sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Wittgenstein Para Principiantes: O Livro Azul e o Solipsismo


Acabámos o último texto com a conhecida afirmação de Wittgenstein: “Não existe eu!” 

Eu sou o meu mundo. Não existe tal coisa como o sujeito que pensa ou desenvolve ideias, de forma independente do mundo. É mundo que me confere significado e não eu que confiro significado ao mundo. O mundo existe independentemente da minha vontade; a minha mente encontra-se presa neste mundo pelos sentidos. Existe uma linguagem do pensamento no mundo, em que o "Eu" se encaixa como um ponto de referência. Não existe "Eu". Não existe "Eu", porque eu não me posso pensar; a minha mente não pode ser o meu objecto. Eu não me posso encontrar a mim próprio no mundo, mas experiencio o mundo - e o que eu experiencio é a minha experiência. Eu coincido com o mundo; no entanto, o meu mundo é único; mas isso não quer dizer que essas experiências estejam em minha posse, porque, embora sejam as minhas experiências, elas estão no mundo. Eu sou o limite do meu mundo, mas também me encontro limitado por ele, uma vez que não posso sair dele para observar os seus limites.1

Então, quem é esse "Eu" que o solipsista acredita ser o único evento existencial neste mundo? Suponhamos que eu me olho ao espelho. “Eu” posso ver os meus olhos, mas posso ver o “Eu” que vê os meus olhos?

Suponhamos que eu digo: “Eu” vejo a minha mulher; mas posso ver o “Eu” que vê a minha mulher?

Posso separar um pensamento do “eu” pensante, sem ter que recorrer a um outro pensamento?

Quando eu me estou a tentar separar do pensamento que já pensei, eu não estarei apenas a ter outro pensamento?

Portanto, não existe um “eu” que viva isolado no mundo, que veja e pense e confira sentido ao que vê e pensa.

Ou seja, não existe esse “Eu” ou ego que se erga no mundo e confira sentido àquilo que vê e pensa. Pelo contrário, existe uma linguagem do pensamento e o “Eu” é o seu ponto de referência.1

Entrar no jogo da linguagem é não duvidar de certas coisas. Avalizar o "Eu" é a condição de entrar no jogo. A diferença do "Eu" como jogador da linguagem e do "Eu" como tradicionalmente concebido, é que neste último caso, cada linguagem seria privada e imperceptível (ou inteiramente subjectiva) a qualquer outro, em vez de ser pública e adquirida pelo uso.

O sujeito é inseparável do mundo e tem a ele acesso imediato.

É a vida diária que dispensa a evidência. Não dizemos, fora da especulação filosófica, "isto é a minha mão", porque a distância requerida para a dúvida ou conhecimento se encontra inequivocamente ausente.

Não dizemos, "Eu tenho um corpo", porque "Eu" sou esse corpo.

Se alguém afirmar "eu tenho um corpo", poder-se-à perguntar-lhe "quem está a falar com essa boca?". Não existe aqui nenhuma correspondência, não é necessária nenhuma verificação; não porque eu ou Moore o afirmemos, mas apenas porque no caso da minha mão, do meu corpo, simplesmente é.

O meu "Eu" é o local de encarnação linguística.2



Mas a prioridade que continuamos a dar à análise científica, continua a violentar esta unidade, por pensar e pesquisar em termos de correspondência, onde nenhuma correspondência existe.”3


Por conseguinte, eu posso dizer “eu penso”, embora não consiga encontrar no mundo o meu sujeito pensante, porque não existe alteridade. Eu não me experiencio a mim, o que eu experiencio é a minha experiência, porque eu passo por muitas experiências no mundo. Eu e o meu mundo coincidimos, o meu mundo é único, embora ele não esteja na minha posse. Essa é a verdade do solipsismo: o que eu experiencio é a minha experiência e é por isso que o meu mundo é único. Nesse sentido “eu sou o meu mundo.”2


Eu sou o limite do meu mundo, embora não o consiga definir, pois que para o limitar eu teria que sair fora dele para lhe desenhar os limites. Deste modo, todas as introspecções padecem de certeza.

Ecoam as palavras de Chesterton, em Ortodoxia: "Pode entender-se o cosmos, mas nunca o ego; o «eu» está mais distante do que qualquer estrela."





