Confesso que não me fascina João
Pereira Coutinho. Não partilho a sua admiração por Burke, por Oakeshot ou por Disraeli.
Como refere Pereira Coutinho no seu livro, todos eles possuem uma ética
política posicional, de acordo com as circunstâncias; i.e., prática, não
ideológica. O estadista é aquele que sabe ler o espírito da época,
encarnando-o, como dizia Hegel. É a “ideologia posicional”, citando Burke: “as circunstâncias dão a cada princípio
político a sua cor distinta e efeito discriminatório.”1
Mais à frente um reforço da definição hegeliana do estadista como homem que interpreta correctamente a História, mais do que aquele que a pode modificar, citando Isaiah Berlin, “de um estadista espera-se antes que ele seja capaz de captar as permanentemente mutáveis cores dos acontecimentos e os sentimentos e actividades humanas.” O cinismo na política também é enaltecido por Burke e recomendado por Pereira Coutinho: “Quando desejardes agradar a qualquer povo, deveis dar-lhe o benefício que ele pede – não aquilo que pensais ser melhor para ele.” Resumindo, usando as palavras de Vítor Bento, a moral na política basta-se a si própria.
Duvido que o conservadorismo se esgote neste snobismo. Creio que jamais o conservadorismo será poder enquanto não ostentar a discrição da humildade. Os homens por mais ignorantes que sejam nunca serão tão estúpidos que não se procurem rever em quem os representa. Podem ser enganados pela hipocrisia, mas dificilmente abrirão o seu coração ao cinismo. Prefiro no terreno conservador homens como Jaime Nogueira Pinto e João César das Neves, para quem a recusa da política do Monte das Bem-aventuranças coloca em risco a civilização ocidental. 12
Mais à frente um reforço da definição hegeliana do estadista como homem que interpreta correctamente a História, mais do que aquele que a pode modificar, citando Isaiah Berlin, “de um estadista espera-se antes que ele seja capaz de captar as permanentemente mutáveis cores dos acontecimentos e os sentimentos e actividades humanas.” O cinismo na política também é enaltecido por Burke e recomendado por Pereira Coutinho: “Quando desejardes agradar a qualquer povo, deveis dar-lhe o benefício que ele pede – não aquilo que pensais ser melhor para ele.” Resumindo, usando as palavras de Vítor Bento, a moral na política basta-se a si própria.
Duvido que o conservadorismo se esgote neste snobismo. Creio que jamais o conservadorismo será poder enquanto não ostentar a discrição da humildade. Os homens por mais ignorantes que sejam nunca serão tão estúpidos que não se procurem rever em quem os representa. Podem ser enganados pela hipocrisia, mas dificilmente abrirão o seu coração ao cinismo. Prefiro no terreno conservador homens como Jaime Nogueira Pinto e João César das Neves, para quem a recusa da política do Monte das Bem-aventuranças coloca em risco a civilização ocidental. 12
Na verdade, como afirmava Christopher
Dawson,2 o conservadorismo tem a sua raiz no liberalismo e este no
iluminismo. Deus é assunto privado e nada tem com os assuntos da sociedade, da
cultura ou do Estado. A alma humana é uma imagem, um humanismo. A fraternidade
humana é uma partilha da ideia de que o homem vive uma experiência concreta,
liberta da presença de Deus, e que a realidade última se encerra neste mundo.
Deus é uma imagem ou ideal. Um conservador como Oakeshott diz que é melhor
ignorar a religião do que ser importunado por ela. Ora, a maior contribuição de
Dawson foi precisamente a de nos mostrar que todas as civilizações nascem e
decorrem da crença religiosa: a cultura deriva do culto. Como afirmava
Chesterton, “Uma coisa pode ser ignorada
desde que seja demasiado grande”.3
O liberalismo, que decorre das ideias
de John Locke e da Revolução Gloriosa,
http://sociedadechestertonportugal.blogspot.pt/2014/06/john-locke-1632-1704-circunstancia.html,
compreende o individualismo económico do comércio livre e o laissez faire ou honi soit qui mal y pense, eufemismos de dinheiro e sexo. Decai no
final do século XIX até meados do século XX, muito devido à falência da ideia
de progresso contínuo e virtuoso, provocado pelos acontecimentos das duas
guerras mundiais. Outras causas para a sua perda, foram o desaparecimento da classe média de pequenos empresários
por conta própria e a exploração dos trabalhadores empurrando-os
para uma vida miserável, o que motivaria um forte pronunciamento da Igreja
Católica, através da Encíclica Rerum
Novarum.
