é unívoco ou análogo? Devemos acreditar portanto num deísmo ou panteísmo, numa divindade amorfa que dirige um universo mecânico como se fosse um relojoeiro ou num plasma mental constituído por todas as mentes humanas, em que não existe livre-arbítrio, ou devemos acreditar num teísmo em que Deus é uma pessoa análoga a nós, apesar de infinitamente diferente, que intervém na História e se preocupa com cada um de nós, que existe livre-arbítrio nas acções do homem e em que o curso da História está sempre em aberto? 

A resposta de Chesterton é clara no livro São Tomás de Aquino, ao dizer que toda a criação é separação e que a criança se separa da mãe no próprio acto de nascer, tal como o artista se separa da sua obra quando ela se encontra terminada.

O ser não se encontra no “Todo” porque isso é um conceito abstracto. A realidade não é “tudo”, mas “cada coisa”, por mais ignóbil ou absurda que seja. Cada uma dessas coisas está à mesma distância do centro…todas as coisas são bonitas porque existem. Este é o argumento do mínimo místico de gratidão que se encontra no artigo O Templo de Todas as Coisas, publicado no Daily News em 24 de Março de 1903. Não deve existir um único homem que não saiba que existe unicidade no ser: as leituras de íris, a pesquisa de impressões digitais e a recolha de ADN dispensam grandes elaborações. No The Speaker em 31 de Maio de 1902: “A grande falácia dos modernos místicos é a de que a religião, o misticismo e a poesia lidam com o abstracto…o abstracto é um símbolo do concreto…Deus fez o concreto, o homem fez o abstracto.”


UMA FILOSOFIA HOLÍSTICA

A filosofia é pois, para Chesterton, uma reflexão de natureza racional sobre a verdade como tendo uma natureza religiosa, sem a qual a filosofia se torna inadequada porque parcial, amputada. A sua filosofia não é menos “filosófica” por ser religiosa, na medida em que a religião é intrinsecamente humana. Para Chesterton, o homem encontra-se presente simultaneamente no tempo e na eternidade. Por seu turno, os filósofos profissionais atribuem à filosofia a área correspondente ao interrogar-se no uso apenas da razão natural.

Chesterton afirma que o meramente natural nunca será adequadamente humano, porque ignora o espírito. Não se compreende o raciocínio como uma função apenas natural, um processo de raciocinar, subjectivo, sem levar em conta as conclusões a que chega que são de natureza espiritual. Se um homem se abandona apenas ao processo de pensar, construindo o seu sistema que aplica a toda a realidade, desancora da própria realidade, negando a relação da mente com o meio externo que está aí. A via que o racionalismo encontrou para escapar do cartesianismo e dos idealismos, psicológico de Berkeley e lógico alemão, foi a do existencialismo. O existencialismo, a volição de Nietzsche, é uma fuga ao cartesianismo e, por isso, é um reflexo dele, uma imagem no espelho. No seu movimento de escapar da razão, Nietzsche teve que negar as normas e regras da percepção e, apesar de enaltecer a vontade, negou o que há de mais precioso na vontade: a possibilidade de escolha entre o destrutivo e o criativo, entre uma coisa e todas as restantes.




O endeusamento da vontade é dionísico, deixa a vontade sem objectivo, leva-a a lado nenhum, é auto-destrutivo: "Todos os cultores da vontade, como Nietzsche, estão, na verdade, vazios de volição. O culto da vontade é a negação da vontade.Todos os actos da vontade são actos de auto-limitação. Desejar a acção é desejar a limitação. Nesse sentido, todos os actos são actos de auto-sacrifício. Quando escolhemos uma coisa rejeitamos tudo o resto. Essa objecção, que os cépticos tinham o hábito de fazer ao casamento, é, na verdade, uma objecção a todos os actos. Qualquer acto é, obrigatoriamente, uma selecção e uma exclusão. Da mesma forma que um homem quando casa com uma mulher renuncia a todas as outras, assim também quando escolhe viver em Roma, renuncia a uma vida cheia de animação em Chicago.”

As reflexões filosóficas de Chesterton são inseparáveis das suas convicções religiosas, embora ele tenha chegado às suas convicções religiosas por meio da sua filosofia, como é descrito em Ortodoxia. Esta convicção tem repercussões no modo como um homem vê a vida e como a vive nos seus vários componentes: religioso, social, ético, metafísico ou estético.

Trata-se portanto de uma falácia discutir qualquer assunto desligado das convicções religiosas de cada homem, sejam elas baseadas na crença em Deus ou no cepticismo, pois a negativa universal é tão indemonstrável, ou mais, do que a existência de um ser racional infinito, que cria e que ama. A religião de cada homem, mesmo a céptica, é inseparável da forma como ele concebe a vida e a realidade: “A verdade é que a filosofia de um homem sobre o universo está directamente relacionada à sua acção na vida.” A filosofia de um homem é uma resposta religiosa à própria vida.