O solipsismo  tem uma dimensão absurda e uma dimensão existencial. É um paradoxo. Quando o solipsista discute com outros a verdade do solipsismo alimenta a sua própria ilusão. Somos por vezes tentados a afirmar que as experiências pessoais são o material em que consiste a realidade, restando-nos uma quantidade de experiências pessoais de diferentes indivíduos, vagas, e em constante mudança. A nossa linguagem parece inadequada para as descrever, parece grosseira, impor a necessidade de uma linguagem mais subtil. Isto só acontece quando filosofamos, porque quando voltamos ao ponto de vista do senso comum, esta incerteza geral desaparece. A dificuldade em filosofia consiste em não dizer mais do que se sabe.

A posição absurda do solipsista consiste em ficar admirado por não haver mais pessoas que pensem como ele, apesar de se encontrar possuído pela crença de que só ele existe. No entanto, defende Wittgenstein, “um problema filosófico não admite uma resposta do senso comum”.3 Defende-se o senso comum do ataque dos filósofos resolvendo os seus enigmas, i. e., curando-os da tentação de atacarem o senso comum.

Sinto-me tentado a dizer que a minha própria experiência é real, mas não sei se isto acontece a qualquer pessoa, porque eu sou eu e não eles. O mesmo objecto pode estar perante os olhos deles e os meus, mas eu não posso penetrar na cabeça deles com a minha, de modo a que o objecto real e imediato da sua visão se torne também o objecto real e imediato da minha visão. Uma mesma ideia surge quando se pergunta se dois livros possuem a mesma cor e se responde que não podem ter a mesma cor porque um livro tem a sua cor e o outro tem também a sua própria cor; ou de que sei quando tenho uma dor, mas não sei ao certo se as outras pessoas sentem dores, porque eu não as sinto. Vejamos este diálogo entre professor (P) e aluno (A) numa sala de aula de filosofia:

P - Tem uma mente?

A - Sim.

- Tem alguma coisa na sua mente?

- Sim.

- Pode dar-me um exemplo do que está na sua mente?

- O senhor.

- Eu estou na sua mente?

- Sim.

- Como chego eu à sua mente?

- A luz traz uma imagem para a retina que depois é conduzida para o cérebro.

- Vê-me a mim ou uma imagem de mim?

- Vejo uma imagem de si.

- Alguma vez me viu a mim?

- Não! Só vi uma imagem de si.

- Como sabe que é uma imagem de mim?

- Já o vi antes e comparo com a imagem anterior que possuo com a de agora.

- Onde está a imagem de mim que usa para a comparação?

- Na minha memória.

- Todas as pessoas nesta sala têm uma imagem de mim?

- Sim.

- O que acontece se alguém lhe falar de mim?

- As palavras chegam-me ao ouvido, depois ao cérebro e a sua imagem surge na minha mente.

- As outras pessoas possuem a mesma imagem de mim?

- Não sei, porque o único método seguro de saber seria observar a mente das outras pessoas.

- Mas quando falam de mim falam da mesma pessoa?

- Penso que sim, mas não estou seguro porque o sentido das palavras que o exprimem podem significar uma coisa diferente para outra pessoa.

- O sentido das minhas palavras está na sua mente?

- Sim, porque a imagem de si está nos meus pensamentos que correspondem às palavras que  estão na minha mente.

- Se virmos um livro azul, podemos concluir que vemos a mesma cor?

- Não podemos ter a certeza. Porque a imagem que tenho na mente pode não corresponder à imagem que o senhor tem na sua mente.

- Podemos dizer que estamos a falar do mesmo livro?

- Podemos, mas não podemos dizer com certeza porque as minhas palavras são expressão dos meus pensamentos que estão na minha mente.

- Portanto as palavras são expressão dos pensamentos e o significado das palavras está na sua mente?

- Sim.4

Bem vindos à nova metafísica da modernidade: uma escuridão. Alguém que separa o seu ser da sua mente e dos seus sentidos. O que toma como certo é aquilo que ele pensa estar na sua mente; que ele pensa…não o que está no mundo. Mas ele não pode ver o que se passa dentro da sua mente.

Era a isto que Wittgenstein chamava confusão intelectual e uma fonte de metafísica. A filosofia é uma batalha contra o enfeitiçamento da nossa inteligência por meio da linguagem. O tratamento filosófico de uma questão é como o tratamento de uma doença. A profundidade da filosofia moderna reside num jogo de linguagem: “O meu objectivo é tratar o absurdo.”1



Esta noção de que os dados dos sentidos de um homem são privados é um enunciado metafísico e resulta do uso dos métodos da ciência, do gosto por generalizações e do desprezo, em filosofia, pelo que é particular. A linguagem da ciência é, por vezes, indevidamente usada para descrever acontecimentos do senso comum, induzindo uma incerteza que desaparece sob critérios da linguagem do senso comum.