O liberalismo persistiu, contudo, quer no
reavivar do conservadorismo, sob forma de preservação da tradição, da
autoridade e da propriedade, quer na emergência do socialismo, como forma de uma
mudança do mundo para incluir os miseráveis. O liberalismo originou à direita um capitalismo plutocrático, com destruição das pequenas empresas de revenda e distribuição, das relações de proximidade e dos pequenos empresários liberais por conta própria. O liberalismo originou à esquerda a destruição da ética de relacionamento pessoal e sexual. Como o socialismo é um ataque de natureza moral e
religiosa e o conservadorismo procura responder-lhe apenas com argumentos de
natureza económica e política, é natural que haja sempre uma percepção de deficit moral no conservadorismo.
Por detrás de uma imponente retórica,
Burke (1729-1797) elogiava a religião, o partido whig, a Revolução Gloriosa
e o “ser inglês”. Sobretudo abominava a revolução francesa, embora não a
americana, porque contrariamente à americana, não possuía uma vertente liberal
e comercial.
Burke era maçon, introduzido na loja
pelo primeiro ministro whig, Charles,
marquês de Rockingham, de quem foi secretário em 1765, de quem permaneceria íntimo
amigo até à morte em 1782. Uma das razões porque não gostava da Revolução
Francesa era a de ela representar a regra
da maralha. Burke preferia a regra da
elite iluminada. Na mente de Burke, o processo substitui Deus, como
autoridade imanente em assuntos de jurisprudência e política. Embora anglicano,
remete Deus e a sua lei para a esfera privada e para o discurso retórico.
Também o cético Hume que pensava que a religião e a moral não possuem
fundamento racional, declararia: “procurai
um povo inteiramente privado de religião: se o encontrardes, podeis estar certos
de que ele pouco difere dos animais.”4
Chesterton louvou as qualidades
retóricas de Burke, mas criticou a inconsistência e fraqueza do seu pensamento
conservador, chamou-lhe relativista e ateu, no sentido em que raciocinava como
um ateu, i.e., como um secularista ou como um iluminista, inspirado em Hume. De
facto, Burke partilhava a concepção de sociedade de Hume.
Adam Smith elogiaria Burke, dizendo que
ninguém antes dele exprimira melhor o seu pensamento sem o conhecer de antemão.
É o pensamento oposto ao pensamento socialista.
Então este duplo polo, Hume e Adam
Smith, caracterizam o pensamento de Burke e tornam mais clara a crítica de
Chesterton:
"Era o dogma de Bentham, Adam
Smith e afins, de que algumas das mais reles pulsões humanas se transformariam
em coisa boa. Era a doutrina misteriosa de que o egoísmo pode chegar ao mesmo
resultado que a generosidade."5
O que mais irritava Chesterton em Burke
não eram tanto as suas escolhas, mas as suas razões. Baseadas num ateísmo
prático, embora o seu autor não fosse um ateu convicto. Robespierre que era
deísta defendeu uma doutrina teísta, a igualdade dos homens perante a lei;
Burke que era teísta defendeu uma doutrina ateísta, a de que os homens tinham
direitos consignados na lei pela força da herança.6 Burke escolheu
Montesquieu sobre Tomás de Aquino. Ou melhor, David Hume: “o útil move a nossa concordância”.
Diz Burke: “Na famosa lei... A Petição dos Direitos, o Parlamento
declara ao rei, "Os teus súbditos herdaram esta liberdade",
reconhecendo os seus direitos baseados não em princípios abstratos como "os
direitos do homem", mas nos direitos dos Ingleses, como um património
herdado dos seus antepassados.”
