sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Chesterton Para Principiantes: Newman e o Sentido Ilativo




Para se compreender o sistema filosófico de Chesterton, a sua fenomenologia, a sua epistemologia, o seu argumento ontológico para a existência de Deus, é fundamental conhecer a hermenêutica de John Henry Newman (1801 - 1890).




- A CRIANÇA


Um dos mais importantes temas dos sermões de Newman foi a fé e a obediência a Deus. Newman chamou a atenção para a necessidade de uma atitude semelhante à de uma criança, de simplicidade e confiança, que lhe permite o acolhimento e a reverência perante os contos de fadas. Newman afirma que a mente de uma criança nos dá o tom do que deve ser a atitude em igreja: a criança distingue o bem do mal, mas não adopta a postura orgulhosa do livre-espírito. Ela tenta aprender com os outros, não se coloca na posição de ser ela a medida de todas as coisas, da verdade. Isso torna as crianças mais receptivas à fé, porque “Cristo assim o quis, que nós alcançássemos a verdade, não pela especulação engenhosa, pelo raciocínio ou investigação particular, mas pelo ensino.”


- A RAZÃO IMPLÍCITA


Newman opôs-se ao entendimento da razão defendida pelo iluminismo, uma noção minimalista de razão, que se coloca na posição de julgar toda a verdade exigindo sempre a evidência científica, contrapondo que a fé em Deus é possível sem uma evidência formal. De facto, Newman defende que muitas verdades são implícitas. Muitas vezes uma pessoa não consegue explicar o que ela sabe ser verdade, mas tal não diminui a veracidade das suas afirmações.

Um inglês pode nunca ter viajado até ao mar, mas está absolutamente certo que a Inglaterra é uma ilha. O que o conhecimento tem de implícito é geralmente a sua natureza mais forte. Newman não dava um valor absoluto à argumentação: “Muitos homens vivem e morrem por um dogma, mas ninguém se deixa tornar um mártir por uma afirmação…Ninguém morre pelas suas conjecturas: morre por realidades.”



Por vezes não conseguimos explicar bem porque razão suspeitamos da virtude de uma pessoa ou porque razão confiamos noutra que mal conhecemos. É um processo mental que passa de ponto para ponto por algum indício subtil, pela mera probabilidade, por uma associação de ideias, por se guiar por uma lei de experiência prévia, pelo testemunho de outros, pela impressão popular expressa em provérbios, por uma memória longínqua.

Como sublinhou Newman, trata-se de uma atitude muito semelhante à do alpinista que progride na sua ascensão por meio de uma mirada rápida, uma mão ágil, um pé firme, sentido mais do que sabendo ele próprio como trepa num penhasco vertical liso, mais pelo que adquiriu pela prática do que por qualquer regra isolada, não deixando rasto atrás de si e incapaz de ter jeito para ensinar a outros.


Pela peneira da razão implícita, o resultado da experiência pode dirigir-nos a conclusões. Por oposição a esta análise espontânea da experiência, a razão explícita é a análise de todo este movimento espontâneo de interpretação da experiência, por meio da cadeia de causalidade e da lógica convencional. É este tipo de análise que permite compreender o tipo de racionalidade presente na maioria dos julgamentos que fazemos na nossa vida diária: “Todo o homem possui uma razão mas nem todo o homem pode dar uma razão”.






- A CONVERGÊNCIA DE PROBABILIDADES


A convergência de probabilidades é um conceito que resulta da nossa experiência pessoal, empírica ou reflectida, e da comunicação de outros. Mas nós não aceitamos como válida a comunicação de qualquer um. Nós fazemos um juízo sobre as pessoas, baseados em muitas das suas características, do modo como usam a palavra, do modo como se comportam relativamente a outros. Nenhum item por si, nesta avaliação, é suficiente para podermos definir a pessoa ou como a avaliamos, mas é a convergência das várias impressões que temos sobre a pessoa que nos faz construir o quadro geral que formamos dela.



