domingo, 23 de dezembro de 2012

Bilhete de Natal para G.K. Chesterton

Ghirlandaio, Presépio com mar     

              


                   Meu Caro Gilberto K. Chesterton,

 

     Não sei se chegaram aí os ecos da polémica – que, no fundo, foi mais um ataque de um bando de ignorantes e de presunçosos atrevidos, do que uma verdadeira polémica – sobre a existência ou não do burro e da vaca no presépio, a propósito – melhor seria também dizer, a despropósito -, do último e extraordinário livro de S. S. o Papa Bento XVI, Jesus de Nazaré. A Infância de Jesus. Sei que o meu amigo Gilberto K. Chesterton, se cá estivesse, teria zurzido a bom zurzir os “sábios” jornalistas que, acintosamente, confundiram os textos dos evangelistas S. Mateus e S. Lucas, sobre a infância de Jesus, ou seja, obras de carácter histórico, com uma criação poética franciscana, o presépio, que nasceu em 1223, em Greccio, fruto da imaginação e do profundo amor de S. Francisco de Assis. Os Evangelhos, como qualquer pessoa de mediana cultura religiosa sabe, são parcos em referências laterais e não falam, por isso, no burro, na vaca ou na quantidade de ovelhas presentes e, mais ainda – o que é altamente lamentável -, não citam sequer o nome de cada um dos pastores - com a filiação, morada e número do respectivo telemóvel – , que prestes acorreram a adorar o Deus Menino. Jesus nasceu num estábulo, como nos diz S. Lucas (2,7) e não é crível, já nesses tempos remotos, que aí encontrassem a Orquestra Filarmónica de Cebolais de Cima, mas, sem puxarmos muito pela imaginação, talvez um burro e uma vaca. Ora, alguns jornalistas de letras gordas e de fraca cultura, abespinharam-se muito por o Papa Bento XVI não falar neste livro no burro do presépio, quando explicava os Evangelhos. Não parece grave não falar do burro do presépio, quando não vinha a propósito. Grave, e muito, é não referirmos hoje o excesso dos mesmos fora dele.

     O presépio, essa admirável criação de S. Francisco, de quem o meu amigo Gilberto K. Chesterton escreveu uma excelente biografia – ainda não editada entre nós -, deu origem a uma curiosa discussão, sobretudo entre os autores de presépios italianos. Diziam eles - e com razão – que no presépio, nascido no interior da Itália, devia haver também o mar. E isto porquê? Porque o presépio é universal, como, de facto, lhes deram razão os franciscanos nesse tempo, dizendo que nele cabe il mundo nel suo ordine intero, todo o mundo por inteiro. E foi por isso também que o poeta galego Álvaro Cunqueiro escreveu um poema para ser cantado na noite de Natal, que rezava assim:

     São José tinha medo

     Que o Menino fosse marinheiro

     E saísse um dia p’lo mar fora

     Embarcado num veleiro.

     Não foi o Menino Jesus, mas fomos nós, embarcados em caravelas e naus pelos mares fora, levando sempre, no nosso coração de marinheiro português, um presépio que espalhámos por todo o mundo e todo o mundo acolheu. O presépio tornou-se, assim, verdadeiramente universal. O pintor Grão Vasco fez de um Rei Mago um índio do Brasil e um dos presépios que para mim tem mais luz é o meu presépio todo negro que me lembra o meu Natal na Guiné.

     Por tudo isto, o meu presépio tem este ano três mandarins chineses, em louça de Cantão. Comprei-os nesta cidade e trouxe-os para Macau, cidade que foi e é do Santo Nome de Deus. E antes de viajarem comigo para Portugal, levei-os à Igreja de S. Domingos a rezar a Nossa Senhora do Ar. O meu presépio tem três mandarins chineses. Vejo-os a andar apressados, no seu passo miudinho, em direcção à gruta do Deus Menino. Querem chegar antes de 6 de Janeiro. Querem chegar primeiro que os Reis Magos.

     Vamos nós também com eles a Belém. Vamos nós, mais uma vez, com o coração de marinheiro português, adorar o Deus Menino ao presépio que Deus fez.

                                                             Um Santo Natal

 Natal Medieval - Revista As Cruzadas            
 
                                                        António Leite da Costa

2 comentários:

  1. Amigo Leite da Costa, posso dizer que acabei de receber uma verdadeira prenda de Natal. Estes seus textos são isso mesmo - uma prenda - e são, também, uma pequena luz, pequena luz, é certo, mas cintilante, neste firmamento de escuridão que nos vem submergindo há demasiado tempo.
    Também eu tive um presépio na minha infância, no Libolo angolano distante: era um pequeno presépio em que o menino era negro da cor da madeira em que foi ingenuamente esculpido pelo Kangueta, negro era o José, negros eram igualmente um boi bravo, uma «pacaça», algmas «seixas». Só negra não era a «senhora» a quem por especial respeito não se lhe colocou o «engobe». Perdeu-se este pequeno presépio pelos caminhos do tempo, pelos enredos dos homens, pela dor das guerras. Dele só mantenho comigo, estragado pelos anos mas cada vez mais sorridente e confiável o menino Jesus negro da minha infância angolana.
    Um abraço de um Natal em paz do César

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  2. Acabei de ler o referido livro do Papa Bento XVI.

    Não é verdade que o Papa não faz referência "à vaca e ao burro" do presépio. De facto, as notícias que citavam o terceiro livro da trilogia "Jesus de Nazaré" não só mostram a "ignorância" (?) dos seus autores sobre os Evangelhos como deturpam o que o Papa diz na pág. 61 e 62. Escreve assim o Papa (p. 62): "...a manjedoura faz pensar nos animais que encontram nela o seu alimento. Aqui, no Evangelho, não se fala de animais; mas a meditação guiada pela fé, lendo o Antigo e o Novo Testamentos correlacionados, não tardou a preencher esta lacuna, reportando-se a Isaías 1,3: 'O boi conhece o seu dono, e o jumento o estábulo do seu senhor; mas Israel, meu povo, nada entende'."

    O Papa continua a explicação na pág. 62, terminando com o seguinte parágrafo:
    "Portanto, na singular conexão entre Isaías 1,3; Habacuc 3,2; Êxodo 25, 18-20 e a manjedoura, aparecem os dois animais como representação da humanidade, por si mesma desprovida de compreensão, que, diante do Menino, diante da aparição humilde de Deus no estábulo, chega ao conhecimento e, na pobreza de tal nascimento, recebe a epifania que agora a todos ensina a ver. Bem depressa a iconografia cristã individuou este motivo. Nenhuma representação do presépio prescindirá do boi e do jumento."

    Boas Festas!
    Jorge Marques

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