Portanto os direitos que vêm por
herança, são os direitos dos senhores face ao rei, não são os direitos de todos
os homens, “uma abstracção”. Burke era um aristocrata e a sua democracia era
uma oligarquia onde o povo não tinha lugar. Ele não achava que os direitos do
homem fossem uma coisa natural, mas uma convenção. Por isso Chesterton o
apelidava de inimigo da democracia e “ateu funcional”. Ele faz parte do grupo
de pessoas que acredita que a esperança de uma sociedade reside nas suas elites
contra aquele grupo de pessoas que acredita que a desgraça de uma sociedade
reside nas suas elites.
Na verdade, Burke defende uma História
sem saltos, sem convulsões. Uma defesa permanente dos direitos adquiridos pelos
ingleses na Magna Carta. Burke era
irlandês. Os católicos ingleses desapossados dos seus haveres e da sua vida
também tinham os seus direitos consignados na Magna Carta. A Revolução
Gloriosa consistiu na covarde deserção do comandante em chefe das forças
armadas britânicas, John Churchill, a favor dos holandeses, abandonando o rei
legítimo de Inglaterra. A Revolução
Gloriosa não foi uma restauração da ordem correta, como dizia Burke, foi o
fim da dinastia Stuart e dos católicos em Inglaterra, numa luta fraticida que
vinha desde Henrique VIII. A dinastia dos Stuart foi a última barreira contra a
plutocracia na Inglaterra, uma forma de poder essencialmente ligada a uma elite
e a uma Igreja indissociável do Estado.
Burke defendia a aristocracia
imobiliária e comercial britânica representada pelo Parlamento. Por isso
defendeu a Revolução Gloriosa e não
emitiu uma palavra contra Cromwell. Por isso jurou contra a transubstanciação e
fez o voto de supremacia que negou a tantos católicos um emprego e a
tantos outros a vida, como a Thomas More. Burke afirmou muitas coisas certas,
mas dificilmente escapa à crítica de Marx de que sempre se vendeu no melhor mercado – o partido whig era a aristocracia e o puritanismo. A restrição à posse da terra para católicos, após a vitória de Guilherme III na Irlanda, em 1690, foi desastrosa para a nação irlandesa, que sobrevivia de uma economia agrária. 13
As suas relações com a Companhia das
Índias levaram-no a perseguir um homem respeitador dos costumes e tradições
indianas, Warren Hastings, substituindo-o pelos típicos evangélicos
protestantes que com a sua arrogância e exploração conduziram a Índia aos
primeiros motins de 1857.
Para Chesterton, a Revolução Gloriosa encerrou o que tinha sido iniciado por Henrique
VIII e continuado por Cromwell: “A revolução dos ricos contra os pobres.”7
Diz Chesterton: “O seu argumento é o de
que nós temos alguma protecção pelo acaso natural e pelo nascimento. E como nos
atrevemos a discordar, defendendo o mesmo para todos os homens como se fossemos
imagens de Deus (imago Dei de São
Tomás)? (…) Então, muitos anos antes de Darwin dar a sua machadada na
democracia, o essencial do argumento darwiniano estava a ser usado contra a
Revolução Francesa. O homem deve adaptar-se a tudo, como um animal; não pode
modificar tudo, como um anjo.”
"O último grito do optimismo e deísmo do século dezoito veio pela voz de Stern: Deus regula o vento para o cordeiro tosquiado. E Burke, o evolucionista, responde: Não, Deus regula o cordeiro tosquiado para o vento. É o cordeiro que tem que se adaptar, ou seja, morre ou transforma-se numa espécie peculiar de cordeiro que gosta de permanecer numa corrente de ar."
"O último grito do optimismo e deísmo do século dezoito veio pela voz de Stern: Deus regula o vento para o cordeiro tosquiado. E Burke, o evolucionista, responde: Não, Deus regula o cordeiro tosquiado para o vento. É o cordeiro que tem que se adaptar, ou seja, morre ou transforma-se numa espécie peculiar de cordeiro que gosta de permanecer numa corrente de ar."