Por exemplo, os cientistas afirmam que o chão que pisamos não é sólido, uma vez que a estrutura da matéria é essencialmente vazia. Isto é verdade no jogo de linguagem da ciência, mas nunca no jogo de linguagem do senso comum. Suponhamos que as partículas atómicas em vez de estarem muito afastadas entre si, estavam próximas como a areia num monte de areia ou em areias movediças. Seria lícito afirmar que o solo que constituíam seria sólido, “firme”, “compacto”, no seu sentido etimológico, apenas por não existir espaço entre as partículas?

A linguagem da ciência, ao destacar a ultra-estrutura da matéria, ilustra, ao definir as distâncias relativas a que se encontram as partículas atómicas e moleculares, a própria definição do que é sólido no contexto macro.

Do mesmo modo, como posso eu ter pena de outra pessoa se não acreditar firmemente que essa pessoa tem dores? Nós não sentimos esse tipo de dificuldades na vida quotidiana, porque admitimos que as coisas são como parecem ser ao senso comum.

O que provoca a maior parte dos problemas em filosofia é o facto de nos sentirmos tentados a descrever o uso de palavras importantes para tarefas “ocasionais” como se elas fossem palavras com funções “habituais”. É um erro afirmar que em filosofia consideramos linguagem ideal em contraste com a linguagem comum. Isto leva-nos a crer que poderemos fazer algo melhor do que a linguagem comum, mas a linguagem comum é perfeita. A ideia de que para tornar claro o sentido de um termo geral era necessário descobrir o elemento comum a todas as suas aplicações, estorvou a investigação filosófica, levando os filósofos a rejeitar como irrelevantes os casos concretos, os únicos que podiam tê-los ajudado a compreender o uso do termo geral. O desprezo na lógica pelo que parece ser o caso menos geral deriva da ideia de que ele é incompleto, mas uma aritmética cardinal finita não é incompleta, não tem lacunas.3

O método de Wittgenstein não é um sistema. Ele utiliza o mote de Shakespeare em King Lear: “vou revelar-vos diferenças!”. Quando utilizamos a linguagem tendemos a ver essências ilusórias que estariam incrustradas na linguagem. Perdemos assim as diferenças e buscamos coisas ideais ou generalizações para as quais formulamos teorias. O método de Wittgenstein não consiste numa teoria da mente, porque o teórico tende sempre a conceber o mundo que visualiza pelos óculos da sua teoria: “devemos descartar toda a explicação e deixar lugar à descrição”.1,5b A gramática da linguagem não é inconsciente, como a psicanálise, ela é aparente e permite-nos fazer a diferença entre o senso comum e o absurdo. Permite evitar o enfeitiçamento da linguagem que nos faz olhar hipnoticamente para as proposições. A atitude que devemos adoptar nesta rejeição de sistemas, ao procurar detectar diferenças, é a atitude de quem, ao caminhar, levanta os olhos do mapa e tenta observar directamente a paisagem.



Temos a ilusão de que quando usamos o termo “eu” como sujeito, nos referimos a algo de incorpóreo que habita no nosso corpo. Esse é o sentido da expressão cogito, ergo sum. Mas esse algo de incorpóreo não é algo que se assemelhe a um espírito; é antes uma confusão gramatical, uma metafísica. É algo que é comum a expressões que descrevem os dados dos sentidos, como se estes fossem meros instrumentos e não constituintes do “eu”. Os filósofos apresentam-nos a existência dos dados dos sentidos, como uma opinião ou convicção filosófica. 






A expressão “acredito nos dados dos sentidos” parece ser utilizada para preencher o hiato de fé que consistiria em acreditar que o modelo das expressões referentes à aparência são as expressões referentes à realidade (se duas coisas parecem ser iguais, devem existir duas coisas que são iguais). As pessoas foram assim iludidas por esta nova fraseologia, pensando que a expressão “acredito nos dados dos sentidos” seja equivalente à expressão “acredito que a matéria é constituída por electrões”. A gramática de uma declaração sobre os dados dos sentidos e a gramática, aparentemente semelhante, envolvendo uma declaração sobre objectos físicos, não são semelhantes.