RAZÃO E FÉ


Confiar na razão é um acto de fé na razão – isso prova que a explicação natural não explica completamente o universo. A razão só é confiável se se basear em factos – a chamada enunciação dos primeiros princípios – e os factos dependem da fé nos sentidos. A primeira delimitação ou enunciação do que é a ciência é de natureza filosófica: os primeiros princípios não podem ser provados por factos, são uma escolha da razão. O processo de indução que caracteriza o método científico, i.e., a colecção de factos observáveis, depende exclusivamente da fé nos sentidos. Se formos radicalmente contra a fé acabamos por conseguinte, por ser contra a razão:


"Os homens sabiam que, quando as coisas começassem a ser irreflectidamente questionadas, também a própria razão seria colocada em questão. Sabemos hoje que assim era. Não temos qualquer desculpa para o não saber. Porque hoje ouvimos o cepticismo embater contra o antigo círculo de autoridades, ao mesmo tempo que vemos a razão oscilar no seu trono. Na medida em que a religião desapareceu, também a razão está a desaparecer. Ambas gozam do mesmo género de autoridade básica. Ambas são métodos demonstrativos que não podem ser demonstrados."


A razão só é confiável quando não perde o contacto com os factos, i.e., não nos devemos ficar pelo pensar, que é um processo subjectivo, mas considerar a conclusão a que chegou o pensamento e se ele se adequa à realidade. Embora a razão não esgote toda a realidade: "A razão, isoladamente, encerra em si alguma analogia com a força bruta; aqueles que apelam à cabeça em vez de apelarem ao coração, por mais finos e polidos que sejam, são necessariamente homens de violência. Fala-se de tocar o coração de uma pessoa, mas não se pode fazer nada à cabeça, excepto bater com ela na parede. As necessidades do homem foram sempre certas, os seus argumentos foram sempre errados."


"O materialismo e a visão de que todas as coisas são ilusões pessoais, têm, de algum modo, o efeito de impedir o próprio pensamento. Porque, se a mente é mecânica, o pensamento não pode ter grande interesse; e, se o cosmos não é real, não há conteúdo para o pensamento."





PENSAMENTO ESPECULATIVO


Chesterton faz-nos “ver” mais do que “provar logicamente”, um tipo de pensamento a que Hegel chamou “especulativo”. Por exemplo, alguém vê que a natureza humana está acima da restante natureza ou não vê. Não ocorre a ninguém que a rena pré-histórica tenha feito desenhos de si própria numa caverna do sul de França. Nem nunca ninguém observou uma atitude religiosa num animal irracional. Não ocorre a nenhum homem são que uma formulação de direitos não dependa de uma enunciação de deveres, precisamente porque os direitos de uns são conferidos pelos deveres de outros. Trata-se do problema da responsabilidade, que depende do livre-arbítrio. Ora, nenhum homem mentalmente são exige responsabilidade a um animal. Por isso uma formulação de direitos dos animais é bizarra. O que deve existir é uma formulação de normas e deveres do homem para com os animais. Os nossos cientistas sociais e políticos bem que se deviam preocupar menos com “direitos” e muito mais com sanidade…



Chesterton deixa também um lugar para o mistério, no sentido em que possui plena liberdade em acreditar que determinado acontecimento, após correcta investigação, seja considerado um milagre. O céptico recusa qualquer investigação à veracidade de um milagre, na medida em que o seu dogma o obriga a não acreditar em milagres, pois não acredita na existência do espírito e apenas acredita na existência da matéria. Para ele o que é hoje inexplicável, encontrará amanhã uma explicação científica.

“Acreditar que tudo o que vemos é tudo o que existe é uma loucura tão grande como acreditar que aquilo que vemos não existe realmente: O homem que negar os sentidos ou o homem que só acreditar nos sentidos é louco”.


A confusão a que chegou a filosofia moderna, assente no cepticismo, assenta num equívoco, provavelmente deliberado: a utilização indistinta da palavra mente e espírito, mind e spirit, que no alemão, para aumentar a confusão, é uma única e só palavra: Geist. Assim zeitgeist é a mentalidade de uma determinada época e Heilig Geist é o Espírito Santo. A filosofia da linguagem pode ocultar a realidade, pode confundir. É neste sentido que Chesterton ocupa um lugar único na filosofia moderna: ele é um ilustrador, ele desata os nós.



