segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Chesterton Para Principiantes - Dialética: Fora dos Opostos


 

Chesterton pensa filosoficamente no sentido em que o seu pensamento se encontra impregnado de
uma lógica que é identificável, mas que se deve apelidar de uma lógica intuitiva, “de ver” em vez de uma lógica dedutiva, de demonstrar. Ele não pensa em pensar filosoficamente, i.e., ele não propõe nenhuma teoria ou método filosófico, ele simplesmente nos diz o que pensa sem nos dizer muito de como pensa ou como passou a pensar desse modo. Podemos no entanto detectar um método dialéctico no modo como escreve, embora ele nunca lhe chame tal coisa; nem sequer método. Mas Chesterton opõe-se claramente a Locke e a Hume, na tradição inglesa, e a Kant e a Hegel, na tradição alemã, por tentarem esconder a palavra espírito na palavra mente, tomando-as como sinónimas, o que significa despojar de sentido uma delas, espírito. Para ele a realidade espiritual não é metafórica, é a própria realidade. O espírito é como o vento que abana as árvores; o vento não é produzido pelo movimento das árvores. O homem encontra-se presente no tempo, na História, mas também na eternidade. Ambas as realidades se “desenrolam a par”.

Esta capacidade de “ver e fazer ver”, muitas vezes utilizando a redução ao absurdo, o grotesco e o paradoxo, fez o filósofo marxista Ernst Blöch afirmar que Chesterton foi um dos homens mais inteligentes que alguma vez existiu (Bloch fez parte do chamado círculo Max Weber, tendo privado com Lukács, Karl Jaspers, Adorno, Walter Benjamin, Kurt Weil, Berthold Brecht).

A mente não lida com factos que inventou, como num sonho, mas sim com factos que encontrou, como na ciência: uma cerejeira dá cerejas. A repetição não torna as coisas menos apetecíveis: eu vejo todos os dias a minha mulher e os meus filhos e essa visão não me cansa (se eu sou um homem são); uma vez que a minha morte é inevitável, eu sinto-me agradecido por ter mais um dia de vida e poder olhar a luz do dia. Dizia Santo Agostinho: “O nascimento de qualquer bebé é muito mais milagroso do que a ressurreição de Lázaro.”
 
 


O encerramento na dialética dos opostos:


Frequentemente as pessoas são colocadas entre a opção de uma criação ou de uma evolução para a origem da vida. Acontece que estas premissas são falsas. Não há nada na evolução que faça dela o contrário da criação, pela simples razão de que toda a criação continua no presente e de que sem evolução a criação não faria sentido, na medida em que o desenvolvimento é uma etapa necessária no processo da vida. A criação não nasce acabada, mas incompleta; vem a este mundo completar-se.

A realidade não é contraditória, é multiforme e paradoxal. É o homem que a percebe como contraditória. Por exemplo, as mais famosas heresias tomavam Cristo apenas como homem (heresia ariana e Islão) ou apenas como espírito (heresia gnóstica e albigense). A Igreja e os primeiros apóstolos sempre insistiram que Cristo era um homem, que foi tocado, que falou, que sofreu, tal como é Deus. Por outro lado, Chesterton sempre insistiu que um homem não é nada sem o seu corpo, porque um fantasma não é um homem, nem sem o seu espírito, porque um cadáver também não é um homem. Um homem é simultaneamente corpo e espírito como o atestam a sua natureza criadora, a moral e a noção de dignidade, que se expressa pela vergonha ou se desequilibra no orgulho.


No caso da criação é mais fácil ao homem discutir como se a criação tivesse acontecido, fosse uma coisa do passado, e não estivesse continuamente a acontecer. No entanto, nós somos testemunhas e actores vivos da criação. Essa miopia resulta da natureza da criação humana. Aquilo que o homem cria não possui em si a característica de incompletude com a possibilidade de se auto-completar. As criações humanas, técnicas ou artísticas, encerram em si mesmas a sua finalidade; a sua finalidade é imutável e é sempre aparente. Podem ser objecto de múltiplas interpretações mas não mudam por elas próprias, não se completam. Quando a artista ou o engenheiro termina elas estão completas, não possuem capacidade de se completarem.



 


As coisas contraditórias possuem algo de semelhante, de outro modo nunca poderiam ser contraditórias
 

Nós nunca poderíamos afirmar que uma tartaruga a correr é o oposto de uma lebre se elas não partilhassem a qualidade da velocidade. Uma tartaruga nunca poderá ser mais lenta que um triângulo isósceles. Para definir um oposto é necessário efectuar uma comparação, pelo que ser oposto é, paradoxalmente, partilhar uma determinada propriedade. A realidade não é contraditória, é paradoxal.


 
A compartimentação: da inexistência das coisas à inexistência das categorias

 
Pessoas como Hegel e Nietzsche defendiam que o que realmente existe é um processo de transformação e não coisas, na medida em que as coisas estão em permanente transformação. Contudo, o processo como absoluto requere que o tempo seja absoluto; por outro lado, se não existirem coisas, se não existir objecto, não existe sujeito, não existe alteridade, não existe pensamento. É a negação da própria existência e do próprio pensamento, mesmo do pensamento que isto afirma. É uma antinomia.
Se para Wells e os seus mestres nominalistas, como Guilherme de Ockam, não existirem categorias, mas apenas coisas particulares, como poderemos continuar a falar de homens, de cadeiras ou de automóveis, em geral? O homem vê a diferença nas coisas, mas também procura ligar as coisas entre si por meio da lógica e da razão. Apesar de existirem cadeiras muito diferentes umas das outras, algo deverão ter elas em comum para que lhes não chamemos bicicletas.
Não podemos oscilar apenas entre o extremo de dizer que não existem coisas e o outro extremo de afirmar que só existem coisas, sem qualquer ligação entre elas. A dialética da vida exige um pouco mais. O pensamento liga as coisas entre si. Neste sentido, Chesterton usa a razão e a lógica de uma forma mais adequada do que os racionalistas; é mais racional que os simples racionalistas.



