sábado, 22 de setembro de 2018

A Beleza e a Verdade




Lembro uma vez ter afirmado que não gostei de um livro chamado A Psicanálise dos Contos
de Fadas. Em minha opinião, nos contos de fadas a fantasia é apenas aparente, uma vez que o seu sentido é alegórico, enquanto que na psicanálise a verdade é apenas aparente, porque o seu sentido é fantasioso. O autor caiu num erro comum: pensar que os contos de fadas são para as crianças por possuírem uma linguagem fantástica e alegórica, mimetizando o erro colossal da psicanálise ao atribuir à criança a responsabilidade do incesto, que é, em verdade, património de uma civilização. Os contos de fadas, por conterem as grandes verdades, são apenas apreensíveis por aqueles que "são como as crianças", um detalhe que faz toda a diferença. A chave encontra-se na passagem bíblica referida em Mt 11:25 e Lu 10:21, "Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultastes estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos."

Para defender a minha tese vou recorrer às quatro ideias que Chesterton nos deixou sobre o sentido alegórico dos contos de fadas, em Ortodoxia:



1 – A lição de A Bela Adormecida:

A beleza não salva o mundo; o seu mérito é lembrar-nos qual a nossa real natureza, uma vez que não tem utilidade prática. Somos seres espirituais e ansiamos por obter sentido. A própria beleza se desvanece com o tempo e morre. A nossa vida é uma maravilha, mas empalidecida pela sombra da morte. Só o amor resgata a morte quando ela se encontra convertida em sono. Esta crença é descrita como uma verdade nos contos de fadas. A natureza fantástica e extravagante dos contos de fadas serve para exaltar a beleza do nosso mundo e para acordarmos do nosso cansaço, da nossa alienação. Desse ponto de vista, os contos de fadas são uma caricatura de nós próprios e um maravilhamento com o  mundo. A sua linguagem é alegórica, porque o seu conteúdo não consiste numa série de mentiras mas de verdades. A psicanálise, pelo contrário, usa os métodos de uma pseudo-ciência, para apresentar um conteúdo que consiste numa série de mentiras, embora partindo de um fundo verdadeiro: o de que todo o homem é um anjo e um demónio, que possui a decisão sobre o caminho a trilhar e que necessita de desabafar, para aliviar o fardo que transporta. Claro que a Bela Adormecida não é apenas a alegoria de que a beleza só pode ser salva pelo amor; ela é também a alegoria da natureza do conhecimento humano: só o “outro” nos pode salvar do torpor do subjectivismo - “Já Bocage não sou!” Só o amor acorda a beleza; o amor é gratuito, dado sem merecimento. É o amor que nos confere dignidade.



2- A lição de A Branca de Neve e dos Sete Anões:

Nos contos de fadas, a morte paira sobre todas as criaturas e todas elas têm que possuir a coragem mínima de a enfrentar. As criaturas que perseguem a imortalidade tornam-se grotescas. Os que perseguem a beleza eterna tornam-se feios. Pensar que esta mensagem dos contos de fadas não exprime a realidade é desmentido pelo resultado da cirurgia plástica de muitas figuras públicas quando ficam com uma cara  grotesca.





3 – A lição de A Bela e o Monstro:

A fealdade só se torna bela por ser amada e para tal é necessário que também ame. Para fazer justiça a Dostoiévski, desde Memórias da Casa dos Mortos que  a conversão é apontada como a única coisa que pode salvar o homem. E continua, com Lisa de Cadernos do Subterrâneo e com Sónia de Crime e Castigo. Existe uma exaltação e uma beleza em ser revolucionário e em viver o espírito da Internacional ou da Marselhesa, mas Dostoiévski, que a conhecia por dentro, não hesitou em chamar os seus protagonistas de Os Demónios. Nesta Viena onde me encontro, consigo ver distintamente a diferença entre Freud e Wittgenstein, como julgo conseguir ver em Lisboa a diferença entre Pessoa e Camões. A beleza é uma propriedade conferida à criação como reflexo da natureza do seu Criador. Mas existe uma beleza que não é verdadeira, porque resulta de uma escolha ou haeresis, por parte das criaturas que têm poder de criar. Existe uma beleza que seduz, mas engana; existe uma beleza que seduz e conforta, porque é verdadeira. O homem anseia pela verdade. Existe uma diferença abismal entre os valores religiosos e os valores artísticos, como afirmavam von Balthazar e Kierkegaard, pela simples razão de que Deus ultrapassa o mundo na sua beleza – é a diferença entre uma teologia estética e uma estética teológica. Mas a lição de A Bela e do Monstro não nos informa apenas sobre a descoberta da beleza em alguém que parece feio à primeira vista. Ela é, naturalmente, uma caricatura do próprio amor. Cristo confere sentido ao mundo, na medida em que é, a um tempo, verdade, beleza e amor, Ele que atribui dignidade aos outros, por tanto amar. Mas o sofrimento, a cruz, que resulta do livre arbítrio humano, a sua humilhação e morte, a realeza humilde e humilhada, é a imagem desse monstro sofredor, esse outro indesejável e repelente.

