Ghirlandaio, Presépio com mar |
Meu Caro Gilberto K. Chesterton,
Não sei se
chegaram aí os ecos da polémica – que, no fundo, foi mais um ataque de um bando
de ignorantes e de presunçosos atrevidos, do que uma verdadeira polémica –
sobre a existência ou não do burro e da vaca no presépio, a propósito – melhor
seria também dizer, a despropósito -, do último e extraordinário livro de S. S.
o Papa Bento XVI, Jesus de Nazaré. A
Infância de Jesus. Sei que o meu amigo Gilberto K. Chesterton, se cá
estivesse, teria zurzido a bom zurzir os “sábios” jornalistas que, acintosamente,
confundiram os textos dos evangelistas S. Mateus e S. Lucas, sobre a infância
de Jesus, ou seja, obras de carácter histórico, com uma criação poética
franciscana, o presépio, que nasceu em 1223, em Greccio, fruto da imaginação e
do profundo amor de S. Francisco de Assis. Os Evangelhos, como qualquer pessoa
de mediana cultura religiosa sabe, são parcos em referências laterais e não
falam, por isso, no burro, na vaca ou na quantidade de ovelhas presentes e,
mais ainda – o que é altamente lamentável -, não citam sequer o nome de cada um
dos pastores - com a filiação, morada e número do respectivo telemóvel – , que
prestes acorreram a adorar o Deus Menino. Jesus nasceu num estábulo, como nos
diz S. Lucas (2,7) e não é crível, já nesses tempos remotos, que aí
encontrassem a Orquestra Filarmónica de Cebolais de Cima, mas, sem puxarmos
muito pela imaginação, talvez um burro e uma vaca. Ora, alguns jornalistas de
letras gordas e de fraca cultura, abespinharam-se muito por o Papa Bento XVI não
falar neste livro no burro do presépio, quando explicava os Evangelhos. Não
parece grave não falar do burro do presépio, quando não vinha a propósito.
Grave, e muito, é não referirmos hoje o excesso dos mesmos fora dele.
O presépio, essa
admirável criação de S. Francisco, de quem o meu amigo Gilberto K. Chesterton
escreveu uma excelente biografia – ainda não editada entre nós -, deu origem a
uma curiosa discussão, sobretudo entre os autores de presépios italianos.
Diziam eles - e com razão – que no presépio, nascido no interior da Itália,
devia haver também o mar. E isto porquê? Porque o presépio é universal, como,
de facto, lhes deram razão os franciscanos nesse tempo, dizendo que nele cabe il mundo nel suo ordine intero, todo o
mundo por inteiro. E foi por isso também que o poeta galego Álvaro Cunqueiro escreveu
um poema para ser cantado na noite de Natal, que rezava assim:
São José tinha
medo
Que o Menino fosse
marinheiro
E saísse um dia p’lo
mar fora
Embarcado num
veleiro.
Não foi o Menino
Jesus, mas fomos nós, embarcados em caravelas e naus pelos mares fora, levando
sempre, no nosso coração de marinheiro português, um presépio que espalhámos
por todo o mundo e todo o mundo acolheu. O presépio tornou-se, assim,
verdadeiramente universal. O pintor Grão Vasco fez de um Rei Mago um índio do
Brasil e um dos presépios que para mim tem mais luz é o meu presépio todo negro
que me lembra o meu Natal na Guiné.
Por tudo isto, o
meu presépio tem este ano três mandarins chineses, em louça de Cantão. Comprei-os
nesta cidade e trouxe-os para Macau, cidade que foi e é do Santo Nome de Deus.
E antes de viajarem comigo para Portugal, levei-os à Igreja de S. Domingos a
rezar a Nossa Senhora do Ar. O meu presépio tem três mandarins chineses.
Vejo-os a andar apressados, no seu passo miudinho, em direcção à gruta do Deus
Menino. Querem chegar antes de 6 de Janeiro. Querem chegar primeiro que os Reis
Magos.
Vamos nós também
com eles a Belém. Vamos nós, mais uma vez, com o coração de marinheiro
português, adorar o Deus Menino ao presépio que Deus fez.
Um Santo Natal
António Leite da Costa
Amigo Leite da Costa, posso dizer que acabei de receber uma verdadeira prenda de Natal. Estes seus textos são isso mesmo - uma prenda - e são, também, uma pequena luz, pequena luz, é certo, mas cintilante, neste firmamento de escuridão que nos vem submergindo há demasiado tempo.
ResponderEliminarTambém eu tive um presépio na minha infância, no Libolo angolano distante: era um pequeno presépio em que o menino era negro da cor da madeira em que foi ingenuamente esculpido pelo Kangueta, negro era o José, negros eram igualmente um boi bravo, uma «pacaça», algmas «seixas». Só negra não era a «senhora» a quem por especial respeito não se lhe colocou o «engobe». Perdeu-se este pequeno presépio pelos caminhos do tempo, pelos enredos dos homens, pela dor das guerras. Dele só mantenho comigo, estragado pelos anos mas cada vez mais sorridente e confiável o menino Jesus negro da minha infância angolana.
Um abraço de um Natal em paz do César
Acabei de ler o referido livro do Papa Bento XVI.
ResponderEliminarNão é verdade que o Papa não faz referência "à vaca e ao burro" do presépio. De facto, as notícias que citavam o terceiro livro da trilogia "Jesus de Nazaré" não só mostram a "ignorância" (?) dos seus autores sobre os Evangelhos como deturpam o que o Papa diz na pág. 61 e 62. Escreve assim o Papa (p. 62): "...a manjedoura faz pensar nos animais que encontram nela o seu alimento. Aqui, no Evangelho, não se fala de animais; mas a meditação guiada pela fé, lendo o Antigo e o Novo Testamentos correlacionados, não tardou a preencher esta lacuna, reportando-se a Isaías 1,3: 'O boi conhece o seu dono, e o jumento o estábulo do seu senhor; mas Israel, meu povo, nada entende'."
O Papa continua a explicação na pág. 62, terminando com o seguinte parágrafo:
"Portanto, na singular conexão entre Isaías 1,3; Habacuc 3,2; Êxodo 25, 18-20 e a manjedoura, aparecem os dois animais como representação da humanidade, por si mesma desprovida de compreensão, que, diante do Menino, diante da aparição humilde de Deus no estábulo, chega ao conhecimento e, na pobreza de tal nascimento, recebe a epifania que agora a todos ensina a ver. Bem depressa a iconografia cristã individuou este motivo. Nenhuma representação do presépio prescindirá do boi e do jumento."
Boas Festas!
Jorge Marques