 
Entre a Loucura e a Sanidade

 
O que caracteriza o louco é ele encontrar sempre um sistema que abarca quer a sua afirmação quer a sua justificação. Se uma pessoa diz que é vítima de uma conspiração não adianta negar com o argumento de que todas as pessoas negam fazer parte dessa conspiração. Isso é a própria definição de conspiração.
Se alguém diz ser Jesus Cristo não adianta negar afirmando que toda a gente nega que essa pessoa é Deus. Ora, foi isso precisamente o que fizeram a Jesus Cristo.
A loucura é inteiramente lógica e nunca será desmontada pela lógica. A dialética de Hegel nunca retirará Hegel do seu castelo ou Freud do seu inconsciente ou Marx do seu partido, para considerar os monismos mais populares.
A solução terá que ser diferente, fora do sistema. Poder-se-ia responder: eu acredito que a sua explicação explica muita coisa mas não haverá outras tantas coisas que ficam por explicar?
“Quer então dizer que o senhor é o Criador e o Redentor do mundo; mas esse mundo deve ser pequeno! O senhor deve habitar num céu muito reduzido, em que os anjos pouco maiores são do que borboletas! Que triste deve ser ser-se Deus; e ainda por cima um Deus tão imperfeito! Não haverá de facto vida mais cheia, amor mais maravilhoso do que o seu? Será realmente na sua pobre e dolorosa compaixão que todos os homens devem confiar? Já pensou quão mais feliz se sentiria, quão mais alargada seria a sua existência, se um martelo de um Deus superior pudesse esmagar-lhe o seu pequeno cosmos, dispersando as estrelas como lantejoulas, e deixando-o na rua, livre, como são livres os outros homens, com a possibilidade de olhar para baixo, mas também para o alto?”
“Uma pessoa não consegue libertar-se de uma doença mental por via do raciocínio porque é precisamente o seu órgão do raciocínio que está doente, ingovernável e autónomo. O único modo de o salvar é através da vontade ou da fé. Se for só a razão a funcionar, andará às voltas no interminável círculo da lógica como quem anda numa linha circular no metropolitano. A menos que realize o acto místico de sair do metropolitano. É necessário um acto voluntário, um acto místico, fechar definitivamente uma porta: sair do metropolitano!”

“Se a tua cabeça é para ti ocasião de pecado, corta-a, porque é preferível entrares no céu como um imbecil do que seres internado num manicómio com o intelecto intacto!”

O louco tem uma ideia que explica tudo, livre da hesitação e complexidade que caracterizam a pessoa sã. Apresenta a combinação de uma razão expansiva com um limitado senso comum. Falta-lhe o sentido ilativo. O senso comum é inteiramente racional e indispensável ao equilíbrio que impede o homem da deriva intelectual, porque de são e de louco, todos temos um pouco. A loucura está logo ali, à porta, e a política está cheia de exemplos desse tipo de desequilíbrio racional.





O Equilíbrio Paradoxal

 



Para Chesterton, quando uma virtude não é equilibrada por um conjunto de outras virtudes, torna-se louca. Assim, a compaixão pelos pobres é uma coisa boa, mas se isso significar o não respeito pela pessoa humana, passa de caridade ou amor, a totalitarismo. Tal como a crença na omnipotência de Deus tem que ser vista na perspectiva da vontade de Deus em manter os seus filhos como criaturas livres. O desequilíbrio leva por um lado ao determinismo e por outro lado à libertinagem. A castidade pode ser uma coisa boa se for equilibrada pelo relacionamento sexual entre dois seres que partilham a sua vida. O desequilíbrio leva ao estoicismo pessimista ou à luxúria gnóstica. A propriedade é um direito divino, mas se não for equilibrada pela noção de liberdade e dignidade humana, pode levar ao poder das oligarquias que nunca servem os interesses do homem: o socialismo ou o capitalismo.


 
Entre a Dialética dos loucos: outra forma de Equilíbrio Paradoxal

 
"O materialista compreende tudo mas nem tudo é para ser compreendido, sobretudo aquilo que escapa ao seu conhecimento. É um cosmos completo mas mais pequeno que o nosso mundo. Não leva em conta as coisas reais que existem no mundo: o primeiro amor, os povos que se combatem, o orgulho nos filhos, o medo do mar. O mundo é tão grande e este cosmos é tão pequenino! É uma completude que é uma incompletude. Se o homem que está encerrado no manicómio é Deus, não é um grande Deus e se o cosmo do materialista é o verdadeiro cosmos, não é grande cosmos. A divindade é menos divina que muitos homens e a vida é, no seu todo, muito mais cinzenta que muitos dos aspectos dessa mesma vida. A coisa encolheu, dá a impressão que a parte é mais completa que o todo.

Claro que a filosofia materialista é muito menos ampla do que qualquer religião. O cristão encontra-se limitado pelo facto de ter que acreditar que o cristianismo é verdadeiro, para continuar a ser cristão; da mesma forma que o ateu está impedido de acreditar que o ateísmo é falso, para continuar a ser ateu.
Mas o materialismo limita muito mais do que estes dois tipos de espiritualismo. O cristão está convencido que uma parte do universo é determinista e tem que obedecer a leis e a desenvolvimento inevitável. Contudo admite excepções, que o universo é variado e que nem tudo é determinismo. Admite mesmo que é complexo e qualquer homem são admite que ele mesmo é um ser complexo.
O materialista vê a história como uma cadeia de causas e efeitos; tal como o louco, está absolutamente convencido que é uma galinha ou que é Deus. Os materialistas e os loucos nunca têm dúvidas. O mundo do materialista é simples e sólido, tal como o louco tem a absoluta certeza que está são".




