“Tudo é bom e belo porque é verdadeiro…Uma vez que
a Palavra é para toda a criação, e toda a criatura e toda a pequena folha
obedecem à Palavra, cantando louvores a Deus, chorando as mágoas a Cristo, sem
terem de tal consciência plena, alcançam esse desiderato pelo mistério da sua
existência sem pecado.”
F. A. Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, 1879
“O homem é mais ele próprio, mais humano, quando a
alegria é o seu traço fundamental, e a tristeza é apenas superficial. A
melancolia deve ser um interlúdio, uma moldura leve, transitória e inocente da
mente; a gratidão deve ser o ritmo permanente da alma…A alegria é o mecanismo
tumultuoso pelo qual todas as coisas vivem.”
É curioso como quem descobre Chesterton
(1874-1936), descobre outros autores de língua inglesa como Stevenson
(1850-1894) ou Dickens (1812-1870), autores de língua francesa como Vítor Hugo
(1802-1885) e autores de língua russa, como Tolstoi (1828-1910) ou Dostoiévski
(1821-1881). De Stevenson, Chesterton disse que ele parecia ter sempre a
palavra certa na ponta da sua caneta como um homem que joga mikado1.
"Talvez o ponto que Stevenson melhor sublinhou é que nós devemos admirar a
virtude (o Bem) pelo seu próprio valor intrínseco e beleza, e não pelo valor
que se lhe atribui numa dada época ou num dado local"2.
Stevenson diria sobre Dostoiévski: “Raskolnikov é, sem sombra de dúvida, o
melhor livro que eu li nos últimos dez anos. Muitos pensam que é maçudo; Henry
James não o conseguiu acabar: pela minha parte, o que eu posso dizer é que ele
quase acabou comigo”3.
De Vítor Hugo, Chesterton escreveu: “A
verdade é que Hugo representa todas as coisas últimas e fundamentais: o amor, a
ira, a compaixão, a reverência, o ódio e, consequentemente, entre outras
coisas, a vaidade”4. Se pensarmos que Hugo não era cristão, nem
possivelmente baptizado, que fez experiências ocultas para contactar com a sua
falecida filha Leopoldine, que era um deísta, como a maioria dos intelectuais
franceses da sua era, que afirmou que Paris devia mudar de nome em sua honra, entendemos
melhor o mundo maravilhoso de G. K. Chesterton. Chesterton não esqueceu que
Hugo salvou a catedral de Notre Dame de Paris e a Sainte Chapelle da demolição,
após terem sido armazéns de farinha. Mas, Chesterton sobretudo não esqueceu
Jean Valjean, Cosette, Os Miseráveis,
essa obra extraordinária que ilumina a alma humana para sempre. Sem a ler,
ninguém poderá jamais avaliar correctamente Vítor Hugo.
Thomas Merton sintetiza essa atitude:
“Nós somos suficientemente sensatos para perceber que um autor pode ser
profundamente bíblico no seu trabalho sem ser crente ou um frequentador da
igreja e nós também percebemos que no nosso tempo é muitas vezes um artista só
e isoladamente, enfrentando os problemas da vida sem a consolação da religião,
que realmente sofre, em toda a sua profundidade, os problemas existenciais da
criatura humana”5. Chesterton concluiria profeticamente sobre Hugo:
“…Hugo é uma figura distante e vaga, um autor polémico e pouco conhecido. No
entanto, ele foi, sem sombra de dúvida, um dos maiores homens de letras que
alguma vez existiram na Europa; o dia do seu retorno ao triunfo intelectual
estará longe com efeito, mas é certo”4. A West End e a Broadway, com
Les Misérables, fariam jus a estas
palavras.
Vós
que chorais, vinde a este Deus, porque Ele chora.
Vós
que sofreis, vinde a Ele, porque Ele cura.
Vós
que tremeis, vinde a Ele, porque Ele sorri.
Vós
que passais, vinde a Ele, porque Ele perdura.
(Vítor Hugo, Écrit au bas d’un crucifix).
De Tolstói, Chesterton criticaria a sua
falta de fé na bondade humana; no valor da vida; na dicotomia
farisaica entre o que dizia e o que fazia; na adoração da humanidade
vilipendiando homens, mulheres e crianças, o homem concreto; no puritanismo
contra os pequenos pecados dos homens num homem a quem não faltavam pecados; a
descrença dos valores da Pátria ou da família. Tudo reside, para Chesterton, no equilíbrio entre a lógica e o misticismo, ausente em Tolstoi: “Na verdade,
desde que o tempo é tempo, o misticismo manteve a sanidade no homem. O que
enlouqueceu o homem foi a lógica. A única coisa que manteve o homem longe dos
extremos do convento e do navio pirata, do clube nocturno e da câmara de gás,
foi o misticismo” – a crença de que a lógica nos pode enganar e de que as coisas
não são o que parecem. Tudo isto pode ser encontrado no livro
que lhe dedicou6 e no livro anterior, Twelve Types7. Mas,
também para ele, Chesterton deixou a sua apreciação final, cheia de
cavalheirismo: “Não sabemos o que fazer a este pequeno e ruidoso moralista que
habita num canto de um homem grande e bom”.
