São Francisco de Assis por G K Chesterton, 1923
Este foi um homem admirável na história secular e um modelo de virtude
social. Pode descrever-se este demagogo divino como sendo o mais sincero
democrata. Pode dizer-se que S. Francisco estava à frente do seu tempo. Pode
dizer-se que S. Francisco antecipou o que é de mais liberal e acolhido no mundo
moderno: o amor pelos animais, o amor pela natureza, a noção de compromisso
social, a noção do risco de degeneração espiritual provocada pela prosperidade
ou pela acumulação da propriedade. Pode ser descrito como um herói humano ou
humanitário. Na verdade, foi o primeiro herói do humanismo. Poderia ser
descrito como uma estrela do Renascimento, embora tenha vivido na Idade Média.
E, em comparação com todas estas coisas, a sua teologia ascética pode ser
ignorada ou recusada, tida com um acontecimento acidental, felizmente não
fatal. A sua religião pode ser considerada superstição, mas uma superstição inevitável
sem dúvida, da qual nem mesmo o génio se podia desligar totalmente. Tendo isto
em conta, seria muito injusto condenar S. Francisco pela sua recusa voluntária
de bens materiais ou censurar-lhe indevidamente a sua castidade. Sem dúvida,
mesmo uma análise tão afastada não ignoraria o facto de a sua vida ter sido
heróica. Ainda se poderia dizer muito sobre um homem que queria acabar com as
cruzadas falando com os sarracenos ou que intercedeu junto do Imperador pelos
pássaros. O escritor poderá descrever apenas com um espírito histórico toda a
inspiração franciscana que se encontra numa pintura de Giotto, na poesia de
Dante, nas peças de teatro maravilhosas que tornaram possível o drama moderno e
de tantas outras coisas que são apreciadas pela cultura moderna. Pode tentar
fazê-lo, como outros já fizeram, sem colocar a questão religiosa. Resumindo,
pode tentar contar a história de um santo sem Deus, que é como escrever sobre
Dickens sem nunca mencionar a pobreza.
O outro modo de descrever S. Francisco é do ponto de vista de um devoto.
Ele foi o fundador das ordens menores, os franciscanos, seguiu o ideal de
pobreza, era um asceta e um místico católico. Ele encontrou uma alegria
austera, por assim dizer, nos paradoxos do asceticismo e, às avessas do mundo,
na humildade. A história das suas marcas físicas dos estigmas é pública e
publicável, os seus jejuns podem ser interpretados num contexto de luta contra
o dragão, como era também o caso de São Domingos. Em resumo, ele pode resultar
naquilo que o nosso mundo interpreta como negativo. O reverso de todas as luzes
e sombras. O que os tolos pensarão ser tão impenetrável como as trevas e mesmo
o que muitos sensatos tomarão como tão invisível como escrever a prateado no
branco. Um tal estudo de S. Francisco será ininteligível a quem não partilhe a
sua religião, talvez parcialmente inteligível a quem apenas não partilhe a sua
vocação. De acordo com ambos os juízos, será considerado demasiado bom ou
demasiado mau para o mundo. O único problema é que tal julgamento não se pode
fazer. É necessário um santo para escrever sobre a vida de um santo.
Finalmente, pode-se tentar fazer o que eu fiz. O escritor pode colocar-se
na posição de alguém de fora e questionar. Pode colocar-se na posição de quem
já admira S. Francisco, mas apenas naquelas coisas que considera dignas de
admiração. Pode tentar usar o que é compreendido para explicar aquilo que não
se compreende. Pode tentar dizer ao leitor moderno: “Aqui está um homem com
quem já simpatizamos pela sua alegria, a sua imaginação romântica, a sua
cortesia espiritual e camaradagem, mas que também contém elementos (sinceros e
fundamentais) que consideramos atrasados e repulsivos. Mas na realidade foi
apenas um único homem e não meia dúzia de homens. O que parece sem nexo para
nós, não lhe pareceu a ele. Vamos tentar compreender, com o auxílio da razão,
essas outras coisas que nos parecem razoavelmente obscuras, pela sua
impenetrabilidade intrínseca e pela ironia do seu contraste.” Não pretendo
dizer, naturalmente, que eu consigo fazer um retrato psicológico exaustivo
neste esboço básico e rudimentar. Apenas quero afirmar que a única condição
controversa que aqui assumo é a de que estou a lidar com alguém com quem
simpatizo mas que me é estranho, externo. Nem mais nem menos. Um materialista pode
não se importar se as inconsistências são ou não resolvidas. Um católico pode não
ver nenhuma inconsistência sequer. Mas eu aqui dirijo-me ao homem comum, empático,
mas cético. E eu posso apenas vagamente esperar que, ao analisar a história
deste grande santo pelo que tem de pitoresca e popular, eu possa ter permitido
ao leitor saber um pouco mais do que sabia antes sobre a consistência do
personagem como um todo. Por este meio de análise podemos ter um vislumbre de
como um poeta que dá graças a Deus pelo sol muitas vezes se refugiou numa
caverna sombria, de como um santo que era tão bondoso para o seu irmão lobo era
tão áspero para com o seu irmão asno (asno ou traseiro foi a expressão que
utilizou para o seu próprio corpo), de como um trovador que proclamava que o
amor lhe abrasava o coração viveu sem a companhia de mulheres, de como o cantor
que rejubilou com a força e alegria do fogo se rebolou na neve, de como a
canção que grita com a paixão de um pagão “Louvado seja Deus pela nossa irmã,
Mãe Terra, que nos dá frutos diversos, relva e flores reluzentes,” termine
quase sempre com as palavras “Louvado seja Deus pela nossa irmã, a Morte do
corpo.”
Traduzido e adaptado por António Campos e Anália Carmo
A estigmatização de São Francisco - Giotto
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