Uma das imagens do que se afirma prende-se com a actualmente muito popular investigação do mapeamento cerebral por RMN funcional. De acordo com cada pensamento, acção, emoção, "acende-se", após um período de latência, uma determinada área no cérebro. Da mesma forma quando essa área se encontra lesada, essa acção, por exemplo o reconhecimento de si, deixa de poder ser efectuada. Mas isto tem o mesmo paralelo que um automóvel ou um violino: é certo que um violino não toca sem cordas nem um automóvel anda sem o motor, mas é abusivo dizer que ninguém toca o violino ou que ninguém conduz o automóvel. O cérebro é uma coisa material; o pensamento é imaterial.





António Campos 





sábado, 16 de agosto de 2014

Chesterton Para Principiantes - Uma Biografia Psicológica







Talvez seja útil, antes de continuar, referir alguns dados da biografia “psicológica” de
Chesterton ou, por outras palavras, a história de uma metamorfose. Muitos consideram que Chesterton desenvolve um raciocínio metafísico análogo ao cristianismo, simplesmente porque ele é cristão ou porque desde o início teve afinidade com o cristianismo. Na verdade, esta afirmação é tão falsa como afirmar ele era uma espécie de cómico da escrita onde tinha oportunidade de aplicar o seu sentido de humor. Na verdade, são as biografias “cronológicas” que nos indicam um Chesterton que desde o início teve simpatia com o cristianismo e até com o catolicismo, embora imerso num oceano de dúvidas. 


O que sabemos de Chesterton até aos 18 anos, em 1892, altura em que partiu para a escola de arte, encontra-se em documentos dessa altura, como o Notebook, o jornal Debater do Junior Debater Club (JDC) na Escola de São Paulo, no manuscrito que conta a estória do JDC que Chesterton escreveria em 1894, aos 20 anos, e no livro escrito por seu irmão Cecil, Gilbert K Chesterton A Criticism, de 1909. Neste clube, cada membro adoptava um heterónimo com as iniciais do seu nome, pelo que GK Chesterton era Guy Crawford, um artista de fortes tendências socialistas. Seria a perseguição aos judeus, executada pelo estado soviético que lançaria Chesterton no ideal liberal, não seguindo o caminho rumo aos fabianos socialistas que seu irmão e sua cunhada tomariam. 

Por liberalismo, Chesterton entendia um movimento de reforma e progresso, a ser alcançado através do livre-pensamento e a rejeição do dogma – o chamado princípio anti-dogmático de Henry Newman. Chesterton protestaria contra todos os que consideravam a Revolução Francesa como tendo sido um fracasso; defenderia uma educação estatal laica, igual e universal; defenderia que os estudos científicos deveriam substituir os clássicos; mais surpreendente, defenderia abertamente o movimento feminista. Para Chesterton, a religião era apenas uma das faces deste liberalismo humanitário, desenvolvendo uma teologia humanística em que existiriam aspectos da verdade em qualquer credo, fosse ele de natureza religiosa ou secular.




No jornal Debater publicaria os seus Poemas Éticos em que defendia que se deveria destruir a pretensão de “padres ciumentos que se acham donos do dogma da verdade” e substituí-la pela revelação universal de JJ Rousseau: “Embora o fetiche se erga como fetiche, o homem que ajoelha (ainda) é um homem.” Para Chesterton, a história humana não mais será manchada pela palhaçada daqueles que “lutam por um nome e matam por um símbolo.” Chesterton diria que “a patrona dos papistas é uma mulher, e a mulher é adorada tal como o homem por todos os humanistas.” Chesterton escreveria que “todas as fés são símbolos, porque humanas, e o homem é divino.” O poema São Francisco Xavier de 1892, escrito aos 18 anos, refere “a Igreja que lhe lançou um encanto sombrio” e a colectânea Wild Knight and Other Poems, publicada em 1900, aos 26 anos, inclui poemas onde se mencionam ataques “aos padres e ao dogma mesquinho”, reflectindo as suas primeiras convicções, expressas em poemas escritos muito antes da publicação. Chesterton daria ordem mais tarde para que esse seu material fosse destruído porque sentia vergonha de o ter escrito, mas felizmente não foi obedecido.

Quer o seu irmão Cecil, quer dois dos elementos do JDC, Bentley e o seu futuro cunhado Oldershaw, se referiam a Chesterton como “demasiado sério”, como “desprovido de sentido de humor”, ou “o que ensinou os seus colegas como ser formal.” Chesterton também diria que só um homem sério (sisudo) pode apreciar a vida. Descreve-se a si, o presidente do clube, como “um moderno revolucionário que reserva para si o título de iconoclasta.” Nesta altura o teatro de bonecos de seu pai – a recordação de infância que mais tarde referiria como mais marcante – pouco deveria significar. A importância que posteriormente lhe atribuiria deverá relacionar-se com a reviravolta que entretanto aconteceu. Nas palavras de Chesterton: “As memórias mais marcantes de um homem não são aquelas que se consolidam ao longo do tempo, mas aquelas que são subitamente recordadas, por alguma razão, como que puxadas de um abismo.”