É esta fenomenologia que usamos sobre nós próprios, sobre os nossos amigos e os nossos familiares, sobre as pessoas que nos são apresentadas ou que entrevistamos, sobre o próprio mundo, que nos fazem retirar ilações sobre nós, sobre os outros e sobre Deus. 


Nós justificamos a adesão às certezas da vida não por inferência, mas pela razão implícita, mesmo que para tal não tenhamos provas irrefutáveis. Os exemplos que Newman dá são prolíficos: temos a certeza que o nosso “eu” não é o único ser existente; que existe um mundo externo; que existe um sistema constituído por partes e por um todo; que existe um universo regulado por leis; que o futuro é determinado pelo passado; que existem cidades chamadas Lisboa, Paris ou Londres, mesmo que nós nunca lá tenhamos estado; que Paris ou Londres devem estar hoje mais ou menos como estavam ontem quando lá estivemos, a menos que uma catástrofe tenha entretanto ocorrido. 

Sabemos que isto é verdade por uma convergência de motivos: o testemunho de outros, o nosso senso comum ou sensatez, o modo como sentimos que é o desenrolar natural das coisas, para que tenham consistência e congruência e sejam absolutamente distintas dos sonhos.


E formamos esta opinião por uma convergência de probabilidades.





Como dizia Chesterton, “um elefante ter uma tromba pode ser coincidência, mas todos os elefantes terem tromba é uma conspiração”. É evidente que são as opiniões que formamos sobre as coisas e as pessoas que conduzem às decisões mais importantes da nossa vida.


Trata-se de um processo muito semelhante ao utilizado ao analisar um acontecimento histórico ou a investigação de um homicídio. Obviamente que os acontecimentos históricos, tal como um crime determinado, não podem ser reproduzidos porque já ocorreram. Isto distingue-os dos fenómenos científicos que são reprodutíveis, porque a criação está em desenvolvimento, sempre a ocorrer repetidamente.

Então chegamos à explicação histórica e ao revelar dos meandros do crime, não com uma prova irrefutável, que seria voltar a presenciar o crime ou o acontecimento histórico, tantas vezes quantas o sistema no-lo exigisse, mas antes com base numa série de indícios indirectos: o local da batalha, o número de mortos, o benefício do vencedor, as mudanças políticas e geo-estratégicas, o testemunho pessoal, o cadáver, a arma do crime, o motivo e a oportunidade, etc. É a convergência e consistência destas provas indirectas que nos apontam a solução.


Newman dizia que relativamente ao problema da existência de Deus, deveríamos usar o mesmo tipo de processo com a mesma honestidade, porque ele é inteiramente racional. A relação entre este raciocínio multiforme e complexo, na análise no julgamento das coisas concretas da vida, e o silogismo lógico que lida com conceitos mais ou menos abstratos, assemelha-se à relação entre uma pintura ou fotografia e um mero esboço. 

A mente chega a uma conclusão inevitável por meio de premissas múltiplas apenas prováveis, por meio de objecções superadas, neutralizando teorias contrárias, por dificuldades progressivamente ultrapassadas, excepções que confirmam a regra, correlações antes negligenciadas numa verdade revelada, num processo lento e de fim incerto, que subitamente se ilumina e desemboca numa conclusão clara e inevitável. A esse processo que usamos para retirar essas ilações, desde a convergência de probabilidades até à conclusão, seja no que concerne à investigação histórica, à investigação criminal ou à ontologia, Newman chamou o sentido ilativo.






- O SENTIDO ILATIVO


Newman defendeu a racionalidade da “fé simples”. Chamou-lhe a faculdade ilativa ou senso implícito. Trata-se de um modo de raciocínio com uma dimensão inconsciente e implícita; vai das coisas concretas para a conclusão e não de proposições para proposições, como a inferência formal ou lógica.

