sexta-feira, 26 de abril de 2013

A Família


“Tenho uma gentil sovela/Com que coso mui direito/Se a mulher não desse jeito/Não olhariam para ela./Em que seja uma donzela/Nobre, casta e oradora/Ela é a causadora,/Do que acontecer por ela”, Bandarra ( -1556)


Um dos fenómenos mais espantosos do nosso tempo é o contínuo ataque à família. Esse
ataque legislativo e ideológico, espiritual, faz-se sentir sobre o seu lado aparentemente mais fraco, mas na verdade o seu lado mais forte. O seu bastião, a sua fonte de graciosidade, de inspiração, de fertilidade, de renovação, a sua escola, a sua beleza, o seu maior bem: a mulher!

Conferiram-se deveres de trabalho à mulher, mas não se acautelou a sua protecção especial, acenando-lhe com um mal disfarçado em bem. O mal sempre se apresenta como bem, para escapar da evidência. A mulher nada beneficia com a igualdade, pois decai. Propor a igualdade ao que é superior é ligeiramente ordinário.

A mulher deve ter paridade. Paridade significa um entre pares, a igual dignidade, uma só carne. Como diz a sabedoria judaica, Deus partiu a natureza humana ao meio para que o homem nem da sua natureza tivesse evidência plena. Neste sentido, o casamento também é um regresso a casa. À mulher deve ser conferido o direito paritário a uma profissão mas deve ter-se em conta a sua especificidade de lar e de escola. E ao homem deve ser conferido o dever de zelar pela família, de assumir compromissos a que se obrigou voluntariamente. Compromisso significa vedação, limite. Quem assume um compromisso estabelece um limite, é livre dentro do espaço da vedação, mas não a deve deitar abaixo, pois que a estabeleceu de livre vontade. Esta é a diferença entre liberdade e libertinagem. A diferença entre respeito do outro ou auto-satisfação do ego. Na verdade, “I, can get no satisfaction”.

Bento XVI: "Não é arrogando a vida para nós nem possuindo-a e tomando-a dos outros que conseguimos encontrá-la, mas sim dando-a. Eis o sentido último da cruz: não tirar a vida, mas dá-la. Encontro com o clero da Diocese de Roma, 02.03.2006.
A mulher não é produtora nem reprodutora, ambos os conceitos a rebaixam. A misoginia é algo de repugnante. Ambos os conceitos são fortemente misóginos. Um porque ignora a sua experiência da maternidade e o seu amor de mãe, de esposa, de amante, a sua função de mestre-escola na passagem de valores firmes aos filhos. O outro porque a rebaixa ao nível animal, um mero instrumento nas mãos do falo, ao jeito de Pablo Picasso. Ambos lhe negam a dignidade humana e a superioridade que as ONG lhe reconhecem, ao dar-lhe primazia na distribuição de víveres, e a Igreja ao manter o celibato, por forma a tornar digno, disponível e confiável, o sacramento da confissão. 

Dizia Sampaio Bruno em 1907: «a influência do padre sobre a mulher provém da confissão auricular; porém esta só é possível sendo o padre celibatário. Desde que o padre seja casado, toda a mulher hesita em ir confessar mistérios.»”a influência do padre sobre a mulher provém da confissão auricular; porém esta só é possível sendo o padre celibatário. Desde que o padre seja casado toda a mulher hesita em ir confessar mistérios.”