A Dialética do homem são: o sentido místico da realidade

 
"Qualquer homem são sabe que tem uma parte animal, uma parte de demónio, uma parte de santo, uma parte de cidadão; um homem que de facto seja são sabe que também tem uma parte de louco.
As afirmações espiritualistas não limitam a mente do mesmo modo como o fazem as negações materialistas. Eu posso acreditar na vida eterna sem necessitar de pensar no problema da vida eterna, mas se eu não acreditar na vida eterna não posso sequer pensar no problema da vida eterna. Num caso encontra-se um caminho aberto que podemos percorrer até onde quisermos, no outro encontra-se um caminho fechado.
Sem discutir a verdade de qualquer uma das proposições, espiritualista ou materialista, podemos constatar a sua completude e incompletude. O mundo do materialista é um mundo cinzento; lógico, mas cinzento. Nele não cabem todas aquelas fascinantes dimensões da humanidade: a cortesia, a esperança, a coragem, a poesia, o espírito de iniciativa, o grande amor. Tudo o que é intrinsecamente e mais intensamente humano.
O materialismo não é uma força libertadora. A sua liberdade de pensamento apenas serve para destruir a liberdade de acção.
Mas existe aquele tipo de céptico que acredita que tudo começou nele. Foi ele quem fez o próprio pai e a própria mãe; os amigos são uma mitologia por si construída. Um homem pode acreditar que se encontra permanentemente dentro de um sonho, sem que essa crença possa ser destruída pela argumentação, mas se ele decidir atear o fogo a Londres enquanto toma o pequeno almoço, pode ser que nunca mais o possa tomar em casa.
Uma pessoa que não acredita nos dados dos sentidos ou uma pessoa que só acredita nos dados dos sentidos, estão ambas loucas, mas a sua loucura não é demonstrada por um erro de argumentação mas pelo manifesto erro que é a vida de cada uma delas.
A marca característica da loucura é o uso da razão desprovida de raízes, a razão no vazio. O intelectualismo distanciado é apenas luar, porque é luz sem calor, uma luz secundária reflectida de um mundo morto. O círculo da lua é tão nítido e inconfundível, tão recorrente e inevitável, como um círculo de Euclides desenhado num quadro. A lua é inteiramente racional, é a mãe de todos os lunáticos; a todos forneceu o seu nome.
Já o homem comum é um místico. Sempre admitiu o crepúsculo. Sempre se permitiu duvidar dos seus deuses, mas sempre se permitiu acreditar neles. Sempre se interessou mais pela verdade do que pela consistência. Se encontrasse duas verdades que se contradissessem, aceitava as duas verdades e a contradição. Tem uma visão espiritual que é, como a sua visão física – estereoscópica: vê duas imagens diferentes ao mesmo tempo mas isso permite-lhe ver melhor. Sempre acreditou no destino mas sempre acreditou na liberdade. Sempre acreditou que o reino dos céus é das crianças mas que elas devem ser obedientes na Terra. Admirava a juventude porque era impetuosa e a velhice porque era experiente. É precisamente este equilíbrio de contradições aparentes que tem permitido ao homem são manter-se à superfície.
O lógico louco pretende tornar lúcidas todas as coisas e apenas consegue torná-las todas misteriosas. O místico permite que uma coisa seja misteriosa e tudo o resto se torna lúcido. O segredo do misticismo é apenas este: o homem pode compreender tudo com a ajuda daquilo que não compreende. A única coisa criada para a qual não podemos olhar é aquela coisa à luz da qual olhamos para tudo. Tal como o sol do meio dia, também o misticismo explica tudo o resto pelo brilho da sua própria e misteriosa invisibilidade".

 António Campos

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Chesterton Para Principiantes - Dialética: Entre o Optimismo e o Pessimismo







O materialismo filosófico possui várias dimensões. Talvez a mais importante seja a da
indiferença perante a origem sobrenatural e o destino do homem. Toma a premissa de que a matéria física é a única realidade cognoscível. O pensamento pós-darwiniano foi essencialmente materialista, mecanicista, nominalista e monista. A maioria dos ismos do séc. XIX – liberalismo, racionalismo, marxismo, positivismo, agnosticismo – são antropocêntricos e materialistas. As teorias naturalistas foram construídas como métodos de análise e captura da realidade. O volte-face mais importante deu-se a partir da filosofia analítica pós-darwiniana e da psicologia subjectiva freudiana, ligando toda a vida mental exclusivamente a factores de natureza biológica e empírica. Freud, ao sugerir um enorme iceberg determinante do comportamento humano, pretende lançar as maiores dúvidas sobre a validade da razão humana e do homem como ser racional. Em 1913, o behaviorismo apagou as diferenças entre o homem e o animal ao postular o mecanismo estímulo-resposta como o único elemento justificativo do funcionamento da mente.


A filosofia materialista conduziu a duas conclusões diferentes:

- Para Herbert Spencer e Huxley, darwinista, existia uma visão optimista do futuro alicerçada numa inevitabilidade do progresso evolucionista. Os positivistas como Comte também acreditaram numa crescente organização social, política e religiosa no caminho fixo rumo à perfeição.

- A outra conclusão era a de que o homem estaria refém de um universo mecanicista, indiferente, e das forças da natureza, que exerceriam uma força arbitrária sobre ele – o dilema do homem pré-determinado e enclausurado. Incapaz de determinar o seu destino, o homem cessa a sua condição de ser moral.

O materialismo filosófico moderno é, pois, ou optimista ou pessimista. A teologia do livre arbítrio e do pecado foi pois rejeitada em favor de um comportamento naturalista determinado por forças biológicas, psicológicas ou sociológicas. A concepção de uma razão inata e de uma ética universal foi substituída pela concepção pragmática de que não existem realidades prévias impressas na natureza humana ou no universo e a de que as normas morais, a ética social e a lei, evoluem naturalmente como resultado da  contingência e da experiência.

Para os pessimistas o homem encontra-se excluído da redenção. Para os optimistas o homem redime-se a si mesmo. A Encarnação, a cruz, a ressurreição, ficam esvaziadas de significado. Pio X na encíclica Pascendi Dominici Gregis classificou o modernismo como a síntese de todas as heresias. Os modernistas, influenciados por Henri Bergson, rejeitaram a ideia de que a fé é de natureza intelectual. Defendiam que Deus era mais conhecido pelas emoções do que pela razão e de que o dogma resultava da experiência concreta e se encontrava sob a influência do processo evolutivo. Partilhavam as premissas neo-kantianas de que o sobrenatural não podia ser apreendido pelo conhecimento racional. Essa foi a premissa de Nietzsche.



Qual a natureza do ser e da existência? Existe uma realidade externa ao sujeito pensante? Como se explica o pensamento? Como se comunica Deus com o homem? Existe uma estrutura moral no universo apreensível por todos? Estas são as grandes questões filosóficas e epistemológicas.