Se eu não acredito nos dados dos sentidos, à maneira solipsista, por definição (tendo em conta a premissa “não acredito nos dados dos sentidos”), posso afirmar “vejo isto” relativamente a algo que veja, mas também posso dizer o mesmo relativamente a algo que não vejo; ou seja, despojei o acto de apontar do seu sentido, relacionando de forma inseparável o que aponta com aquilo para que aponta. Construí um relógio com todas as suas engrenagens e, no final, uni o mostrador ao ponteiro fazendo com que ele acompanhasse o movimento deste. Assim, o “apenas isto é realmente visto” do solipsista lembra uma tautologia.3

Então, como se resolve o dilema de Kant, o não sei, relativamente à relação entre o conhecimento das imagens das coisas e das próprias coisas? Para Wittgenstein, as resposta está nas chamadas “formas lógicas”.

Suponhamos que vamos a um concerto, que ouvimos o concerto num DVD, num mp3 ou que o vemos e ouvimos na TV. Seguramente que não estamos perante a mesma coisa. Ver um concerto, ver a TV, ver um DVD, são coisas diferentes. O que possuem em comum que faz com que os reconheçamos como a mesma coisa? O que possuem em comum as ondas electromagnéticas da TV ou as marcas a laser no DVD que fazem com que  as identifiquemos com a mesma coisa? Elas revelam a mesma forma de música, a mesma música, a mesma melodia, ritmo e tonalidade – elas partilham uma forma lógica, a forma de uma determinada realidade, neste caso a peça musical. Wittgenstein é anti-descartiano na questão do eu, “o mundo é independente da minha vontade”;5a anti-kantiano na questão epistemológica: aquilo que figura a realidade deve possuir algo em comum com ela para que a possa figurar, deve ser uma forma lógica, uma forma da realidade, deve "pintar" a realidade;5a anti-hegeliano na tentação de usar sistemas, ao modo da ciência, para explicar a realidade, divorciada do senso comum.1,5b A mente encontra-se presa neste mundo pelos sentidos.5a Entre a figura e o que é figurado, deve existir algo de idêntico, para que um possa ser figura do outro. O Wittgenstein do Tractatus já afirmava que a figura tem em comum com o figurado a forma lógica da figuração. Esta “modelização” ou “figura da realidade” aproxima neste sentido o pensar filosófico com o científico e o da investigação criminal – se os achados da observação não fossem uma figura da realidade era impossível investigá-los ou validá-los.



“Estou aqui” faz sentido se a minha voz é identificada e serve como referencial para a minha localização no espaço. Para fazer sentido, “estou aqui” deve atrair a atenção para um lugar no espaço comum. O filósofo que pensa que faz sentido dizer para si próprio “estou aqui”, toma uma expressão em que “aqui” se refere a um lugar no espaço comum e pensa em “aqui” como o aqui do espaço visual. Na verdade, o que ele diz é “aqui é aqui”. Se eu digo, ao modo solipsista, que tudo o que é visto realmente é aquilo que se encontra no meu campo visual, ou, por outras palavras, que eu sou o receptáculo da vida, é essencial que seja logicamente impossível que o meu interlocutor me compreenda; não por ser falso, mas porque não tem sentido afirmar que ele me compreende (porque só eu existo). Este tipo de expressão é uma de muitas que, em várias ocasiões, são usadas pelos filósofos e que, supostamente, comunicam algo à pessoa que a diz, embora sejam essencialmente incapazes de comunicar algo a qualquer outra pessoa.3







António Campos



Referências:

1 John Heaton and Judy Groves. Wittgenstein for Beginners. Penguin Books, London. ISBN 1 874166 17 X.

2 - Ann Guinee, John Henry Newman and Ludwig Wittgenstein: On Certainty and Faith. Mary Immaculate College, University of Limerick, 2013.

3 - Ludwig Wittgenstein. O Livro Azul, 106-128. Edições 70, Lisboa, 2018.

4 – Tom Martin (University of Nebraska). Chesterton and Wittgenstein (2005). American Chesterton Society, 24th G. K. Chesterton Conference, A Century of Heretics, St. Thomas University, St. Paul, Minnesota. Disponível no site da ACS.

5 - Ludwig Wittgenstein. aTratado Lógico-Filosófico (1922) e bInvestigações Filosóficas (1953, 1958, 2001). Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2015. Tradução e prefácio de M. S. Lourenço.