sábado, 9 de março de 2013

Bento XVI e G. K. Chesterton


     Nem sempre os autores que bem conhecemos são aqueles que mais citamos. Por isso, não são abundantes as citações de Chesterton feitas pelo Papa Bento XVI. Mas é bem claro o conhecimento pleno da sua obra, transparecendo nos seus textos muitas vezes a cuidadosa leitura dos livros do escritor inglês. Mais interessante ainda, me parece, é a aproximação que se pode fazer do modo como se pôs ao serviço da verdade, servindo-a, tal como G. K. Chesterton, através da fé e da razão.
     De facto, se Chesterton ficou conhecido pelos vigorosos debates que, no seu tempo, teve com alguns intelectuais de nomeada, o Cardeal Ratzinger protagonizou também debates importantes com filósofos e teólogos contemporâneos, e cuja repercussão ainda hoje perdura. Lembremos, do primeiro, e a título meramente exemplificativo, os célebres Debates Blatchford em 1904, e os vários que teve com Bernard Shaw, entre eles o de 1923, na presença de Hilaire Belloc, mais tarde publicado com o sugestivo nome de “Estamos de acordo?”. Quanto ao segundo, são conhecidos os debates, no Centro Evangélico de Cultura de Roma, em 1993, com o professor valdense Paolo Ricca, da Faculdade de Teologia da Comunidade Valdense, minoria protestante italiana; com o director da revista  MicroMega, Paolo Flores d’Arcais, no Teatro Quirino de Roma, em 2000, perante cerca de 2000 pessoas e sob o tema “Existe Deus? Um confronto sobre verdade, fé e ateísmo”; o debate promovido pela Academia Católica da Baviera, com sede em Munique, com o filósofo alemão Jünger Habermas sobre os fundamentos morais do Estado; e, nesse mesmo ano, com o historiador italiano Ernesto Galli sobre “História, política e religião”.

     Merece uma referência à parte o diálogo estabelecido com o filósofo italiano Marcelo Pera, na altura presidente do Senado, e que teve origem numa lição que, em 2004, este professor italiano proferiu na Pontifícia Universidade Lateranense, e de uma conferência que o então Cardeal Ratzinger deu na Sala do Capítulo do Senado Italiano. Daqui resultou um livro, da autoria de ambos, com o título Sem raízes. Europa, Relativismo, Cristianismo, Islão. Parece, no entanto, haver uma continuidade entre os debates iniciados por G. K. Chesterton, no princípio do século vinte, e os que o Cardeal Ratzinger realizou no final do mesmo século e início do actual. Há, em todos eles, uma permanente ligação entre a fé e a razão, e um respeito natural pelo seu opositor intelectual que quase sempre, se não mesmo sempre, se transforma numa profunda amizade.

     É essa relação também entre a fé e a razão que está ainda subjacente à conhecida obra Hereges do escritor inglês, em que este, com a subtileza e o humor que lhe é particular, põe em causa as opiniões religiosas do seu tempo, que é também ainda o nosso, e abre novos caminhos para questões fundamentais do mundo contemporâneo. Tal como o Cardeal Ratzinger que, serenamente, critica os erros e desvios da cultura ocidental, em relação aos valores e princípios que estiveram na sua origem e criaram a sua identidade, e a vão agora, aos poucos, minando e destruindo. Foi, também ele, chamado o Papa do paradoxo pelo modo como, certeiro e de fino humor, escrevia e falava. Vem a propósito referir a definição correcta de paradoxo, tal como a deu Hilaire Belloc, aplicada a Chesterton, mas que é igualmente devida ao próprio Papa. O paradoxo, afirmou ele, não é qualquer tontice que se diz por meio de contradição, como por vezes julga o vulgo apressado e ignorante, mas, no seu significado original e culto, a iluminação de algo mediante uma justaposição inesperada.

     É ainda e sempre a estreita relação entre a fé e a razão, temperada com o sal da alegria cristã. Pois, como disse o Padre Brown ao desmascarar o ladrão que se tinha feito passar por um falso sacerdote: “ O senhor atacou a razão e isso é má teologia”. A teologia cristã, como o nome indica, embora muitos amiúde disso se esqueçam, tem Cristo como centro. Cristo que é fonte natural de alegria e, por isso, como disse o Cardeal Ratzinger numa homilia, nos leva a compreender a partir de então as palavras de Chesterton, “que os seres humanos, assinalados com a Cruz de Cristo, circulam alegres na escuridão”. E, noutro texto dos anos oitenta, acrescenta, numa linha claramente chestertoniana: A alegria profunda do coração é também o verdadeiro pressuposto do humor e, assim, o humor, sob determinado aspecto, é um índice, um barómetro da fé. Nos anos noventa, na primeira entrevista concedida a Peter Seewald, dirá: Considero muito importante, e diria que também é necessário para o meu ministério, que eu saiba ver também o aspecto divertido da vida e a sua dimensão alegre, e não levar tudo tão tragicamente. Um escritor – refere-se a G. K. Chesterton – disse que os anjos podem voar porque não se levam demasiado a sério. Talvez também nós pudéssemos voar um pouco mais, se não déssemos a nós próprios tanta importância.

     Isto, não obstante o pecado a que todos estamos sujeitos. Noutra homilia, em jeito de meditação dirigida aos sacerdotes, afirmou também o Cardeal Ratzinger: Sem conversão não nos aproximamos de Jesus nem do Evangelho. Há um paradoxo de Chesterton que exprime de maneira apropriada esta relação: conhece-se um santo pelo facto de ele se reconhecer pecador. O Papa do paradoxo, leitor de Chesterton, disse na última das famosas entrevistas ao jornalista alemão Peter Seewald, que a vida não se situa nas contradições mas nos paradoxos. O escritor inglês que, infelizmente, não pôde ler o Papa por que se adiantou a nascer, acrescentaria: “ o homem é muito mais confortado pelos paradoxos”.
      Há ainda, nesta breve ligação entre duas figuras cimeiras da cultura europeia do século vinte, um aspecto que merece ser salientado: a relação de ambos com a arte. A série de ilustrações sobre as estações da Via Sacra feita pelo pintor William Frank Brangwyn (1867-1956) serviu a Chesterton de ponto de partida para um conjunto de reflexões sobre o mesmo tema. O Cardeal Joseph Ratzinger antecedeu de cinco meditações sobre a Semana Santa o álbum que reunia as pinturas religiosas do pintor americano William Congdon (1912-1998), intitulado O sábado na história. Isto, sem falar, naturalmente, nos vários textos, quer de um, quer de outro, sobre arte e estética.
 
     Disse Chesterton: “A humildade acompanha todas as grandes alegrias da vida com a precisão de um relógio”. Bento XVI podia subscrever esta frase. Ele, que soube sempre aliar a simplicidade de quem muito sabe à humildade de quem muito reza. Ele, que incapaz de governar a barca de Pedro, porque alquebrado e doente, quis, ao recolher-se a um convento para orar por todos nós, a sós com Deus, continuar a ser o Servo dos servos de Deus, o Papa da humildade.
 
  
                                        António  Leite  da  Costa
 

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