Chesterton responde dizendo que existe uma realidade de objectos tangíveis fora de nós próprios. A realidade existe. A certeza e a consciência existem. O conhecimento inicia-se com o que apreendemos pelos sentidos mas é completado pelo intelecto conceptual (comum a todos os homens) que é capaz de intuir a natureza essencial das coisas.
Portanto, a verdade absoluta e universal existe e está disponível a todos os homens mediante o uso da razão. A razão separa o homem dos animais e liga-o a Deus. O intelecto segue o trajecto que o conduz a Deus mediante a busca da causa primeira e da razão suficiente de todas as coisas. A fé é, então, uma faculdade do intelecto e o produto de um processo racional.

Quer o idealismo, quer o pragmatismo, quer o materialismo, quer o cepticismo, quer o utilitarismo, carecem de senso comum, produzindo apenas dúvida e desespero, e espalham as sementes do permissivismo moral e do julgamento privado subjectivo. O homem oscila então entre sujeito ou ordenador de uma moral sempre em mudança ou objecto de uma tirania da lei da selva, à qual se tem que cegamente submeter, como apenas mais um dos animais. Numa versão é um deus de um universo pequeno – aquele que tem dentro da sua cabeça -, na outra é um mero objecto minúsculo das forças terríveis de um universo monstruoso e inexorável; mera folha seca açoitada pelo vento, abandonado ao determinismo da natureza e da História.



Para Chesterton, o homem é dotado de livre-arbítrio, sendo responsável pelas suas acções morais. Essa responsabilidade implica uma fonte externa para a moralidade e uma aplicabilidade universal, para manter a igualdade e justiça perante todos os homens. Mas o homem também possui a faculdade do arrependimento. Ao escolher tal via o homem reencontra o caminho da virtude. O facto de o homem ser pequeno não o inferioriza no universo, pois no universo as coisas pequenas têm o mesmo poder das grandes, como o atesta a microscopia e a ultra-estrutura. O homem não é menos importante do que a girafa ou o elefante. Por outro lado, se o homem não se colocar numa posição pequena, i.e., de humildade, não franqueia a porta do conhecimento. Conhecer é aprender e só aprende quem escuta e age, não quem pensa ser a fonte do próprio conhecimento.

O que o tomismo ataca no modernismo são as suas premissas formais, neo-kantianas: o ênfase no sujeito do conhecimento em vez de no objecto, e a assumpção de limites no intelecto racional para a apreensão de uma realidade universal. O tomismo assume um antagonismo relativamente à ideia de uma realidade instável, mera mudança ou fluxo, traduzindo-se numa oposição aos subjectivistas neo-kantianos, como Dewey e Bertrand Russell, que defendiam precisamente que os conceitos e o conhecimento conceptual são mutáveis e modificáveis (se é que o conceito precisamente se lhes pode ser aplicado, seguindo o seu próprio raciocínio).

Contrariamente a subjectivistas como Freud, Lawrence, James Joyce, Franz Kafka e Nietzsche, que viam no irracional submerso “cá dentro” a origem última das coisas, o tomismo acreditava numa realidade externa, na validade dos sentidos e da razão para a alcançarem e na existência de verdades universais e imutáveis.



Cada idade rescreve a História para coincidir com a sua própria visão da realidade.




António Campos

domingo, 23 de novembro de 2014

HEGEL Para Principiantes – Crítica Dialética, parte II



A nossa época é em grande medida kantiana, hegeliana e marxista, no sentido em que 
predomina o cepticismo, a suspeita ou hostilidade para com o homem comum, o egocentrismo, a construção de sistemas para encaixe da realidade e finalmente a negação da possibilidade de alcançar a verdade. O que caracteriza os filósofos da moda é o materialismo e o anti-cristianismo. No entanto, o cristianismo aparece sempre em pano de fundo; estas filosofias parecem sempre construídas em relação a e em negação. Mas o facto de a discussão entre ateus e crentes continuar, tantos anos após o iluminismo, parece provar que acreditar em milagres não é próprio de uma mente menor (como afirmava Arnold Bennett) e que nenhum homem suporta morrer fora da verdade. Se tudo acaba na morte para quê discutir se existe vida para além da morte? Nenhum homem suporta morrer no erro. A ânsia pela verdade está profundamente inscrita em toda a alma humana. A verdade tem uma natureza tal, que quando um homem não segue apenas guiado pela vaidade da sua mente e do seu ego, desligado da experiência do viver quotidiano, em comunhão com os outros homens, ela acaba por se tornar evidente ao seu espírito.  Terminamos a crítica à dialética de Hegel, incidindo sobre a natureza da realidade.


Realidade Multiforme em viagem: determinismo, probabilidade, mistério4


– Determinismo e Probabilidade

O universo matemático independe do tempo. Os teoremas de Euclides e de Pitágoras já existiam antes destes matemáticos os terem formulado porque eles são reais, encontram-se por todo o lado no universo. E continuarão a existir depois de nós. Todo o universo se desenrola sobre o tapete da matemática. A ordem matemática racional precedeu o Big Bang. A origem do Universo não é de natureza física, é matemática. A matemática está fora do tempo5.

No universo físico a correspondência não é tão exacta como na matemática, na medida em que as substâncias sofrem transformação. No entanto, nunca alguma coisa surge do nada, tudo se conserva e transforma. O universo físico sofre a influência do tempo, mas mantém um elevado grau de determinismo. À medida que nos aproximamos da sua natureza mais fundamental, como a ultra-estrutura e a natureza da radiação, a obtenção de graus de certeza têm apenas natureza probabilística, como o demonstram a teoria quântica e a teoria da relatividade.

No universo biológico o grau de incerteza é muito superior. Não só os descendentes herdam apenas um dos pares do ADN dos progenitores, como podem existir fenómenos de crossing-over, de inactivação génica, ou toda a variabilidade que a epigenética pode conferir.