O mundo de Burke compreende o escravo
confinado à sua pocilga e o aristocrata snob
e nada pode alterar este processo evolutivo. O processo gradual é assim melhor
que um processo abrupto; um relativismo gradual melhor que um relativismo
radical. Ambos numa cosmovisão destituída do divino. É um iluminismo.
Chesterton crê que os ingleses como
Burke ao acreditarem no processo, crêem que o passado passou, ao passo que os
franceses capazes de romper com o passado podem voltar a restaurar o passado,
se o acharem por conveniente: “Aqueles que tudo derrubaram podem tudo voltar a
recolocar, mas aqueles que tudo incorporaram, nada poderão restaurar.”
“O ponto mais importante de uma
revolução é o de que ela é a única estrada para qualquer coisa – até para a
restauração. A revolução não pode ser apenas uma revolta dos vivos, também tem
que ser uma ressurreição dos mortos.”8
Não basta deixar as coisas como estão;
é necessário agir sobre elas. Porque a mutabilidade, a entropia, faz parte da
natureza do mundo e do homem. A política não é mera preservação para
salvaguardar a evolução. A videira necessita ser podada: o revolucionário corta
as cepas; o conservador recusa podar as videiras. Um provoca uma morte rápida, o
outro, uma morte lenta. Chesterton outra vez: “Uma vigilância extrema é
necessária por parte do cidadão devido à enorme rapidez com que as instituições
humanas envelhecem.”
É necessário um terceiro lado para
fazer um triângulo. A nossa alternativa não é a morte rápida ou a morte lenta,
mas num mundo sem Deus como o nosso, a restauração e ressurreição só poderão
sobrevir com o regresso da fé.
Na perspectiva da videira, será melhor
viver sem ser podada, definhando, do que ser cortada pela raiz. Mas esse lento
definhar não poderá ocultar-nos o verdadeiro caminho, o terceiro lado do triângulo,
o equilíbrio.
“E queda-se ténue mesmo a meio
A ponte nomeada Ambos-e-Nenhum
(…)
Onde as coisas não são o que parecem,
Mas o que significam”.9
“Penso ser legítimo afirmar que o
comunismo, o nacional socialismo, o capitalismo e a democracia liberal, são na
verdade três formas de uma mesma coisa, que elas se movem em caminhos separados
mas com o mesmo destino final, i.e., a mecanização da vida humana e a completa
subordinação do indivíduo ao Estado e/ou ao processo económico.
Evidentemente que não estou a afirmar
que são completamente equivalentes, de que não temos o direito de preferir um
em detrimento do outro. No entanto, creio que um cristão não os pode conceber
como a solução derradeira do problema da civilização, ou mesmo como a solução
possível.
A cristandade ergue-se contra qualquer sistema
social que reclama a completude do homem e que se propõe como a finalidade
última da acção do homem, uma vez que afirma com desassombro que a essência da
natureza humana ultrapassa qualquer sistema económico ou político. A civilização
é a Estrada pela qual o homem caminha, não a casa em que ele habita. A sua
verdadeira cidade situa-se noutro lugar.”2
Diz Chesterton: “Nos clubes de
pensadores é tido como sensato que avançar com o argumento convencional é sinal
de inteligência e sanidade. Pelo contrário, é tido como sinal de lirismo
avançar com uma opinião própria. Esta filosofia assenta no princípio de
Euclides de que dois lados de uma questão são sempre superiores ao terceiro
lado. Mas existe sempre um terceiro lado. Dois lados não definem um espaço.”10
“Os sábios peneiram a razão por um
crivo estreito que retém a areia e perde o ouro.” 11
António Campos
13 -
REFERÊNCIAS:
1 – João Pereira Coutinho, Conservadorismo. Dom
Quixote, 2014.
2 - Christopher Dawson, Religion and the Modern State.
Sheed & Ward, 1935.
3 – Chesterton, Illustrated London News, Dezembro de
1907.
4 – G. Reale – D. Antiseri, História da
Filosofia, vol. 4, Paulus, 2007.
5 – Chesterton, The Outline of Sanity.
6 - Chesterton, Os Disparates do Mundo,
cap. O Império do Insecto.
7 – Chesterton, A Short History of England.
8 – