domingo, 17 de abril de 2016

A Gestalt, Um Todo Significante



Chesterton concebe a realidade como uma Gestalt. Convém esclarecer que esta gestalt
não é exactamente equivalente à teoria da percepção que é oposta ao associativismo, empirismo ou behaviorismo. Muito menos à chamada gestaltherapie. Na época de Chesterton, nomeadamente através de G. B. Shaw em Pigmalion/My Fair Lady, o behaviorismo e o empirismo imperavam – Higgins aposta fazer de Eliza Doolittle, a vendedora de flores, uma senhora da alta sociedade. É verdade que a gestalt surgiu como resposta ao empirismo a partir de 1913, enquanto que a gestalt de Chesterton estava completa em 1905-1908. 

Esta gestalt é entendida como a percepção da filosofia, da ciência e da teologia como um todo significante. Afirmações de Hereges (1905) de que uma corrente não vale mais do que o seu elo mais fraco ou toda a viagem de Ortodoxia sobre o equilíbrio de virtudes contrárias ou de como uma heresia é precisamente uma única virtude deixada à solta sem uma contraposição que a equilibre, demonstram como Chesterton concebe a realidade como um todo significante e não como uma mera adição das suas partes constitutivas.






Chesterton ao afirmar que “a religião é como o talento intelectual, porque vê a consistência nas coisas”, aponta para o equilíbrio, a unidade na diversidade, um todo sempre implícito nas partes, a reconciliação de contrários, uma dialética positiva onde as partes não se dissolvem. Ao apelar ao valor da tradição, mas ao recusar os idealismos liberais ou socialistas, ele salienta o valor das raízes culturais e nacionais – o radicalismo; com a recusa de soluções iluministas ou totalitárias, messiânicas – o extremismo. Ele é pois, um radical intrinsecamente democrata, não seduzido pelo capitalismo ou socialismo, aberto a um progresso ao serviço do homem, um progresso ao serviço de uma moral universal transcendente, que a todos inclua.


Ao dizer que “as pessoas quando deixam de acreditar em Deus, não significa que não acreditem em nada mas que acreditam em qualquer coisa”, ele aponta precisamente o perigo de perder a visão do todo quando se está perante uma das partes.





Émile Cammaerts no seu livro The Laughing Prophet : The Seven Virtues and G. K. Chesterton (1937) afirmou: “A primeira consequência de não acreditar em Deus é acreditar em toda e qualquer coisa.” Ele resumia um extracto mais longo de Chesterton em Father Brown, The Oracle of the Dog (1923), a propósito de uma afirmação relativa à possibilidade de que um cão, por um instinto obscuro, ladre a um criminoso, intuindo que este seja um criminoso:


“Este é um estado que cada vez mais constato no mundo moderno…algo arbitrário sem fundamento factual. As pessoas encontram-se completamente receptivas a aceitar qualquer tipo de argumento sem fundamento objectivo. É um desrespeito a todo o nosso velho racionalismo e cepticismo. Vem como uma maré e o seu nome é superstição. Apareceu de repente com cara solene ou uma espécie de careta e fala continuamente como se estivesse só. O primeiro efeito de não acreditar em Deus é que se perde todo o bom senso, e se deixa de avaliar as coisas como elas são. Qualquer assunto de que alguém fale, e defenda a sua consistência, propaga-se como um panorama de um pesadelo. Um cão torna-se um presságio, o gato um mistério, um porco uma mascote, um besouro um escaravelho, evocando toda a parafernália do politeísmo, desde o Egipto antigo até à Índia; o cão Anubis, o grande Pasht de olhos verdes reptilianos e os touros sagrados de Basan; fazendo-nos regressar aos deuses bestiais dos primórdios, entregando-nos a elefantes, serpentes e crocodilos; e tudo por se querer a todo o custo evitar quatro palavras: «Ele se fez homem».”






Para Eric Cammaerts, Chesterton era uma espécie de coração de leão:


“Ele era maravilhoso, no sentido em que fez as virtudes cristãs brilharem com a centelha da sua inteligência subtil, e cobriu os seus vícios de insultos. (…) O seu amor à fé é uma apreciação lúcida de algo variegado. O seu compromisso é forte e profundo. A sua apreciação da fé é tida como «liberal» enquanto que o seu compromisso com ela é tido como «conservador».”