Um homem alcança a certeza através deste sexto sentido, o sentido ilativo, “uma palavra cara para uma coisa comum”, a possibilidade de conhecer o desconhecido a partir das nossas experiências concretas: a beleza natural, as exigências da consciência (o sentido de culpa, as dores do remorso, a busca do perdão), a noção da contingência da vida, a paz transmitida por uma criança dormindo, a honra prestada a quem sacrificou a sua vida pelos outros, a beleza fascinante da Air in G String de J S Bach ou do Canon em D maior de Pachelbel, a beleza e angústia dos sonetos de Camões “Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades” ou “Alma Minha  Gentil que te Partiste”, ou, na verdade, de qualquer coisa bela criada, e chegar à conclusão de que tem que existir uma realidade transcendente subjacente a tudo, Aquele a quem chamamos ou conhecemos como Deus.


O homem alcança a certeza por meio desta capacidade de retirar ilações. Illatio em latim significa levar-nos a ou transportar-nos para uma conclusão mais larga e firme do que as premissas. É o mesmo processo de descobrir uma direcção na ausência de sol e de instrumentos, como o fazem os índios: não é algo fácil de explicar. Por exemplo, nos climas setentrionais, os ramos das árvores são mais longos no lado sul, o musgo está ausente no lado norte dos troncos das árvores...é um acumular de pequenas coisas que ao serem correlacionadas nos colocam na direcção certa. Como quem monta um puzzle.

Indicam-nos a direcção certa. Isto é o núcleo do sentido ilativo.

O silogismo, que usa a razão explícita ou inferência lógica, seria como um grosso cabo de cobre. O sentido ilativo que usa a razão implícita e reúne princípios, factos, testemunhos, experiências, registos, seria como uma cabo formado por múltiplos pequenos fios de cobre. O primeiro simboliza a demonstração matemática, o segundo a demonstração moral. Newman expressa bem a essência da mente inglesa: a ânsia pelo mundo platónico das ideias e das realidades invisíveis e a necessidade de factos precisos, gravados e verificados.



Um céptico pode argumentar que equivale a um salto de fé, mas não se trata de um salto porque o parecer favorável à fé tem uma dimensão cumulativa e de tensão interna; trata-se mais de crescer para uma convicção e não tanto de cair nela. A evidência da doutrina revelada baseia-se num agregar de probabilidades e não na argumentação hábil sobre cada uma delas. Newman usou o exemplo do polígono desenhado no círculo. À medida que o número de lados aumenta ele tende a parecer-se com o círculo. Nunca é o círculo mas a mente ignora a diferença e compreende-o como tal. Assim é, e só pode ser, o nosso conhecimento de Deus: não uma completude mas uma propedêutica.


Ora, a fé é um acto pessoal pelo qual uma pessoa apreende as verdades religiosas a partir dos testemunhos de outros. Um “espírito de criança” é a condição necessária para acreditar. Sem humildade é impossível acreditar em Deus, porque a pessoa define o seu próprio universo e fecha-se a qualquer realidade sobrenatural. O orgulho encerra uma pessoa numa esfera limitada de racionalidade; é a pedra de toque do mundo pós-kantiano.  É o "enfiar o universo dentro da cabeça", do lógico de Chesterton.

É necessário que o homem se deixe amar por Deus, aceitando com humildade a revelação de Deus, com a mesma atitude da criança que não supõe existir uma razão válida para que um adulto da sua confiança a engane ou lhe faça mal. O argumento moral para a existência de Deus, sumariamente descartado em Kant, reaparece em Newman. Swinburne afirmaria sobre a convergência de probabilidades: "se colocarmos dez baldes furados, uns dentro dos outros, teremos um contentor capaz de conter a água." Esse é o princípio físico da matéria.

Newman, ao regressar a Inglaterra após uma viagem em que esteve gravemente doente compôs “Conduz, Luz Gentil” em que suplica humildemente uma condução transcendente: “Embora conduzido outrora pelo orgulho/ Protegei os meus pés/ Eu não peço para ver o horizonte/ Um passo apenas basta”.




António Campos

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