Seguir-se-iam três anos na escola de arte, em que se assistiria a um choque dramático entre o ideal liberal e o solipsismo racionalista, o “problema crítico” que assombra o nosso mundo pós-kantiano. Encontrava-se por todo o lado cercado pela dúvida sobre a natureza e a certeza do conhecimento. Por um lado a escola avant-garde, dominada pela estética impressionista, em que as coisas são apenas sensação, são apenas o que parecem, existem apenas dentro de nós, dirigindo a mente para uma filosofia da ilusão; do outro lado o pensamento lógico interno influenciado sobretudo pelo racionalismo francês e pelo cepticismo:

“Encontrei-me num caminho de volta ao meu próprio pensamento. É uma situação algo angustiante; pois pode-se ser levado a pensar que não existe nada para além do próprio pensamento…Eu levei o cepticismo do meu tempo tão longe quanto possível. E levei-o mais longe do que muitos cépticos o levaram. Enquanto que os ateus mais empedernidos afirmavam que não existe nada além da matéria, eu ouvia-os com a calma de morte do distanciamento, suspeitando que não existia nada além do pensamento.” Chesterton teria 20 anos.

O solipsismo apresenta-se como uma espécie de sonho existencial em que nunca se encontra ninguém ou em que se encontra o “eu” para onde quer que se olhe. Chesterton descreve esse sentimento de alheamento no Notebook: “Eu sou o vento errante que beija todas as coisas e que não pode ser beijado.” O esteticismo aético ou impressionismo, de Whistler, de Wilde, ou de Nietzsche, afirmava que as coisas reais não eram mais do que um filme ou um poema e que se pode fazer de uma mentira ou de um assassínio um mero artefacto estético, para além da moral do bem e do mal.




O apogeu do seu solipsismo culminaria no encontro com o diabolista da Escola de Artes, em 1893, tinha Chesterton 19 anos. Essa conversa revelou a Chesterton uma personalidade indiferente aos argumentos, uma espécie de racionalidade inumana cínica, admitindo a razão e a virtude, mas apenas para se lhes opor, desarmando os oponentes por se recusar a discutir argumentos ao não aceitar a primeira premissa, como se se estivesse numa reversão ética: “O que tu chamas mal, eu chamo bem.” 

Mas se o mundo é apenas uma ilusão interna que se experiencia, então todo o mal tem necessariamente que ter origem dentro de nós. Este paradoxo ético levará Chesterton a definir limites morais e a procurar delinear as fronteiras da realidade. Este sim é o limite definido pela personalidade de Chesterton: a necessidade de ter um enquadramento ético que respeite o outro – este é o seu limite mínimo – e por isso mesmo, ele não pode ir mais além. Assim, iniciaria um afastamento progressivo e definitivo quer do solipsismo quer do esteticismo, a “arte pela arte” ou religião do carpe diem. Aos 20 anos a luta intelectual entre a ilusão e a realidade, entre o solipsismo e o realismo, atingira o seu zénite. O liberalismo seria abandonado definitivamente após o Liberation Act de 1911. O fim da solenidade sisuda não esperaria pelo poema Laughter de 1926; seria definitivamente abandonada em O Napoleão de Notting Hill de 1904, onde “a profecia se eleva à altura do fanatismo, apenas para cair numa chuva de risos.”



Esta biografia psicológica como lhe chamei, não possui outro objectivo que não o de melhor compreender a hermenêutica de Chesterton e descrever as linhas de uma metamorfose. Chesterton não desenvolveu a sua teoria do conhecimento a partir da fé cristã; Chesterton estava a léguas da teologia cristã. A sua teoria do conhecimento resultou deste confronto entre dois mundos estreitos: o mundo da mente (solipsismo e impressionismo) e o mundo da matéria. O que Chesterton vai escrever a partir daqui ilustra o modo como ele saiu deste túnel que é na verdade um túmulo, e foi por isso mesmo que ele esteve à beira do colapso. Ao sair deste túnel, Chesterton tropeçou na fé cristã; não foi a fé cristã que o levou a sair do túnel.

Mas não foi Blaise Pascal que afirmou “Tu nunca Me procurarias se não Me tivesses já encontrado” (Tu nunca procurarias se Eu antes não te tivesse encontrado)? Mas claro que este argumento não tem qualquer validade para um ateu e, portanto, Chesterton poderá afirmar, como Dostoiévski, que a sua fé não resulta de ingenuidade, crendice ou beatice; antes que pela dúvida razoável conseguiu o seu hossana.





António Campos