segunda-feira, 21 de março de 2016

A Revolução Eterna



Apontar o dedo a conservadores, liberais e socialistas, como Chesterton fez, remete para
uma espécie de quixotismo. Viver não no mundo real, mas numa confabulação. No entanto, se há algo que devemos ao estudo da mentalidade política de Gilbert Keith Chesterton, é o constatar de que vivemos num mundo pagão e de que a política moderna tem raiz iluminista, i.e., a moral que usa basta-se a si própria; é uma moral formal.


Esta nova moral combina a primazia da acumulação material sobre a partilha, ou seja, o triunfo do calvinismo, e da teoria da predestinação, sobre Roma. Combina a primazia da liberdade de conduta individual sobre qualquer ordenamento moral. É uma moral utilitarista. O socialismo resulta dialecticamente das abomináveis ideias de Adam Smith e de David Ricardo: os pobres apenas têm o direito de beneficiar das migalhas que caem da mesa dos ricos; os pobres devem ser limitados quanto ao número de filhos, por forma a poderem dedicar mais tempo à produção.


Uma vez que vivemos num padrão iluminista, como voltar a uma sociedade fundada em valores cristãos? A resposta dada por Chesterton, vendo bem, coaduna com a ação de Cristo: ser um reaccionário vermelho, viver a revolução eterna!


Chesterton explica muito bem estes conceitos no artigo Red Reactionary de A Miscellany of Men e nos capítulos A Revolução Eterna de Ortodoxia e O Vento e as Árvores de Tremendas Trivialidades.





Na verdade, viver a interrogação de Kirkegaard: Como ser um cristão na cristandade? Ou a sua reformulação mais tardia por Chesterton: como ser cristão numa sociedade pós-cristã, convencida que progrediu além de Cristo, sem tomar consciência de que, na realidade, retornou ao paganismo? A palavra revolução poderá ferir muitas mentes “sensíveis”, mas o que foi a vinda de Jesus Cristo senão uma revolução? Uma revolução na História, das nações, da arte, do direito, da alma humana? O que foi a vida de São Tomás que esteve preso pelo pai ou de São Francisco de Assis que se colocou nu no tribunal à frente do seu pai? O que pensaríamos nós de um menino bem que se colocasse nu, em frente de todos e do seu pai da alta sociedade, num tribunal de Lisboa ou de São Paulo?


Para Chesterton, face ao abandono do evangelho, a resposta é a revolução eterna. A crítica de Chesterton colhe: uma sociedade que considera o progresso como a virtude central não pode de deixar de olhar a cristandade como algo fixo, velho. Chesterton chama a atenção de que progresso necessita sempre de referenciais fixos, de um padrão moral. Tal como a ciência progride numa metodologia fixa, assim deve ser o progresso social. Tudo o que se move necessita ter um referencial fixo, pois ele move-se em relação a. A mutabilidade supõe a perenidade. “Tudo o que tem uma época já está condenado.”


Os progressistas e os revivalistas cometem o mesmo erro: ambos vêem Jesus como algo do passado. Uns querem libertar-se do passado, outros querem a ele retornar. Nenhum vê esta “religião do passado” como apontando para o futuro, como apontando o futuro. Os conservadores querem uma Igreja cujo ordenamento moral esteja ao serviço do Estado. Mas esta religião mansa é uma mundanidade. A religião de Cristo vem lançar fogo sobre a terra, separar pai de filho, trazer a espada. Nem a idolatria do progresso nem a adulação do passado estão ao serviço do homem, porque não são atitudes “fora do homem”, mas imanentes, “com ponto de partida no homem”.



Nós estamos mais próximos do capitalismo do que do socialismo. Não apenas porque o socialismo é um acidente posterior e uma negação dialética do liberalismo, mas também porque o socialismo inclui duas ideias orientais e anti-cristãs:

- o pessimismo: a ideia de que o indivíduo deve ser controlado pelo Estado, porque tem em si a raiz do mal,

- a colmeia: a dissolução da individualidade e da liberdade em favor da abelha-mestra do partido, do Estado ou do "Tudo", esse Grande Arquitecto gnóstico, o "Geist" de Hegel.



Ambas entraram pela porta de Bradenburgo, ambas com origem oriental; uma deísta, a outra messianista. O modo como os movimentos socialistas se solidarizam entre si, mostra bem a sua natureza de colmeia. Nestes movimentos auto-justificativos, porque de índole messiânica, a liberdade individual e a propriedade cessaram e, desse modo, a natureza humana é aviltada, negada. Em nome da igualdade, o homem é um escravo.






O capitalismo é o optimismo: exagera a liberdade individual, não lhe colocando limites, deste modo não garantindo o mesmo grau de liberdade para todos os homens. Supõe que tudo vai correr bem, entregue ao arbítrio dos poderosos. A afirmação de que todos os homens têm igualdade perante a lei é uma figura de retórica. Quem pode pagar os melhores jogadores tem melhores probabilidades de ganhar o jogo. Desse modo, inevitavelmente os homens são considerados pelo “ter” e não pelo “ser”, a fraternidade humana é apenas retórica. Como bem explica Max Weber, é um produto do calvinismo.