Para Dickens, Chesterton citou Dante,
paradoxalmente: “abandonai todo o desespero, vós que entrais aqui” (nas obras
de Dickens)8. E ainda “A camaradagem e a alegria não são interlúdios
na nossa viagem…antes, a nossa viagem é um interlúdio na camaradagem e na
alegria, que, por meio de Deus, durarão para sempre. A estalagem não aponta
para a estrada, mas a estrada para a estalagem. E todas as estradas apontam
finalmente para uma última estalagem, onde encontraremos Dickens e todas as
suas personagens. E quando bebermos de novo, será pelos grandes jarros da taberna
do fim do mundo”9. “Dickens era mais preciso quando era mais
fantástico…Ele exagerava quando tinha encontrado uma verdade, para a exagerar…Em
certo sentido, só a verdade pode ser exagerada, nada mais pode suportar a
pressão”.
É sabido que Dostoiévski tinha em Vítor
Hugo, o herói literário da sua juventude. Foi mesmo convidado a ir ao Congresso
Internacional de Escritores de Língua Francesa, presidido por Hugo, mas não
compareceu por problemas de saúde. Enviaria uma nota em que dizia. “Ao grande
poeta cujo génio exerceu sobre mim uma enorme influência desde a minha infância”.
Dostoiévski escreveria sobre Hugo: “A ideia de Hugo é a ideia básica da arte do
século XIX…Esta ideia é cristã e profundamente moral; a sua fórmula é a da
regeneração dos homens caídos, esmagados injustamente pela força das
circunstâncias e pelo poder do preconceito social. Esta ideia é da justificação
dos párias da sociedade, humilhados e repelidos por todos”. Esta admiração não
o impediu de criticar Hugo quanto às suas descrições de origem burguesa, quer dos
personagens republicanos, quer dos personagens amorosos. Escreveria a uma sua
leitora, Sofia Lurye: “É onde os seus seres miseráveis emergem que nós podemos
observar a humanidade, o amor e a magnanimidade de Vítor Hugo”10.
Dostoiévski, chamou a Dickens o seu
mestre e também lhe chamou “o grande cristão”. Ele confessou à sua sobrinha ter
lido Dickens na prisão e os dois homens realmente encontraram-se em Londres em
1862, onde tiveram oportunidade de discutir a dualidade intrínseca à natureza
humana. Ambos, contrariamente a Tolstói, sentiram o espírito de
Rousseau, como retratado por Shakespeare em King Lear: o príncipe das trevas é
um cavalheiro! Viam em Rousseau um aristocrata burguês, um filósofo, que
criticava o amor-próprio ou o sentir individual, nutrindo um ódio ao indivíduo
concreto que se traduziu em misantropia, acompanhada por uma adoração
platónica à humanidade.
Quer Dostoiévski quer Dickens
compreenderam e retrataram este tipo de personalidade, repugnante e mesquinha,
egoísta e diletante, nas suas obras. Tal como criticaram o utilitarismo,
recusando que uma teoria filosófica ou política, assente no puro interesse
individual, pudesse ser o sustentáculo de qualquer ética11. Existia
ainda um poderoso factor que identificava estes dois homens: Dostoiévski esteve
preso; o pequeno Dickens, de doze anos, todos os domingos atravessava a ponte
de Blackfriars a caminho da prisão de Marshalsea para visitar os seus pais, que
se encontravam detidos (o pai detido e a mãe e filhos mais novos a viver na
prisão, como era hábito na época). O pequeno Charles vivia com uma amiga da
família e trabalhava dez horas por dia numa fábrica, a pintar e rotular potes
de graxa preta, num local imundo e cheio de ratos. Dickens escreveria mais
tarde: “É incrível como alguém pode ser um pária numa idade tão jovem”12.
Chesterton diria que Dickens, sabia
melhor que ninguém que o sentido fundamental da fraternidade humana só poderia
existir no âmbito de uma verdadeira religião1. O papel da Polónia na
queda do muro de Berlin dar-lhe-ia razão.
Chesterton referiu-se a Dostoiévski,
publicamente, por duas vezes: uma em 191213 e outra em 193414.
Claro que todo o ambiente de Crime e
Castigo o envolvia, pelo menos desde 1908, tal como acontecia com os seus
amigos, admiradores e promotores de Dostoiévski, Gissing15 e Edward
Garnett16, com quem ele escreveu um ensaio sobre Tostoi, em 1903, e
Maurice Baring, que escreveu vários livros sobre a sua permanência na Rússia,
entre os quais, Landmarks in Russian
Literature, metade do qual é dedicado a Dostoiévski. Em 1910, o teatro
Garrick apresenta a dramatização de Crime
e Castigo sob o título de A Lei Não
Escrita, cuja tremenda popularidade torna Dostoiévski conhecido em toda a
Inglaterra3. É neste ano que é publicada a primeira história de O Padre Brown, A Cruz Azul. É possível que Crime
e Castigo tenha influenciado Chesterton em obras como as histórias do Padre Brown, O Homem Que Era Quinta-feira (1908), O Homem Que Sabia Demais (1922) e O Poeta e os Lunáticos (1929). Mark Knight afirma que Chesterton
terá conhecido o trabalho do escritor russo entre 1898 e 190615.