No universo psicológico, acentua-se a incerteza e o subjectivismo, o que expõe a sua interpretação ao espírito da época. Primeiro acreditava-se que tudo era aprendido por educação: Rousseau e Bernard Shaw. Basta ver qual o assunto de fundo da obra de Shaw, Pigmalion ou My Fair Lady ou de O Emílio de J.J. Rousseau. Depois passou a acreditar-se que eram os traumas da infância que determinavam o comportamento adulto ou um misterioso id incognoscível, irracional, aético, submerso no interior do ser, a que se opôs o behaviorismo ou comportamentalismo. Seguiu-se que tudo era genético. Agora pensa-se que existe um componente genético e um componente ambiental. Enfim, neste universo o grau de incerteza aumentou. 
Dizia Bernard Shaw sobre o seu pessimismo: “Eu não tenho culpa, caro leitor, que o meu estilo seja a expressão de uma certa perversidade moral e intelectual, mais do que um sentido de beleza. Passei a maior parte da minha vida em cidades modernas, onde o meu sentido de beleza definhou e o meu intelecto se afundou em problemas como o das favelas.” G B Shaw, The Bodley Head Bernard Shaw. Chesterton poderia dizer algo semelhante e somar umas quantas desgraças pessoais e familiares; porém não optou pelo mesmo tom.

O universo moral é ainda mais complexo: porque perdoamos, porque protegemos os fracos, porque tratamos dos doentes e dos velhos, porque temos sentido de culpa, porque temos um ordenamento moral e jurídico? Porque nos causa angústia a errónea avaliação dos fracos e dos feios?



No universo religioso o grau de previsibilidade é ainda menor. Na altura em que o homem somava deuses e mitos, deu-se a inversão monoteísta e a alegoria. Na altura em que se fazia a apologia dos fortes e do auto-fortalecimento, deu-se a religião do “outro” e dos fracos. Na altura dos demónios implacáveis, veio o Deus que chora, que vacila e que reza.

À medida que o nosso universo versa sobre uma realidade mais complexa, o seu determinismo diminui e o grau de previsibilidade também. Como dizia Heisenberg, o universo foi concebido de tal forma a que o improvável seja concebível. A armadilha para os lógicos é que embora o universo pareça inteiramente lógico por se desenrolar sobre o pano de fundo da matemática, foi nele introduzido um pequeno grau de imperfeição, de incompletude, de variabilidade, que o tornam sempre maravilhosamente novo e inesperado, sem deixar ser familiar.




Uma Realidade apreensível mas não na sua totalidade


Por a realidade não ser disponível em sua totalidade, tal não significa que não seja apreensível pelo ser humano. Por uma realidade ser multiforme, sendo apenas apreensível por uma miríade de olhos, tal não significa que dois olhos não apreendam uma das múltiplas faces constitutivas da realidade poliédrica. Ninguém pode dominar simultaneamente a matemática, a medicina, a arquitectura, a física, a música, etc. Tal não significa que não conheçamos aquilo que conhecemos. Por nem da natureza humana sermos senhores, isso não faz de nós menos humanos.

Por eu ser analfabeto musical não significa que eu não guardo capacidade de avaliação de uma peça musical ou de uma melodia. Por eu ignorar conceitos matemáticos como o de números imaginários não significa que eu não sou confiável no uso da aritmética. Por eu ser um zero em pintura não significa que não posso apreciar um quadro. Será que Mozart não era músico por não conhecer a música rock? Ou será que Münch não era pintor por não pintar como Delacroix?




A realidade incomunicável também é conhecimento


Hegel afirmava que o que é incomunicável não é conhecimento, é o mero acreditado. Mas sem ir para o campo da metafísica, não é difícil de provar que existe algo na realidade de incomunicável e intangível que é conhecimento. Por exemplo quando tentamos traduzir uma língua estrangeira, existe algo do saber comum de um outro povo que não conseguimos colocar por completo na nossa tradução, mesmo que compreendamos do que se trata, pela falta de equivalentes precisos. Há algo nos conselhos que nos dão que não os torna completamente credíveis, porque eles não passaram pelo fogo da nossa própria experiência. Há algo naquilo que os nossos pais fizeram por nós que, por mais que o tenhamos admirado, nunca valorizamos completamente; é, por sua vez, quando, nos tornamos pais que compreendemos melhor a acção dos nossos próprios pais, as suas angústias, ânsias e alegrias. É quando tentamos descrever fisicamente uma pessoa que compreendemos que falta algo na linguagem que só a arte pode melhor expressar. Hegel foi traído pelo seu anti-empirismo radical. A realidade é apreensível mas tem uma dimensão intangível.


A posse esgota o desejo; é a liberdade que o mantém


Hegel dizia que o desejo se esgotava com a posse do objecto e que a posse era essencial ao homem no processo de identificação. Todos temos a experiência do brinquedo abandonado ao fim de uns dias de uso quando éramos crianças; ou, em adultos, do automóvel que perdeu aquele brilho que possuía quando chegou à garagem pela primeira vez. No entanto, se amamos uma pessoa, ela nunca é o objecto que se possui, o desejo nunca se esfuma; é na sua liberdade que se funda o nosso desejo. Como não conseguimos englobar toda a realidade cognoscível – matemática, ciência, arte, etc. – o nosso desejo de conhecer não se esgota. Também a desproporção que existe entre o intelecto criado e o Criador não cessa o desejo: “Tal como a corça suspira pelas torrentes de água, assim eu anseio por Vós, ó meu Deus.”





O que é real é a particularidade


Os testes de ADN, as impressões digitais, o número de poros/cm2, a leitura da íris, todos nos indicam uma realidade e unicidade no que é individual. Até por características tão triviais como o som que se faz ao caminhar, se pode reconhecer uma pessoa próxima. E o que dizer da especificidade do olfacto dos cães que seguem um rasto de uma pessoa específica às vezes com sete dias de intervalo? É exactamente ao ”tudo” que falta consistência e concordância. É mais fácil descrever as características objectivas de uma pessoa determinada do que as características do povo a que pertence, sobre o qual haverá sempre opiniões contraditórias. O próprio Deus indicou essa realidade ao comunicar sempre por meio de indivíduos concretos.


O Tempo como desenvolvimento de uma realidade incompleta


O tempo determina todo o pensamento da lógica hegeliana. No sentido em que o processo em si é a realidade enquanto que as coisas são apenas estados, meras ilusões. Mas devido à incompletude da vida, à sua natureza particular e única em cada coisa, parece que o tempo é apenas uma etapa para a necessária interacção entre as pessoas, os seres e as coisas, e para a sua completude. Como se a presença de realidades concretas tão dissemelhantes servissem para limar arestas e fazer realçar vícios e virtudes. As coisas serão assim as realidades e o tempo um processo, em que elas se revelam e se transformam, como acontecimentos numa fita de cinema.