Bento XVI: "É preciso agradecer às mães, sobretudo porque tiveram a coragem de dar a vida. E temos de lhes pedir que completem este seu dom da vida dando a amizade com Jesus", Encontro com o clero da diocese de Roma, 02.03.2006.
A mulher deve ter independência económica e o direito a exercer uma profissão. Mas a sociedade deverá valorizar no sentido enfático o seu papel crucial na família. Um papel nunca remunerado e poucas vezes reconhecido. Chesterton já dizia que a família é o reduto de maior liberdade, onde o Estado tem entrada condicionada. No lar podemos estar de pijama ou comer no chão, ser um pouco piegas ou excêntricos, violar horários ou flexibilizar regras. 
A família desafia o desenho de uniformização e normalização do nosso tempo. Na família tudo é desigual: há crianças, adolescentes, adultos e velhos, homens e mulheres, sensatos e néscios, artistas e engenheiros, agricultores e marinheiros, operários e empresários. 
Não existe uniformidade educativa, existe uma tradição particular e uma tradição comum. Muito diferente de lares, casernas, infantários ou organizações secretas misóginas e racistas.
Diz Chesterton, em O Homem Eterno, que o vestuário é, literalmente, uma veste talar. “Os homens vestem-se porque são sacerdotes. A nudez não lhes é natural. O homem veste-se por razões de decência e até de decoro. Os homens sempre recorreram a normas para proteger coisas privadas de equívocos grosseiros e do desprezo dos outros, promovendo a dignidade e o respeito mútuos. Essas normas encontram-se fundadas na relação entre os sexos. Dois factos sustêm essa fundação:
-um é o do pecado original que impede os homens de serem tão naturais que andem nús ou que dispensem as leis,
-o outro é a família. A família é a base da nação, a unidade do Estado, a célula base da criação. É em torno da família que se congregam todos os aspectos importantes que distinguem os homens das formigas e das abelhas. A decência é a cortina da sua tenda, a liberdade é a muralha dessa cidade, a propriedade é a quinta da família e a honra é a sua bandeira.
Dois triângulos se interceptam: a antiga Trindade constituída pelo pai, mãe e filho, chama-se família humana. A nova Trindade é formada pelo filho, a mãe e o pai, e tem o nome de Sagrada Família.
A única coisa que a torna diferente é o facto de ter sido invertida assim como a única coisa que caracteriza o mundo transformado (após Cristo) é o facto de ter sido virado de pernas para o ar.”

“A Jacinta e o Francisco pareciam estar na parte dessa luz que se elevava para o Céu e eu na que se espargia sobre a terra.”
Duas observações finais:
Uma das mais chocantes perdas de dignidade humana foi a ostensiva promoção do início dos hábitos alcoólicos em mulheres adolescentes, que perdem o controlo facilmente e vacilam na defesa da conduta que aprenderam com a sua família. Neste aspecto, o Estado, os think tanks, as sociedades secretas, as grandes organizações internacionais, os mass media, activamente ou pelo silêncio conivente, têm a maior responsabilidade.
Pode pensar-se que se pode ganhar esta batalha cultural e espiritual no confronto directo. É pura ilusão. No fundo da fé encontra-se a noção da nossa fraqueza. A Esperança diz-nos que Deus actua através de nós, brilha na nossa insignificância, na nossa impotência. A Caridade diz-nos que nada se pode obter sem cortesia e respeito, mesmo pelos nossos inimigos que também são nossos irmãos. Talvez a melhor arma seja a leitura, a penitência e a oração. A leitura alimenta a alma. A penitência abre mão de pequenas coisas que apreciamos, entre as quais a necessidade de reconhecimento. A oração é o melhor meio de combater a heresia- sabêmo-lo desde São Domingos. 
Até porque, como dizia São Tomás, para o crente nenhuma razão é necessária e para o céptico nenhuma razão é suficiente
Quer a mulher quer a família serão seguramente salvas do colapso civilizacional por essa Mulher, que disse Sim, depois que a força do povo santo seja inteiramente quebrada e seja abolido o sacrifício perpétuo, Dan 11, 31-32 e Dan 12, 7-13.

Bento XVI: "Nenhum de nós sabe o que acontecerá ao nosso planeta e à nossa Europa nos próximos 50, 60 ou 70 anos. Mas de uma coisa estamos certos: a família de Deus estará sempre presente e quem pertence a esta família nunca estará só, terá sempre a amizade d'Aquele que dá a vida." Homilia da festa do Baptismo do Senhor, 08.01.2006.

"Mas no fim, o meu Sagrado Coração prevalecerá", Fátima 1917.
António Campos

sexta-feira, 12 de abril de 2013

O Burro


Talvez um dos aspectos mais negligenciados da esplendorosa festa dos Ramos seja o enigma do burro. Como tantas vezes, na comunicação entre Deus e o
Homem, existem vários níveis de leitura, vários significados, várias mensagens sobrepostas. Com o auxílio de Chesterton tentaremos uma aproximação à mensagem que o Mestre nos deixou nos Ramos.

O burro carregou com Jesus Cristo para Jerusalém. Mas também carregou com a Virgem Maria grávida no seu caminho para Belém. Um burro, não um cavalo. Pode argumentar-se que o casal de Nazaré não teria dinheiro para um cavalo, mas já é pouco provável que não fosse fornecido um ao messias de Israel. Ele, que quando necessitou, encontrou uma sala ampla preparada para a ceia ou um sepulcro novo por estrear. Um rei ou um general faz a sua entrada triunfal montado num cavalo, não num burro. Dizia-se que pela montada se conhecia o general. Imaginemos Wellington aparecer a Napoleão em Waterloo montado…num burro!




O burro, um animal vulgar, básico, pouco atractivo. Um verdadeiro marginal neste mundo. Mais uma oportunidade para que o diabo se ria de Cristo ao fazer a sua apresentação usando esta montada. O mais estúpido dos animais foi escolhido para apresentar o Filho do Homem como rei. Aqui reside a distância entre a sabedoria de Deus e a dos homens.


Esta história está carregada de simbolismo e aponta-nos para algo de mais profundo. As palmas significavam, no império romano, a vitória. Em 1 Mac o povo judeu também usa palmas para sinalizar a independência de Jerusalém. A multidão consagrou Jesus como rei. E como rei, fez uma entrada triunfal na cidade. Mas um rei montado num burro? Ainda hoje nós queremos um Cristo montado a cavalo, que combata por nós no mundo, que faça o nosso trabalho. O burro revela-nos a evidência: Jesus não é esse tipo de Messias.
A primeira mensagem dos Ramos é a humildade.
O Deus que nos ama é humilde.








The Donkey


G.K. Chesterton, 1900


Quando os peixes voavam e as florestas caminhavam
E figos cresciam de espinheiros,
Naquele momento em que a lua era sangue
Então, eu decerto nasci.



De cabeça monstruosa e grito horrível
Orelhas como asas errantes,
De mim até o diabo se ri

A anedota entre os de quatro patas.

O sem casta maltrapilho da terra,
De uma tortuosa vontade antiga;
Passo fome, açoites, escárnio: Eu sou burro,
Permanece o meu mistério.




Tolos! Eu também tive a minha hora
Uma hora tremenda e de júbilo
Um clamor nos meus ouvidos
E folhas de palma sob meus pés


O Burro, G. K. Chesterton (1874–1936), The Donkey, 1900
da colecção The Wild Knight and Other Poems (que inclui “By the Baby Unborn”)









Este poema aponta-nos não só para o burro, mas também para o nosso “animal de carga”, Jesus (Is 52:14).
Esta é a segunda mensagem. Jesus carrega connosco para o Céu.



Burro é a expressão usada para diminuir e ridicularizar os outros. Asno (ass em inglês ainda é mais pejorativo) não é um termo lisonjeiro quando aplicado a pessoas. Como Chesterton diz, ele é “a anedota que o diabo fez entre todos os quadrúpedes”, o desprezado pela altivez. O animal que apareceu no mundo quando aconteciam coisas estranhas - peixes que voavam, florestas que andavam - e a associação com a lua sangrenta (sinal de azar), remetem para um animal muito estranho e azarado. Por outro lado, lembram o homem: a noite em que eu nasci era uma noite que para mim não existia. Eu apareci neste mundo por vontade de outrem, não por mérito próprio.



Um burro carregado de livros é um doutor”. Este velho ditado português usa a imagem do burro no sentido pejorativo de fraude, aparência e posse de estatuto que não corresponde ao real valor do individuo.



Cabeça de burro é algo monstruoso, seja usado como substantivo seja como adjectivo. O zurrar do burro é doentio e ridículo - “eu sou disforme, só digo asneiras, não tenho valor, sou ridículo”. Figura do burro são também todos os ingénuos que não triunfam no seu trabalho e vêem os oportunistas crescer na vida e triunfar. Aqueles a quem não é dado valor, aqueles que nunca são escolhidos para lugares de topo, aqueles que não têm glamour. Esse é o grito do burro.

Essa é a terceira mensagem contida neste poema - o julgamento humano apriorístico, sobre si próprio e sobre o outro, a timidez, a falta de confiança e de auto-estima.




Para os que não atribuem ao burro qualquer valor é atribuído o epíteto de parvos, idiotas. O burro entrou em Jerusalém carregando o Rei do Universo. Este sentido de inutilidade é comum a quem se acha feio ou sem valor.
Perto destes mal-amados, está sempre Deus, como qualquer pai, enternecido.
 
Esta é a quarta mensagem: Deus vê o que o homem não vê, os seus pensamentos distam dos pensamentos humanos como o Céu dista da terra, o seu julgamento não assenta em valores mundanos.

Qual foi o mistério do burro?
 
O que lhe permitiu ultrapassar o desprezo e o "erro" da criação?



Foi a intimidade com Deus.
A partir de então ele sabe que é amado por Deus. Afinal existe um grande sentido na sua criação. Muitos de nós, não estando contentes consigo próprios - com o seu corpo, com o seu intelecto, com as suas realizações - poderíamos aprender com o segredo do burro. Uma mensagem dos Ramos: Cristo veio para que os coxos andem, os surdos ouçam, os cegos vejam. Para abençoar os pobres em espírito.


Qual o segredo do burro? É simples: Foi escolhido por Deus, SI 139 (“Vós é que plasmastes o meu interior, me tecestes no seio de minha mãe…conheceis a sério a minha alma…nada da minha substância escapava, quando era formado no silêncio, tecido nas entranhas da vida humana…”)! 

Para aplanar o caminho do Senhor, Is 40:3 (”aqueles que confiam no Senhor renovam as suas forças, têm asas como a águia, voam velozmente sem se cansar, e correm sem desfalecer”) e fiquemos em paz, sem medo, Jo 14:27 (“Deixo-vos a minha paz, a Minha paz vos dou...”). Devemos agradecer pela vida que nos foi dada gratuitamente e pela fé.
Esta a quinta mensagem contida no poema.





O burro retrata também uma atitude dos homens. A Igreja tem dois pilares que são um exemplo demonstrativo. Paulo, um verdadeiro “cavalo” intelectual, viveu como “cavalo” até ao relâmpago, seguido de apagão, em Damasco. A partir daí preferiu, apesar de “cavalo”, viver como “burro”. Pedro, um real “burro”, sempre viveu como “burro”. E nas duas vezes que preferiu fazer de “cavalo” levou as duas maiores repreensões públicas da sua vida. Uma do próprio Cristo em Mt 16, 22-24 e Mc 8, 32-34, outra de São Paulo em Gal 2, 11-15. Assim ficamos a saber que Cristo escolheu para a base da sua Igreja apenas um homem muito comum.
Esta sexta mensagem é uma atitude que assenta no mesmo valor da primeira, uma qualidade que nunca se vê no Mal: a humildade! A humildade sem hipocrisia, a humildade não fingida, o esquecer-se de si, nunca vem do Inferno - é uma distinção segura.




E, finalmente, talvez ainda se possa extrair uma sétima mensagem: neste mundo secularizado, onde acreditar que só Cristo é Filho de Deus é tido como intolerante, talvez a atitude mais certa a tomar por quem transporta em si a fé em Cristo seja a de ser humilde mas firme, como o burro.


Muitos católicos acolheram a eleição do Papa Francisco como se tivessem passado de “cavalo” para “burro”. Mas o próprio Francisco de Assis considerava ser o seu corpo um “asno”. “São Francisco considerava burro o seu próprio corpo. Ele era como aquele burro comum ou de jardim que levou Cristo até Jerusalém.” Chesterton, São Tomás de Aquino, 1933.
No meio de tanta metáfora asinina e cavalar, nem faltou um doutor ser conhecido como boi. E logo boi mudo.



Ninguém é impecável! Quem se pode ter em conta de juiz? Em Fátima a própria Lúcia duvidou em certa altura se não estava a falar com uma entidade infernal. E o que lhe foi respondido? “No Inferno não falam assim!” E o que sempre repetiu enfaticamente: “Rezai pelo Santo Padre!” Deixemos pois o lugar de “cavalo” e sejamos “burros”. Façamos o que Ela nos pediu: “Rezai o terço e rezai pelo Santo Padre!”.
Queremos mudar o mundo? Porque não então mudarmo-nos a nós mesmos primeiro?





António Campos

Anália Carmo