Ambos partilham o gosto
pelas histórias de detectives17, o uso do grotesco18,19,20
e das personagens metafóricas, o recurso aos duplos21,22, o fascínio
pela insanidade23 e a centralidade na liberdade humana, o livre
arbítrio21.
Muitos alegam que o paralelo Chesterton
– Dostoiévski não assenta num pressuposto sólido24. Por um lado, Chesterton nunca escreveu romances com a profundidade e a densidade psicológica
de Dostoiévski; por outro lado, nos contos policiais, Raskolnikov não encontra
paralelo em Flambeau. Adicionalmente, personagens com um cunho existencialista,
frio e desvinculado, como Raskolnikov em Crime
e Castigo, Ivan em Os Irmãos
Karamazov e o homem subterrâneo em Cadernos do Subterrâneo, não têm paralelo em Chesterton (aquela gratidão pela existência
que vemos no Innocent Smith de Manalive),
mas sim uma espécie de revolta pela existência e uma vitimização. O homem
subterrâneo admite que só quis humilhar e abusar de Lisa: “Era só pelo poder,
eu queria sentir o poder, esse fascínio de um jogo. Eu queria as tuas lágrimas,
a tua humilhação, sentir-te destroçada, era isso que eu queria”.
O culminar do tributo de Chesterton a
Dickens vem com uma espécie de bandeira: “Há grandes homens que fazem com que
todos se sintam pequenos, mas o verdadeiro grande homem é aquele que faz com
que todos se sintam grandes”9. Ora, esta frase poderia ter sido
aplicada a Dostoiévski por Chesterton e todo o esforço deste artigo consistirá
em defender esta tese.
António Campos
Referências:
Referências:
1 – G. K.
Chesterton. The Victorian Age in Literature. Henry Holt and Co.,
246, London, 1917.
2 – G. K. Chesterton. Twelve Types: A Collection of Mini-Biographies: Stevenson.1902. IHS Press, Norfolk, VA, 2002.
3 - Helen
Muchnic. “Dostoevsky English Reputation 1881-1936”. New York, Octagon
Books, 62-110, NY, 1969.
4 - G. K.
Chesterton. “Victor Hugo, Pall Mall Magazine,1902”, reprinted in A Handful of
Authors: Essays on Books and Writers, ed. Dorothy Collins, Sheed and Ward, 1953.
5 – Thomas Merton. Opening
the Bible, Collegeville, Minnesota: The Liturgical Press, and Philadelphia,
Pennsylvania, Fortress Press, 1970.
6 – Gilbert K. Chesterton, George H. Perris, Edward Garnett. Leo Tolstoy, Hodder and Stoughton,
1903.
7 – Chesterton.
Twelve Types: A Collection of Mini-Biographies, 1902. Leo Tolstoy. IHS Press,
Norfolk, VA, 2002.
8 – G. K.
Chesterton, Charles Dickens, 1906.
9 - G. K.
Chesterton. The Flying Inn, 1914.
10 – Kenneth A.
Lantz. The Dostoevsky Encyclopedia. Greenwood Press, 2004.
13 - G. K.
Chesterton, The Collected Works, Illustrated London News, 269-70, 1911-1913.
Ignatius Press, SF, 1988.
14 – G. K.
Chesterton, “Revolutionists and Revivalists of the 19th Century”,
The Listener (14 November 1934), 836.
15 – George
Gissing. Born in Exile, Hogarth Press, London, 1985.
16 – Mark J. Knight.
"Dostoevsky & England." English Literature in Transition,
1880-1920, 43.4: 471-474, 2000.
17 - Anthony
Cross. “A People Passing Rude. British Responses to Russian Culture”. Open Book
Publishers, 2012.
18 - John
Coats, “The Return to Hugo, A Discussion of the Intellectual Context of
Chesterton’s View of the Grotesque”. ELT, 1880-1920, 25:2, 1982.
19 – Mark J.
Knight, “The Concept of Evil in the Fiction of G. K. Chesterton: With Special
Reference to his Use of Grotesque. University of London, PhD Thesis, 1999.
20 – Donald
Fanger. “Dostoevsky and Romantic Realism: A Study of Dostoevsky in Relation to
Balzac, Dickens and Golgol. University of Chicago Press, Chicago, Il, 228-240,
1965.
21 – Mark
Knight. “Chesterton, Dostoevsky and Freedom”, English Literature in Transition
1880-1920, 43.1: 37-50, 2000.
22 - Dmitri
Chizhevsky. “The Theme of the Double in Dostoevsky”, Dostoevsky: A Collection
of Critical Essays, ed. Rene Wellek, New Jersey: Prentice-Hall, 1962.
23 – Russell
Kirk. “Chesterton, Madmen and Madhouses”, Myth, Allegory and Gospel, ed. John
Warwick Montgomery, Minnesota: Bethany, 1974.
24 – Gary
Wills. Chesterton: Man and Mask, Sheed and Ward, NY, 1961.
Sem comentários:
Enviar um comentário