O Progresso como Retorno


Os ciclos que são presentes em toda a biologia são meios para se chegar a qualquer lado. O ciclo de Krebs, o ciclo da ureia, o ciclo da água, são como as rotundas do trânsito, soluções práticas para escoar coisas. Aceitarei imediatamente que o ciclo é a finalidade em si mesmo quando alguém me disser que o objectivo de uma rotunda é circular continuamente à volta dela, em vez de escoar o trânsito com uma determinada ordem e finalidade. Aceitarei que a viagem é mais importante do que a chegada a um determinado local, quando alguém me disser que o melhor de uma viagem a Londres é a estadia no avião.

Se a dialética se fecha apenas em tese-antítese-síntese, é possível como princípio de acção política, ao desejar uma determinada síntese, agir de forma inversa e preparar as respectivas tese e antítese. Este mecanicismo ou esquematismo é encerrado em si mesmo, e ignora o quanto a acção histórica e a própria vida decorre a partir de acontecimentos e personagens inteiramente inesperados e imprevisíveis.

Se o progresso é uma finalidade, então nunca existe ponto de partida nem ponto de chegada, existe sempre o processo e não as coisas, existe apenas fluxo. Como diz Chesterton, não existindo objecto sobre o qual pensar, não existe pensamento (porque não existe alteridade). A lógica de Hegel inicia-se com um ataque à fé e termina com um ataque à razão. Desse ponto de vista é a estrada da crença moderna, da moderna filosofia. C’ést la folie!


Mas…”Eu renovo todas as coisas.”6!



António Campos


Notas 4 e 5 retiradas de Olavo de Carvalho


4 Não existe uma correspondência exacta entre o edifício matemático e a ordem da natureza. Existe um elo, mas não tão firme quanto o da fundamentação lógica, porque na relação causa-efeito foi introduzida a dimensão do espaço e do tempo. É uma correspondência real, mas aproximada (hiato). Não existe a mesma nitidez nem inexorabilidade, não existe uma correspondência perfeita. A realidade matemática não depende do universo físico, mas o universo físico obedece, com esse hiato, à ordem lógico-matemática. Ela é algo, ela não é um nada. Aristóteles tinha razão.

5 Conceito - diferença entre os conceitos matemáticos e os de qualquer outra coisa. Um conceito matemático é sempre fechado em si mesmo e imutável (imutabilidade do objecto: 2, 3, etc.). O significado esgota-se completamente no conceito – é a estabilidade dos entes matemáticos de Platão. Este facto nem é dado pela ordem externa nem é invenção da mente humana. Formas independentes da realidade física existente mas que não são inexistentes. Não são inventadas porque são acessíveis a qualquer homem, são universais. Estas entidades ideais estruturam-se coerentemente no edifício da aritmética. Existe relação lógica entre a premissa (o fundamento) e a conclusão (o fundamentado) numa dedução matemática. A aritmética é inteiramente dedutível.


6 Ap., 21, 5-6.


sábado, 22 de novembro de 2014

HEGEL Para Principiantes – Crítica Dialética, parte I




A dialética hegeliana como sistema, pode ser criticada quanto ao conteúdo e quanto à forma.
Quanto ao conteúdo, estamos perante uma ontologia que assume que a única realidade é a mudança, não a verdade, que as coisas são meras ilusões porque se estão sempre a modificar, que a potencialidade é mais autêntica do que a realidade (porque esta está sempre em mudança), que o homem concreto, tal como as coisas concretas são meras ilusões ou abstrações, que o espírito não tem uma diferente natureza da matéria, nem a matéria tem autonomia face à mente, nem a mente é diferente na sua natureza do espírito.

Quanto à forma, a dialética assenta num raciocínio que aparentemente avança em triangulações sucessivas de contraditórios que não descarta, mas cujo avanço e forma são apenas aparentes, uma vez que o avanço consiste num retorno ou reconhecimento, nunca numa renovação, e a forma consiste num círculo.


O Erro de Pilatos

Talvez uma das mais importantes demonstrações da necessidade da dialética no sentido socrático, i.e., o apuramento ou clarificação conceptual, esteja inscrito numa histórica interpelação:

 Quid est Veritas (O que é a verdade)?”, a questão contraditória em si mesma. A verdade, verĭtāte, por definição, significa a realidade, a conformidade das coisas com aquilo que a mente pensa delas, o conhecimento certo e inquestionável. Conformidade entre o pensamento (ou a sua expressão) e o objecto do pensamento. Pressupõe que a realidade existe, que a existência é o tiro de saída do universo. Que a vida existe, que não é mera ilusão. Se admitirmos que não existe possibilidade de encontrar a verdade nas coisas, se a realidade for imperceptível ou incomunicável, não existe diálogo, porque as palavras nada significam. A pergunta de Pilatos esconde uma afirmação e uma crença, tão actual no seu tempo cosmopolita e civilizado como no nosso: “A verdade não existe. Esta é a verdade!” Contraditório…voltamos a Hegel1.

Deve dizer-se que Hegel nunca pretendeu conduzir alguém à clareza conceptual, justamente porque ele próprio via virtudes na obscuridade. Além disso jamais se poderá considerar que pela junção de opostos, por exemplo a verdade e a falsidade, se possa clarificar seja o que for. Colocar sujo no limpo jamais poderá originar brancura. A lei da não contradição é um princípio basilar do pensamento racional2. Não se pode dizer que Hegel fosse irracional, portanto o que se pode concluir é que Hegel ao falar de lógica está na verdade a falar de ontologia, i.e., do desenvolvimento natural e cultural que faz as coisas serem o que são… até o pensamento filosófico. Todavia, parece encontrar-se na filosofia de Hegel muito daquilo a que hoje se chama “wishful thinking”.

O erro assume duas versões básicas:

– O conhecimento da verdade, mas a comunicação de algo não conforme com ela, a mentira. É a ocultação. Os sofistas actuais esconderam a mentira debaixo de um neologismo: “inverdade”. Estas coisas acontecem quando se é ignorante ou presunçoso e não se tem vergonha na cara.