Cristo sempre afirmou a individualidade de cada ser humano (“até os cabelos da vossa cabeça estão contados”), o livre arbítrio (“acautelai-vos do caminho largo”), a escolha aliada à existência transcendente (“o que pode dar o homem em troca da sua alma?”). O cristianismo assenta em cada indivíduo, não é um sistema, não é uma colmeia. Implica separação entre cada criatura e o Criador, diferença e amor.


O mundo não quer a revolução eterna. O revolucionário mundano torna-se um conservador logo que chega ao poder. Por vezes um ladrão. O mundo quer sempre um progresso utilitarista. A revolução eterna liga-se ao reaccionário vermelho na medida em que ele é reaccionário porque sabe que não pode mudar o passado de onde veio, sem o falsificar, como fizeram os marxistas, mas pode construir o futuro, caminhando. E o futuro constrói-se pela revolução interior e pelo exemplo. Uma revolução que é contínua e permanente, porque continuamente combate o risco de decair. O risco de afastamento do Evangelho é pessoal e social, individual e colectivo.



Esta revolução “interior” não desce às profundezas do “eu”; ela sobe e voa, modifica a ação no sentido do abandono do “eu” e do encontro com “o outro”. Se a fé não transformar a pessoa humana neste sentido «externalista», ela é apenas formal, vazia, porque desprovida de obras. Pelo contrário, pela “revolução interior”, a fé, o homem deve poder observar coisas perenes: a beleza, a virtude, a verdade. A tradição não é uma volta para o passado, é a contemplação de coisas perenes, como a realidade de Deus. A tradição não um fim em si mesma, é um despertar, um sacudir, para acordarmos para a realidade de Deus que “renova todas as coisas”, um guerreiro de uma guerra de seis dias. A tradição não é um conservante, é um fermento. Só em Cristo se unem a tradição e o progresso, a estabilidade e a criatividade.



A revolução cristã – a manifestação social e cultural do reino - não pode ocorrer sem a tradição cristã histórica. Mas a tradição de nada vale se não ambicionar essa revolução: a revolução do sermão da montanha que nos liberta do egoísmo e do pecado. É natural que o mundo não ambicione esta revolução; não é tão natural que não seja nova. E é aqui que entra a renovação, é aqui que agem os santos.



A renovação ou revolução é um fogo que nos consome, um fogo que consome a terra. Um revolucionário ao serviço de uma vontade superior, um revolucionário que ora para a chegada do Reino. A revolução eterna pela qual oramos, pela qual lutamos é, mais que tudo uma revolução interior. Se eu modificar o meu coração existirá menos mal neste mundo.






O Papa tem repetidamente afirmado que a raiz do problema reside em recusar afirmar Deus como o Criador. Desse modo, somos meras peças de uma engrenagem tecnológica e usamos o mundo para que ele satisfaça os nossos desejos. Toleramos a ideia de que existem seres humanos de segunda categoria e achamos natural que o ser humano possa ser sujeito a um domínio humano arbitrário.



Debaixo de um alto ideal de liberdade, igualdade, fraternidade, de um alto nível de vida, constituímos uma sociedade voraz, ambiciosa e não sustentável. Vivemos no paradigma de Newton, Locke, Rousseau, Ricardo, Kant, Marx, Freud, Einstein, Keynes, e muitos outros arquitectos da moderna cultura ocidental. Todos eles omitem a beleza da criação e a sua diferença permanente. Todos eles subentendem a negação da alma humana e de Deus.



“A verdade sobre o gótico é, primeiro, que está vivo, e, segundo, que está em marcha. É a Igreja militante; é a única arquitectura lutadora. Todos os seus pináculos e as suas lanças estão em repouso; todas as suas pedras são pedras adormecidas numa catapulta. Nesse instante de ilusão, eu pude ouvir as abóbadas entrechocando-se como espadas à medida que se encontram. As numerosas colunas imponentes parecem desfilar como gigantescas patas de elefante. A folhagem esculpida como revestimento ondulava como estandartes prontos para a batalha; o silêncio ensurdecia com todos aqueles sons complexos de um movimento de uma coluna militar; o grande sino oscilou para baixo à medida que o órgão elevava a sua ressonância. As gárgulas de gargantas sedentas gritaram como trompetes de todos os telhados e pináculos à medida que passava a coluna; e do atril no centro da catedral, a águia do terrível evangelista bateu as suas sonoras asas de bronze.


E, no meio de todos aqueles ruídos pareceu-me ouvir a voz de um homem gritando, no meio dos regimentos, para cá e para lá, ordenando-os para a batalha; a voz do grande mestre meio-militar meio-construtor; o arquitecto das lanças. Quase poderia dizer que usava armadura quando fez aquela igreja; e eu sabia que na realidade, sob uma figura bíblica, ele tinha usado, em cada uma das mãos, a espátula e a espada.”




António Campos