quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Fez Cem Anos O Padre Brown


FEZ CEM ANOS O PADRE BROWN

 

 

 

    

 

    É mais vulgar comemorar-se o aniversário de escritores, de carne e osso, do que o das personagens que criaram pela magia da escrita e riqueza da imaginação. Mas alguns desses seres fictícios entraram definitivamente no nosso imaginário e conseguiram viver para além dos seus autores, são seus filhos literários que eles próprios geraram e seguiram, depois, o seu caminho adulto e natural. É o caso do Padre Brown. E embora o primeiro conto – “ A Cruz Azul” – deste curioso detective criado por G. K. Chesterton tenha efectivamente surgido na segunda metade de 1910, na revista Storyteller, foi reimpresso no ano seguinte, aparecendo então o primeiro volume da série, A Inocência do Padre Brown, em 1911. Há cem anos, portanto.

 

    O seu amigo Padre John O’Connor, de Bradford, “ irlandês sensível, de espírito agudo, com aquela ironia profunda e aquele potencial de irritabilidade que é próprio das pessoas da sua raça” e, ao mesmo tempo, “ airoso e delicado, pessoa divertida e que diverte”, assim caracterizado pelo escritor inglês e que tanto apoiou Chesterton no campo espiritual – foi a ele que G. K. C. se abriu em confissão pela primeira vez -, serviu-lhe de modelo e inspiração para o famoso detective que todos os amantes da boa literatura policial tão bem conhecem.

    E que, diga-se a propósito, influenciou grandes escritores do género. Há referências directas ao Padre Brown ou a Chesterton em Ellery Queen ( O mistério dos fósforos queimados, A prova dos nove), S. S. Van Dine ( O caso Benson), Agatha Christie (Crime no vicariato, Hotel Bertram), só para citar, e meramente a título de exemplo, alguns dos mais conhecidos e apreciados pelos leitores contemporâneos. O sacerdote detective e o seu criador exerceram também uma definitiva influência na obra de Dorothy L. Sayers, sem dúvida uma das mais populares escritoras de romances policiais do século vinte.

 

    São igualmente de lembrar dois escritores, de formação muito diferente, um italiano e um brasileiro, que a ele se referem com agrado e simpatia. António Gramsci, conhecido teórico do comunismo italiano, numa carta dirigida a Tânia, escrita na penitenciária de Turim, a 6 de Outubro de 1930 e recolhida posteriormente nas Cartas do Cárcere, deixou-nos uma análise muito arguta desta personagem chestertoniana. “ O Padre Brown é um católico que se ri do modo mecânico de pensar dos protestantes e o livro –  A Inocência do Padre Brown – é fundamentalmente uma apologia da Igreja Romana contra a Anglicana. Sherlock Holmes é o policial “ protestante” que encontra o fio da meada do crime partindo do exterior, baseando-se na ciência, no método experimental, na indução. O Padre Brown é o sacerdote católico que através de refinadas experiências psicológicas fornecidas pelas confissões e pela trapalhada casuística moral dos padres, embora sem menosprezar a ciência e a experiência, mas baseando-se especialmente na dedução e na introspecção, supera Sherlock Holmes em cheio, fazendo-o aparecer como um rapazola pretensioso, revelando a sua angústia e mesquinhez. Por outro lado, Chesterton era um grande artista, enquanto Conan Doyle era um escritor medíocre, ainda quando elevado a baronete por méritos literários; por isso existe em Chesterton um distanciamento estilístico entre o conteúdo, o enredo policial e a forma, isto é, uma subtil ironia em relação à matéria tratada que torna mais saborosas as narrações”.

 

    Gustavo Corção, escritor brasileiro, assumidamente católico, um dos maiores prosadores da língua portuguesa do século passado e que dedicou a G. K. Chesterton um livro por inteiro – Três alqueires e uma vaca -, diz-nos que a força do Padre Brown “ está no bom-senso e no olhar poético e místico com que vê o mundo. Está até numa certa dose de distração e sonolência com que se alivia do penoso trabalho de catar pontas de cigarros e impressões digitais. Diante dos dados concretos, candidamente apreendidos, interpretados muitas vezes ao pé da letra, ele se encontra em simpatia com o criminoso, e inventa, poeticamente, ou recorda misticamente, como praticaria ele o crime.”

 

    Servido por um finíssimo humor e uma inteligência escandalosamente atenta, porque permanentemente vestida do sentido comum, Chesterton, que já foi considerado o maior escritor do século vinte, abre um dos seus melhores contos de esta série – “ Os pecados do Príncipe Saradine” – de uma forma verdadeiramente notável e exemplar, sintetizando em poucas frases todo o mistério e encanto da narrativa. Ouçamo-lo, antes de o ler, ou reler, com o prazer e a alegria que merece:

 

    “Quando decidiu fazer um mês de férias do escritório que tinha em Westminster, Flambeau foi passá-lo a bordo de um pequeno barco à vela; o barco era tão pequeno, que tinha de funcionar quase sempre como barco a remos. E levou a embarcação para os pequenos rios da zona oriental; estes rios são tão pequenos, que o barco parecia um bote mágico, navegando em terra por entre prados e milheirais. A embarcação tinha capacidade para duas pessoas; e, como só havia espaço para as coisas mesmo essenciais, Flambeau levou aquelas que, com a sua peculiar filosofia, considerava mesmo essenciais. Aparentemente, eram apenas quatro: latas de salmão, para o caso de desejar comer alguma coisa; revólveres carregados, para o caso de querer travar algum combate; uma garrafa de conhaque, presumivelmente para o caso de desmaiar; e um padre, presumivelmente para o caso de morrer.”

Publicado no quinzenário cultural portuense As Artes entre as Letras, 2011.

 

 

 

ANTÓNIO LEITE DA COSTA, 2011



 
 
 

1 comentário:

  1. Devo ser por isso que a BBC começou uma nova série com o personagem: https://www.youtube.com/watch?v=HsHDcn93tsk (primeiro episódio com legendas em português)

    Tem ainda a série da BBC de 1974, mas não foi a primeira como eu pensava. Existe uma série com as histórias de Pe Brown feitas na Itália, pela RAI, em 1970. Nessas dramatizações se inclui nos diálogos paráfrases de algumas passagens dos livros de Chesterton, em especial, "A Ortodoxia".

    E ainda mais antigo é o longa metragem com o nosso querido personagem, feito no ano de 1954. Você pode assití-lo, com legendas em português, aqui: http://sociedadechestertonbrasil.org/midia/filme/

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