– O conhecimento de algo que não é conforme à realidade das coisas, que é questionável, mas que o indivíduo crê firmemente ou deseja fervorosamente tratar-se da realidade e comunica-o como tal. É um engano nos sentidos ou na mente (no processo de pensamento) que conduz a erro de percepção da realidade. É a ilusão.

 – Se, como afirmava Hegel, a verdade e a mentira são momentos e não afirmações de certeza, como acreditar que as afirmações de Hegel são a verdade? Trata-se de uma impossibilidade, do mero acreditado, como dizia o próprio Hegel, de um não conhecimento. À “luz” de Hegel, é igualmente válido afirmar que Hegel foi um grande filósofo, como afirmar que foi um psicopata, um charlatão, um mentiroso, um dogmático, ou que nem sequer existiu. A menos que concluamos que para Hegel, como princípio de delimitação da acção, não exista uma moral prévia, mas um modo de se fazer aquilo que se quer fazer (os meus objectivos ditam a minha moral). Hegel nunca se livrará do rótulo totalitário; a sua árvore produziu o fruto dogmático, socialista e nacional-socialista.


Uma matéria instrumental


Resulta bastante evidente que a dialética como sistema hegeliano já estava presente na Fenomenologia, escrita 6 anos antes do primeiro dos três livros da Dialética. Também é evidente a sua estrutura gnóstica ou cabalística: raciocínio triádico circular ou helicoidal, exposto em três livros, cada um com três secções, cada secção com três capítulos. Mas o mais importante aspecto é que o sistema de Hegel resulta na compartimentação do infinito como finito, do espírito como matéria, pois nada há de abstracto que não seja concreto. Hegel nega a natureza distinta entre o espírito e a matéria, vendo esta apenas como “materialização” do espírito, sem existência autónoma. Ao confundir propositadamente mente com espírito, usando-os indistintamente, Hegel apaga a própria possibilidade de caracterizar as premissas. A existência individual de cada homem é uma mera ilusão ou uma abstracção. A ideia de Shelling (e de Kant) da impossibilidade de definir precisamente o infinito, foi denominada por Hegel como “a noite escura de Schelling onde todas as vacas são negras”, o que motivaria a ruptura entre os dois homens.


Matéria finita vs Espírito infinito

Nós sabemos que a matéria é finita. A massa total do universo é da ordem de 2x1052 a 1054 Kg. Equivalê-la ao espírito é sem dúvida um materialismo. Não é portanto de surpreender a remoção do conteúdo lectivo de Hegel da Universidade de Berlim logo após a sua morte, sob a acusação de panlogicismo, i.e., ateísmo. Nem é de surpreender que ainda hoje os seus seguidores oscilem entre uma metafísica panteísta e um materialismo pós-kantiano ateu tout court. Aliás, o próprio Hegel parece ter evoluído de uma concepção mais panteísta na fase mais precoce da sua vida, i.e., a Fenomenologia, para uma concepção mais ateísta, i.e., a Dialética e a Filosofia do Direito. A sua última vontade, ser sepultado ao lado de Fichte, expulso da Universidade de Berlim por ateísmo, é simbólica.


A Natureza do Pensamento Racional

– Junção de Contraditórios: Ao constituir a síntese e afirmar a dupla negação como a junção de contraditórios, Hegel nunca conseguiu o respeito dos matemáticos. Em lógica uma dupla negação equivale à afirmação inicial (não é falso = verdadeiro). Ao negar a antítese, Hegel deveria regressar à tese inicial e analisar o erro cometido. Em lógica existe um princípio que se chama o princípio do terceiro excluído: Uma afirmação ou é falsa ou verdadeira, nunca pode ser simultaneamente verdadeira e falsa tal como também não pode ser nem falsa nem verdadeira. De outro modo, todo e qualquer código de linguagem deixa de expressar a realidade e passa a conduzir ao absurdo. Se a verdade e a falsidade se podem reunir numa síntese, como se pode saber onde está o conhecimento ou a mera opinião? O princípio da não contradição é o núcleo basilar do pensamento racional.

Foi Kant, quem ao tratar das suas antinomias, afirmou que a uma tese que não resultasse de conhecimento sintético a priori, i.e., científico, se poderia opor sempre uma antítese (no conhecimento religioso a um acredito pode sempre opor-se um não acredito). No entanto, embora admitisse poder um dia encontrar-se uma síntese para esta antinomia, jamais foi ao ponto de dizer que a síntese incluiria contraditórios mutuamente exclusivos.


A Dialética como instrumento para o apuramento conceptual


– No processo de conhecimento científico, ou de indução, a contradição não pode ser permitida, porque derruba o edifício construído e deve conduzir à sua reformulação – o achado de um único cisne negro derruba a máxima de que todos os cisnes são brancos. Se não eliminarmos as contradições, o progresso detém-se, não progride. Esse parece ter sido o objectivo de Hegel. Ao afirmar que as contradições não só são inevitáveis, como permitidas e altamente desejáveis, Hegel pretendeu acabar com a ciência e com a contra-argumentação racional. Ao tornar a crítica impossível ele ergue a sua filosofia ao nível do dogmatismo.


No Princípio Era o Verbo3

Um monte de tijolos, cimento, madeira e tinta não é uma casa. O que faz as casas diferentes não é o total de tijolos, telhas, madeira e tintas de cada uma. A explosão original não foi a origem real do universo. O universo obedeceu ab initio às leis da física e da matemática. Essa ordem racional precedeu-o, da mesma forma que a concepção do arquitecto precede a casa.


Opostos e Complementares

– Contrários e complementares: o interno e o externo não são contrários, são complementares. Os complementares não se anulam, ambos constituem uma realidade. O meu casaco para ser casaco tem necessariamente que ter um interno e um externo que em nada se antagonizam. O mesmo posso dizer do meu próprio corpo ou de um homem e de uma mulher.

– O ser e o não-ser: nesta primeira premissa da dialética esconde-se um dos maiores colapsos da filosofia de Hegel. Em primeiro lugar, tudo o que existe é. Pode transformar-se, mas nunca se perde. De Lavoisier recebemos a máxima da química moderna: na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Entre os seres vivos, inclusive, esta qualidade de estar vivo só se adquire por transmissão, não vem do nada, o que é absurdo.