Para Chesterton apreciação e compromisso dançam juntos. A fé é multifacetada, ter fé é o oposto de ser um catavento, amorfo, esquivo, inconstante.


“A fé aparece de todos os modos possíveis, no que respeita ao modo e à atitude perante a vida, e não existe estilo artístico que não possa usar. A jóia tem uma centena de faces, e reflecte cada cor e esquina do céu; mas isso não significa que ela vacile ou cambaleie; e aqueles que a tentam partir descobrem que se trata da pedra mais dura do mundo.”


E quanto mais próximo da ortodoxia mais inspirador é o seu poder:

“Tantas vezes antes deste tempo os homens encheram o seu copo com uma doutrina ténue. E tantas outras vezes se sucedeu a essa diluição, vindo do escuro como uma catarata carmesim, a força do vinho tinto original.”


A religião católica dá alegria:

“O homem pode ser definido como um animal que constrói dogmas. À medida que ele empilha doutrina sobre doutrina e conclusão sobre conclusão na formação de um sistema tremendo de filosofia ou de religião, ele torna-se, no único sentido possível da expressão, mais e mais humano. Quando ele destrói doutrina após doutrina num elaborado cepticismo, quando ele se nega a aderir a um sistema, quando ele diz que tem definições incomparáveis, quando, na sua própria imaginação, se senta como Deus, não partilhando nenhuma forma de credo mas contemplando-os a todos, então por esse processo ele afunda-se lentamente decaindo para a indefinição dos animais vagabundos e para a inconsciência da relva. As árvores não têm dogmas. Os nabos são realmente tolerantes.”


Qualquer civilização possui uma estrutura moral que se reflecte nos seus cidadãos. É a ideia de Dawson, cada cultura nasce do respectivo culto. Parte da crise civilizacional deriva da nossa incapacidade de aceitar o carácter definitivo da espécie humana entre todas as outras espécies:

“Iniciando-se com uma concepção falsa da natureza do homem, a mente continua a avaliar tudo a uma falsa luz. O seu objectivo é tornar-se algo que não é e que nunca pode ser…sem a natureza humana definida, nada mais se pode definir.”





Não basta sermos meros humanistas:

“A marca da insanidade é o uso da razão sem qualquer raiz, a razão no vazio. O homem que começa a pensar sem levar em conta os primeiros princípios enlouquece, o homem começa a pensar pela ponta errada.
Para os católicos é um dogma fundamental da fé que todos os seres humanos, sem excepção, foram especialmente feitos, especialmente moldados e afiados como setas brilhantes, com a finalidade de serem portadores da marca da beatitude.”


A renovação e a reforma são meios de limpar o sujo da bela imagem que já nos foi dada pela Revelação. É a revolução eterna de Chesterton.


“Precisamos de um conjunto de coisas realmente humanas. A vontade que é a moral, a memória que é a tradição, a cultura que é a economia mental dos nossos pais. Aqui o humanismo não pode substituir o super-humanismo. O mundo moderno, que é um movimento, vive do capital católico. Continua a retirar as verdades do tesouro da cristandade, incluindo aquelas verdades pagãs solidificadas na cristandade.”


A espiritualidade não se basta com uma ou outra virtude mas com todo o espectro de virtudes num todo harmónico. O conjunto das virtudes não é um catálogo mas um todo harmónico, vivente e interactivo, uma gestalt, uma forma significante, como afirma Hans Urs von Balthasar.1







“O humanismo pode pegar nas virtudes individualmente, mas pode juntar as peças? Onde está o cimento que fez da religião uma comunidade  popular, que impede que as peças se despedacem num lixo de tarefas individualistas e de graus? O que impede um humanista de ter uma castidade sem humildade e outro, humildade sem castidade e outro, verdade e beleza separadas? O problema de uma ética e cultura sólidas consiste no arranjo das peças de forma a que se interrelacionem, como as pedras que compõem um arco. E eu só conheço um esquema que tenha provado a sua solidez, que tenha transposto terras e épocas com os seus arcos gigantes levando a todo o lado o rio elevado do baptismo acima dos aquedutos de Roma.”


É a comunidade poliédrica, nas palavras do Papa, em oposição ao círculo/esfera da globalização capitalista, onde tudo tende para a uniformidade do hamburger e da coca-cola. Esta comunidade poliédrica é uma casa, onde cada nação é uma janela. Cada nação tem o seu alter ego, o seu anjo, na presença de Deus.


E a modernidade, baseada no protesto, na heresia, vive da herança católica:

“O mundo moderno não é mau; de certo modo até é bom demais. Encontra-se cheio de virtudes selvagens e desperdiçadas. Quando um sistema religioso é estilhaçado, como a cristandade foi estilhaçada pela Reforma, não são apenas os vícios que ficam à solta. Os vícios certamente andam à solta, vagueiam e fazem dano. Mas as virtudes também ficam à solta: e as virtudes ainda causam mais dano. O mundo moderno encontra-se cheio daquelas antigas virtudes cristãs que enlouqueceram. E elas enlouqueceram porque se separaram umas das outras e vagueiam à solta. Então alguns cientistas lutam pela verdade, mas a sua verdade não aceita a misericórdia. Alguns humanistas querem a misericórdia, mas a sua misericórdia, lamento dizê-lo, não é verdadeira. (…) Nenhuma virtude pode engolir a outra, o amor, o orgulho, a paz, a aventura. Tem que ser uma pintura completa composta destes elementos na sua devida proporção e melhor relação.”


Este sistema católico complexo é auto-crítico, onde umas virtudes equilibram as outras: a omnipotência de Deus com o livre-arbítrio humano, o direito da mulher em lutar pela sua dignidade, mas mantendo a sua feminidade e maternidade.


Em Chaucer, Chesterton fala do bem humano como um todo estruturado, um equilíbrio harmonioso que se compara a uma dança de virtudes, que tem como centro a revelação única do verdadeiro bem humano, Jesus Cristo. Ele é a corrente que escolheu o elo mais fraco, Pedro, e por ele responde.





“A moralidade medieval encontrava-se impregnada dessa ideia de que uma coisa equilibra a outra, de que cada uma ficava de um ou do outro lado de algo que se situava no meio, e algo efectivamente se situava a meio.

Havia movimento decerto, mas era movimento à volta desta coisa central; alterando atitudes mas preservando o equilíbrio. As virtudes eram como crianças a dançar à volta do Mulberry Bush,2 só que o Mulberry Bush era aquela sarça ardente que era um símbolo da encarnação, esse arbusto extravagante no qual a Virgem e o menino aparecem num quadro com René de Provence e a sua amada esposa ajoelhando de cada lado. Desde a mudança na História, pensemos ou chamemos-lhe o que quisermos, a dança transformou-se numa corrida. Os dançarinos perderam o equilíbrio e só o recuperam correndo atrás de um qualquer objecto, ou alegado objecto. Não é um objecto que possuam ou que esteja no seu círculo, mas um objecto que não possuem. É um objecto voador, um objectivo que desaparece.

Um é um movimento harmonioso e concêntrico, o outro é desordenado, porque carece de objectivo. Pelos parâmetros modernos, os peregrinos de Canterbury não parecem ter grande pressa de chegar a Canterbury.”





O tríptico Sarça Ardente está na catedral de St Sauveur, Aix-en-Provence. Deus como objectivo da natureza humana e da virtude. Uma demonstração cabal da inteligibilidade do Criador à mente humana. O bem não pode ser uma “força impessoal”, mas sim um Deus pessoal que prepara “uma cidade com ruas e proporções justas.”


As virtudes dançam como os arcos das catedrais góticas. A modéstia (simplicidade, inocência, humildade) deve situar-se no órgão da ambição e a vaidade no órgão da convicção. A alegria é constitutiva: “nós precisamos de ver um mundo que combine a ideia de maravilha com a ideia de boas-vindas.”


A virtude da caridade é a que agrega todas as virtudes:

“Chaucer tinha uma coisa indispensável, ele tinha um quadro mental que resultava da correcta razão com uma filosofia universal; o temperamento que é a flor e o fruto de todo o cultivo e o trabalho de todos os moralistas e teólogos. Ele tinha a caridade – este é o coração e não a mera mente da nossa antiga cristandade.”


A caridade faz com os dons de Deus não sejam dados apenas aos seus santos, mas a todos os homens. É o sol que se levanta sobre bons e maus, nas palavras de Cristo; é a chuva que também cai no deserto, como no Livro de Job; são os que se salvam sem nunca terem feito as coisas em nome de Cristo, como no Sermão da Montanha (Mt 5, 1-10), em Mt 11, 19-20 e no Juízo Final (Mt 25, 31-41).3


“Esse grito foi o grito da normalidade. Uma grande voz foi dada por Deus, um grande volume de canções, não para os seus santos que mais as mereciam…mas subitamente, numa estação, ao mais humano de todos os seres humanos.”4


É por essa mudança de paradigma sobre a questão do “povo escolhido”, da virtude, da vontade de Deus e da salvação, que muitos cristãos na actualidade correm o risco da heresia:

“Os ateus…querem definição e não aceitação. A “igreja” moderna é como um médico acolhedor que diz: diz-nos em que queres acreditar e nós tratamos disso.”









António Campos




2 https://catholickungfu.wordpress.com/2010/08/24/hans-urs-von-balthasar-and-form-a-fascinating-dilemma/

3 Here We Go Around The Mulberry Bush (amoreira) é uma canção infantil inglesa que descreve as tarefas diárias.

4 George Bernard Shaw descreveu o Sermão da Montanha com o "uma explosão impraticável de anarquismo e de sentimentalismo". O filósofo alemão Friedrich Nietzsche tratou-o ainda menos benignamente, quando escreveu que "a moralidade cristã é a mais maligna form a de toda a falsidade" (Ecce Homo). John Herman Randall estava disposto a reconhecer que Jesus era "verdadeiramente um grande génio moral" mas ao mesmo tempo estranhava com o um carpinteiro galileu pudesse ter enunciado a última palavra em ética humana (A Religião no Mundo Moderno).


5 http://www.estudosdabiblia.net/som.pdf

sábado, 2 de abril de 2016

A Fé sem Esperança




Um dos sinais mais claros do que não é a caridade é a valorização curricular atribuída a
acções humanitárias. Hoje fazer uma ação humanitária beneficia o seu executor relativamente aos seus colegas. Este tipo especial de caridade pública é a filantropia e o seu agente é o principal beneficiado de um investimento com retorno garantido. É uma falsa caridade. O seu objectivo é a excelência, i.e., a promoção profissional e um alto salário. É a marca do nosso tempo, a época de Mercúrio (negócios e dinheiro), de Saturno (carreira) e de Júpiter (poder e visibilidade). Esta ideia da antiguidade, ressurgida com o calvinismo e agora globalizada nas instituições de ensino, é repugnante. É a “aparência de caridade” de que fala São Paulo. É a esperança neste mundo.


As portas do céu não têm ferrolhos,
Nós não guardamos ouro
Os homens podem desenraizar-se da origem de tudo
Ou dar nome a um pecado sem nome;
Mas quer falhe quer ganhe
Um homem bom é difícil de encontrar


Perdido o sol, como regressaremos a casa? Morto Deus, como remir o homem? Se Deus não existe, não é possível a existência da verdade nem de ética – morto Deus tudo é possível, como dizia Dostoiévski. Uma ética antropocêntrica nunca poderá ignorar o seu ponto de partida: um ser que possui em si a raiz do mal. Como dizia Chesterton, se existe um ponto defendido pela Igreja difícil de refutar, é o da doutrina do pecado original. Exista Deus ou não, é inegável que o mal caminha com o homem. A guerra, o sofrimento, a fome, a doença, a inveja, a depressão, a morte, todos acompanham a existência humana. O progresso tecnológico, a melhoria das condições de vida e o bem-estar material, não subtraíram o homem do seu misto de grandeza e miséria. Nenhum conhecimento ou filosofia resolveram o problema da necessidade de consolação. O actor Liam Neeson dizia há pouco tempo, a propósito da morte de sua mulher, que todo o ser humano precisa de ser abraçado com amor e de uma voz meiga: “Não te preocupes, está tudo bem, tudo se há-de resolver.” É aquele “Eu estou aqui” que a Mãe de um Cristo caído por terra a caminho do Calvário lhe dirige no filme de Mel Gibson. É aquela voz que nos diz: “Eu não te deixo só.” É o “You will never walk alone.” Scruton é o filósofo certo, a quem esta necessidade humana de consolação não escapou.



Os homens do oriente podem nomear as estrelas
Marcar os tempos e as vitórias
Mas os homens assinalados com a cruz de Cristo
Circulam alegres na escuridão…





Este argumento ontológico, argumentum e gaudio, a necessidade da alegria e do sentido de humor para a saúde humana é uma real contribuição de G. K. Chesterton para a filosofia moderna. O homem ri-se de si e da sua circunstância, superando ambos e projectando-se além deles.



Os sábios sabem que coisas pérfidas
Se encontram escritas nas estrelas
Eles acendem lâmpadas tristes, tocam cordas melancólicas,
Ouvindo as grandes asas púrpura,
Onde os antigos Serafins
Ainda planeiam a morte de Deus…



Mas, se Deus morreu, Deus teve que estar vivo e um Deus vivo nunca morre. Para os clássicos, como Parménides ou Zenão, nenhuma das aflições do homem tocavam Deus, que era em si mesmo eterno, imutável e indiferente, sem deficiência nem contingência. As orações pagãs eram meras súplicas sem retorno. O Deus cristão, escândalo para judeus e pagãos, é um Deus sofredor, coberto de miséria e fealdade, coberto dos erros de outros. Irreconhecível como Deus, percorre todo o vale da abominação humana: “estive no cárcere”; é uma quase blasfémia da ideia de Deus. Este Deus sofredor (e criminoso por interposta pessoa), que acompanha toda a alma incerta e que sofre, é uma fonte de consolação. Ele é igualmente mais Ele próprio porque desvinculado de toda a mitologia, de toda e qualquer ideia humana de Deus. Ele não surge no meio do cristianismo, como um desenvolvimento ocidental; ele surge no meio do judaísmo, como uma blasfémia oriental.


Este Deus abandonado por Deus, por amor dos homens, aparece abandonado pelos homens pela alienação de Deus. O homem moderno, homem-máquina, integrado na civilização tecnológica e no conforto, vendeu a sua individualidade à igualdade. É o “último homem” de Nietzsche. Para Nietzsche, só o “super-homem”, livre do medo e da moralidade cristã, poderia resgatar a humanidade de tal marasmo e decadência, resultante da auto-alienação do homem.


O homem-máquina desistiu de ser homem e identifica-se pelos parâmetros da máquina que fabrica: a economia é a sua fé, o progresso a sua esperança, o futebol a sua consolação. Vive nas redes sociais e nos media, na sociedade pelos bens que ostenta; tornou-se uma coisa. Ritualizado pelo fim de semana e pelas férias, desiste do valor de cada dia e é facilmente submerso pela “nova onda” que submerge os padrões do direito natural, da inviolabilidade da vida humana e da individualidade e privacidade de cada criatura humana. O ocaso de Deus acompanha-se do desaparecimento do homem.
Como sempre na história da Igreja, a morte é uma ressurreição. Para os cristãos, um aproximar da verdadeira fé. Menos numerosos na Europa, fora dos centros do poder, mas mais cientes do caminho do que antes, porque menos mundanos. São o sal da Terra.






Mas tu e todos os de Cristo
São ignorantes e bravos,
Combatem guerras difíceis de vencer
E almas difíceis de salvar.



Keith Lemna lembrava num artigo de 25 de Janeiro de 2016, na Distributist Review que a obra do teólogo, filósofo e sociólogo alemão Romano Guardini (1885-1968), foram relembrados pelo papado de Francisco, um seu admirador. A encíclica Laudato Si’ estimulou a releitura de The End of the Modern World (1950) ao tomá-lo como ponto de referência. Tal como Guardini, Francisco atribui a um monolítico e global “paradigma tecnocrático”, a crise antropológica e cosmológica da modernidade, da qual resulta uma atitude racionalista e utilitarista da espécie humana perante os recursos naturais e a própria comunidade humana.



Eu não te digo para teu conforto,
Sim, não para te agradar,
Lembra-te que os céus ainda vão escurecer mais
E o mar transbordar.



Para o Papa, tal como para Guardini, só existe um meio de o homem se alienar desta alienação do homem-máquina: abdicar de um certo conforto no bem-estar material e na carreira, imitando Cristo, i.e., não vendendo a sua alma pela carreira, não abdicando da família pelo conforto ou pela notoriedade, partilhando com quem necessita de auxílio, sendo humilde, lutando por objectivos mas afastando-se do elogio. No fundo, ecoando Agostinho: “Prefiro os que me criticam porque me corrigem do que os que me elogiam, porque me corrompem.”


Os cristãos constatarão a necessidade de serem imago Dei, a face de Cristo, pelo exemplo da sua vida. Só esta alienação do materialismo resultará na liberdade do homem. O sacrifício e a humildade, uma vida sem cunhas, não são sinais de uma moralidade de escravos, como dizia Nietzsche, mas sim uma marca de liberdade. O “super-homem cristão” é diligente no presente, confiando-se à Divina Providência no futuro. Se não reconhecermos o nosso egoísmo e a alienação de Deus, nunca encontraremos solução para a perda de dignidade humana nem o valor ontológico da humildade e do amor.



A noite cairá sobre ti três vezes,
E o céu como se fora um elmo.
Consegues ser feliz sem motivo,
Sim, ter fé sem esperança?






O que é essa “fé sem esperança” e essa “felicidade sem motivo” que Chesterton coloca na boca da Mãe de Deus? A alegria de escolher o lado certo e a determinação de combater o bom combate, mesmo que a derrota pareça certa – a alegria da escolha certa e o abandono à divina Providência quanto ao resultado final do combate, é uma afirmação neste mundo da existência de uma outra vida – uma fé que aponta a esperança. Essa “fé sem esperança”, conceito desenvolvido por Chesterton em A Balada do Cavalo Branco, relaciona-se com o objectivo último da vida humana, que não é a excelência nem a felicidade. O objectivo do ser humano é a verdade. Nenhum ser humano é indiferente ao erro ou à incerteza. Então essa fé sem esperança é um argumento ontológico. O homem encontra a paz pela certeza de ter escolhido o lado certo. 

A vitória pode ser incerta ou improvável, mas o homem combate com o apoio da verdade e da justiça. Como sempre afirmou Chesterton, a vitória fácil é sempre repugnante. Há guerras que se ganham perdendo. Há guerras que se ganham quando se pensavam perdidas. Há guerras que não se ganham nos limites temporais estreitos da nossa vida. O homem reconhece o seu limitado horizonte temporal e a natureza da batalha que ultrapassa em muito o domínio desta realidade e deste mundo. É uma fé cuja esperança se projecta dentro e fora deste mundo como reflexo de uma realidade interpenetrada e complexa.


Uma vitória no campo moral nunca é definitiva, porque o mal recorre no coração humano e na sociedade. É precisamente quando se ganha, quando se tem glória, que mais se levanta a guarda ao mal e se abre a porta ao orgulho. É quanto mais nos julgamos maiores que corremos o risco de ser menores – é um paradoxo. É por isso que a oração é fundamental, o contacto da criatura com o Criador.



Eles voltarão, não com navios de guerra,
Não considerarão os nomes certos
Comerão apenas livros,
A tinta sujar-lhes-à as mãos…pelo terror e por contos cruéis
Maldições até aos ossos e sobre a família,
Por estranha e fraca vitória,
Amaldiçoados desde o início,
Pelo pormenor de pecar
E pela negação do pecado.





António Campos


(Dedico a análise a este extracto do poema de Chesterton, A Balada do Cavalo Branco, à professora Amélia Pais que teve a amabilidade de oferecer Os Lusíadas em Prosa aos meus filhos, facilitando deste modo a sua aproximação a esse expoente máximo da Língua Portuguesa que foi e é Luís Vaz de Camões. Para ela, após uma vida dedicada aos seus alunos e aos outros em geral, também eu peço a misericórdia de Deus).


Bibliografia:

G. K. Chesterton, A Balada do Cavalo Branco