Nem sempre os autores que bem conhecemos são aqueles que mais citamos.
Por isso, não são abundantes as citações de Chesterton feitas pelo Papa Bento
XVI. Mas é bem claro o conhecimento pleno da sua obra, transparecendo nos seus
textos muitas vezes a cuidadosa leitura dos livros do escritor inglês. Mais
interessante ainda, me parece, é a aproximação que se pode fazer do modo como
se pôs ao serviço da verdade, servindo-a, tal como G. K. Chesterton, através da
fé e da razão.
De facto, se Chesterton ficou conhecido pelos vigorosos debates que, no
seu tempo, teve com alguns intelectuais de nomeada, o Cardeal Ratzinger
protagonizou também debates importantes com filósofos e teólogos
contemporâneos, e cuja repercussão ainda hoje perdura. Lembremos, do primeiro, e
a título meramente exemplificativo, os célebres Debates Blatchford em 1904, e
os vários que teve com Bernard Shaw, entre eles o de 1923, na presença de
Hilaire Belloc, mais tarde publicado com o sugestivo nome de “Estamos de
acordo?”. Quanto ao segundo, são conhecidos os debates, no Centro
Evangélico de Cultura de Roma, em 1993, com o professor valdense Paolo Ricca,
da Faculdade de Teologia da Comunidade Valdense, minoria protestante italiana;
com o director da revista MicroMega,
Paolo Flores d’Arcais, no Teatro Quirino de Roma, em 2000, perante cerca de
2000 pessoas e sob o tema “Existe Deus? Um confronto sobre verdade, fé e
ateísmo”; o debate promovido pela Academia Católica da Baviera, com sede em
Munique, com o filósofo alemão Jünger Habermas sobre os fundamentos morais do
Estado; e, nesse mesmo ano, com o historiador italiano Ernesto Galli sobre
“História, política e religião”.
Merece uma referência à parte o diálogo estabelecido com o filósofo
italiano Marcelo Pera, na altura presidente do Senado, e que teve origem numa
lição que, em 2004, este professor italiano proferiu na Pontifícia Universidade
Lateranense, e de uma conferência que o então Cardeal Ratzinger deu na Sala do
Capítulo do Senado Italiano. Daqui resultou um livro, da autoria de ambos, com
o título Sem raízes. Europa, Relativismo, Cristianismo, Islão. Parece,
no entanto, haver uma continuidade entre os debates iniciados por G. K.
Chesterton, no princípio do século vinte, e os que o Cardeal Ratzinger realizou
no final do mesmo século e início do actual. Há, em todos eles, uma permanente
ligação entre a fé e a razão, e um respeito natural pelo seu opositor
intelectual que quase sempre, se não mesmo sempre, se transforma numa profunda
amizade.
É essa relação também entre a fé e a razão que está ainda subjacente à
conhecida obra Hereges do escritor inglês, em que este, com a subtileza
e o humor que lhe é particular, põe em causa as opiniões religiosas do seu
tempo, que é também ainda o nosso, e abre novos caminhos para questões
fundamentais do mundo contemporâneo. Tal como o Cardeal Ratzinger que,
serenamente, critica os erros e desvios da cultura ocidental, em relação aos
valores e princípios que estiveram na sua origem e criaram a sua identidade, e
a vão agora, aos poucos, minando e destruindo. Foi, também ele, chamado o Papa
do paradoxo pelo modo como, certeiro e de fino humor, escrevia e falava. Vem a propósito
referir a definição correcta de paradoxo, tal como a deu Hilaire Belloc,
aplicada a Chesterton, mas que é igualmente devida ao próprio Papa. O paradoxo,
afirmou ele, não é qualquer tontice que se diz por meio de contradição, como
por vezes julga o vulgo apressado e ignorante, mas, no seu significado original
e culto, a iluminação de algo mediante
uma justaposição inesperada.
É ainda e sempre a estreita relação entre a fé e a razão, temperada com
o sal da alegria cristã. Pois, como disse o Padre Brown ao desmascarar o ladrão
que se tinha feito passar por um falso sacerdote: “ O senhor atacou a razão e
isso é má teologia”. A teologia cristã, como o nome indica, embora muitos
amiúde disso se esqueçam, tem Cristo como centro. Cristo que é fonte natural de
alegria e, por isso, como disse o Cardeal Ratzinger numa homilia, nos leva a
compreender a partir de então as palavras
de Chesterton, “que os seres humanos, assinalados com a Cruz de Cristo,
circulam alegres na escuridão”. E, noutro texto dos anos oitenta,
acrescenta, numa linha claramente chestertoniana: A alegria profunda do coração é também o verdadeiro pressuposto do
humor e, assim, o humor, sob determinado aspecto, é um índice, um barómetro da
fé. Nos anos noventa, na primeira entrevista concedida a Peter Seewald,
dirá: Considero muito importante, e diria
que também é necessário para o meu ministério, que eu saiba ver também o
aspecto divertido da vida e a sua dimensão alegre, e não levar tudo tão
tragicamente. Um escritor – refere-se a G. K. Chesterton – disse que os anjos podem voar porque não se
levam demasiado a sério. Talvez também nós pudéssemos voar um pouco mais, se
não déssemos a nós próprios tanta importância.
Isto, não obstante o pecado a que todos estamos sujeitos. Noutra
homilia, em jeito de meditação dirigida aos sacerdotes, afirmou também o
Cardeal Ratzinger: Sem conversão não nos
aproximamos de Jesus nem do Evangelho. Há um paradoxo de Chesterton que exprime
de maneira apropriada esta relação: conhece-se um santo pelo facto de ele se
reconhecer pecador. O Papa do paradoxo, leitor de Chesterton, disse na
última das famosas entrevistas ao jornalista alemão Peter Seewald, que a vida não se situa nas contradições mas nos
paradoxos. O escritor inglês que,
infelizmente, não pôde ler o Papa por que se adiantou a nascer, acrescentaria:
“ o homem é muito mais confortado pelos paradoxos”.
Há ainda, nesta breve ligação entre duas figuras cimeiras da cultura
europeia do século vinte, um aspecto que merece ser salientado: a relação de
ambos com a arte. A série de ilustrações sobre as estações da Via Sacra feita
pelo pintor William Frank Brangwyn (1867-1956) serviu a Chesterton de ponto de
partida para um conjunto de reflexões sobre o mesmo tema. O Cardeal Joseph
Ratzinger antecedeu de cinco meditações sobre a Semana Santa o álbum que reunia
as pinturas religiosas do pintor americano William Congdon (1912-1998), intitulado
O sábado na história. Isto, sem falar, naturalmente, nos vários textos,
quer de um, quer de outro, sobre arte e estética.
Disse Chesterton: “A humildade acompanha todas as grandes alegrias da
vida com a precisão de um relógio”. Bento XVI podia subscrever esta frase. Ele,
que soube sempre aliar a simplicidade de quem muito sabe à humildade de quem
muito reza. Ele, que incapaz de governar a barca de Pedro, porque alquebrado e
doente, quis, ao recolher-se a um convento para orar por todos nós, a sós com
Deus, continuar a ser o Servo dos servos de Deus, o Papa da humildade.
António Leite da
Costa
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