A morte como não ser: Na morte, aquilo que era ainda é, apenas se transformou. Desse ponto de vista morrer é complementar e não o contrário de nascer. O contrário de nascer será não-nascer, o aborto, a interrupção do ciclo. Mas até o aborto é. Quer Parménides na filosofia quer Lavoisier na ciência, expressaram que para algo se tornar, ou seja, se transformar, teria que provir de uma substância prévia, nunca do nada!

– O Tudo e o nada: O que é tudo? Como sabemos os filósofos estão longe de concordar quanto à plena caracterização da realidade. Será “tudo” apenas a quantidade física de matéria e energia contida no Big Bang? O nada existe do mesmo modo na lógica e no mundo concreto? O nada matemático existe, sabemo-lo: 0, { }. Mas o nada físico existe? Existe algo que nada contenha? No vazio espacial não se aplicam as dimensões do espaço, não decorre o tempo, não é atravessado por radiação cósmica? O nada físico não existe!

Os opostos perfeitos não existem no universo físico, apenas no matemático e no lógico. Precisamente naquele que está fora do tempo, do devir. Portanto não existe nenhuma dialética de opostos no mundo real; fora da lógica abstracta não existe dualismo perfeito, apenas aproximado.

Demos alguns exemplos: é perfeitamente consensual que +3 é o oposto ou simétrico de -3 e que verdade é o oposto de mentira, como falso o é de verdadeiro.

Mas no mundo da realidade física não é assim. Por exemplo, o cloro reage com o sódio para originar cloreto de sódio. No ADN, citosina e guanina interagem ligando-se entre si tal como a adenina com a timina. Mas sódio e cloro, citosina e guanina, adenina e timina, não são contrários mas complementares. O que caracteriza complementares é que da sua interacção surge algo de novo, tal como de um homem e de uma mulher se renova o mundo.

A água parece o oposto do fogo. No entanto, algo da sua natureza é idêntico. A água contém energia em si mesma e originou-se dessa primeira energia original do Big Bang.

O feio parece o contrário do belo, mas inúmeras vezes a aparência do belo esconde o feio. Podemos pensar nos oficiais SS, com os seus graus de PhD e os seus olhos azuis, em comparação com os desdentados e esqueléticos judeus. Essa penumbra é ela mesma instrumento de sedução e fonte de equívoco.


A Chave do Universo: Da Oscilação entre Opostos ao Equilíbrio Paradoxal

O segredo do universo não é tanto uma oscilação entre opostos mas o equilíbrio paradoxal. Muitas vezes existe uma terceira via que ela sim é antagónica com as duas apresentadas, ex: capitalismo e socialismo versus doutrina social da Igreja ou distributismo. A dialética hegeliana não é tanto uma dialética mas mais uma interacção. Mas nem sempre uma síntese é possível e outras vezes mais do que uma síntese diferente é obtida; por exemplo, os filhos e as respectivas diferenças. O contrário de nada não é apenas tudo; alguma coisa também é contrário de nada.

Os bonitos por vezes são feios e os feios bonitos. Pôncio Pilatos deveria estar mais belo do que Jesus Cristo no tribunal romano. Os jovens revolucionários que queriam demolir a Notre Dame mais bonitos do que o Corcunda, cuja história serviu para a salvar. Este paradoxo do belo e do feio, do bom e do mau, encontra-se na literatura na descrição do grotesco, como variabilidade natural, em oposição à perversidade, a deformação. O ditado português afirma: “Quem feio ama bonito lhe parece.” Chesterton dizia: “A menos que amemos o feio em toda a sua fealdade, nunca o transformaremos em bonito.”






António Campos


Notas:


(Nota 3 de Olavo de Carvalho).


1 A pergunta certa seria onde ou qual a origem da verdade. A verdade é a realidade sobre qualquer coisa. A realidade das coisas remete à origem última da realidade. Essa origem última da realidade não é o universo, nem um local. A origem última da realidade é um intelecto, uma pessoa que lhe deu origem. Desse modo a natureza da realidade expressa de algum modo a natureza dessa pessoa: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Ao desancorarmos da realidade última ou original, desancoramos da realidade próxima ou concreta, o objecto do conhecimento, e da sua expressão clara, na arte e na linguagem. Chesterton expressou bem esta ideia: “Sabíamos que ao colocar a fé em questão acabaríamos por deitar a razão abaixo do seu trono. Ambas são processos demonstrativos que não podem ser demonstrados.”
2 Na Cruz Azul diz Flambeau: Estes infiéis modernos apelam à razão, mas quem pode olhar para essa miríade de mundos e não imaginar que podem existir universos maravilhosos acima de nós onde a razão seja completamente irracional?”
Após a sua captura, o Padre Brown explica: “ Ele atacou a razão…E isso é má teologia.”


3 A origem do cosmos e a da realidade são completamente diferentes. Antes da construção do cosmos a realidade já estava determinada racionalmente, a lógico-matemática, independe do tempo e é eterna – é a estrutura da eternidade. Antes do início do universo já 2+2=4. O universo físico não é a origem das coisas. Nada existe no cosmos que não esteja incluído na estrutura da possibilidade que é organizada internamente pela lógica-matemática; não aleatória mas racionalmente – o universo é uma realização racional, compreensível e dedutível. A ciência é uma mera perseguição ao que já foi realizado – a ciência segue as pegadas de um universo que já está todo lá. Existe uma estrutura racional que contém todas as possibilidades que se manifestaram no tempo e não é determinada por elas – tudo está contido na estrutura da possibilidade. O desenvolvimento estocástico é absurdo. A razão pré-existe à realidade física, o logos pré-existe ao universo, no princípio era o verbo.
Qual a origem da estrutura da realidade? Não da realidade manifesta que depende da anterior, mas da realidade, porque a lógica matemática precede a realidade física. A razão precede o universo. A sucessão temporal não possui a inexorabilidade da lógica matemática. A natureza física está dentro da lógica matemática mas não a reproduz inteiramente. As discussões sobre a origem do cosmos actuais nunca levam em conta o facto de que a ordem lógica matemática precede a origem física. O cepticismo actual é um materialismo pueril.