Tal como em A Bela Adormecida a morte não triunfa, também em A Bela e o Monstro a monstruosidade não permanece. Esse desenlace positivo lembra-nos a expressão bíblica “tempo, tempos e metade de um tempo”, todo o mal tem um fim; o sofrimento nunca será eterno para quem muito ama.



4 – A lição de A Cinderela:

É, como afirma Chesterton, a mesma do Magnificat, a exaltação dos humildes. A grandeza de ser pobre é a pureza de coração, que também se observa nos ricos misericordiosos: o binómio, a Cinderela e o Príncipe. Esta é uma lição que não escapa ao conto de fadas. Um dos segredos do triunfo dos contos de fadas é serem puros e não pretensiosos. O conto de fadas sabe que não chega a Deus, mas tem a confiança de que Deus repare nele. Expressa-a ao dar voz a todas as criaturas, como se afirmasse que todas as criaturas dão glória a Deus. A expressão “e viveram felizes para sempre” é uma antífona para um princípio, não para um fim; é a velha expressão católica: “O meu fim é o meu princípio!” É a escada de Jacob: quando terminamos uma coisa, isso apenas significa que obtemos uma licença para iniciar outra. Cada fim é um recomeço. 





António Campos

Nota: O autor baseou-se no artigo de maximustheconfessor, The Redemption of Beauty, no blog Catholic Kung Fu, cuja leitura  recomenda.

domingo, 2 de setembro de 2018

Uma Canção de Casamento




Porque lamentar o tempo que passa

Se viajamos juntos?
Arrendados os céus, de cabo a rabo
Apenas tempo ventoso,
As grandes estrelas em desgraça caídas
Apenas um aguaceiro primaveril,
E devemos anotar a trombeta do destino
E ouvir o canto do rouxinol.



Transgredimos com sorte e arte,
Setas correm como chuva,
Se fores atingida, se eu for atingido
Outro fica para replicar.
Se fores amiga, se eu for amigo,
Em ambos reside a força,
O bom e o mau para passar,
Tu e eu para ficar.





Porque queixar-nos da saúde ou da doença
se viajamos juntos?
O fogo que em Sodoma cai
Apenas tempo abafado
Além da finalidade dos homens pertença
A nossa raça antiga, marcada com a morte
Lavaremos os pés no céu.
Aqueceremos as mãos no inferno.

Grandes batalhas veremos
Porque perdemos o norte.






Novos amigos faremos novas manias teremos
Por todo o lado situações extremas;
Os novos amigos passarão, serão renovados
Há uma verdade que não se afigura,
Que eu sou eu, que tu és tu
E a morte…um sonho da aurora.



Porque ligar à provocação ou ao laudo,
Se juntos viajamos?
Gelado o ar sem Deus o mundo
Mera invernia.
Se o inferno se elevasse, se o céu
Fosse azul, com demónios azuis
Tudo me é igual devia ter adivinhado
Quando eu sonho contigo.



Pouco me importam os orgulhos balofos,
De crenças mais frias que o barro;
Caminhos mais longos, um fim mais nobre
Esgrimar com nossas espadas, tomar partido
A minha dama hoje percorre.
Para onde toda a finalidade se larga
Quando caem as estrelas e se esconde a treva.
E Deus volta à carga.



Porque ligar ao riso e ao lamento
Se viajamos juntos?
Tempestades perfeitas do trono
Apenas tempo de tormento.
Para nós a última grande luta sobre a mesa,
Sobre planos finais,
Voltaremos e confirmaremos
O nosso amor pela paisagem inglesa.
G. K. Chesterton— Wine, Water and Song (1915)




Tradução: António Campos

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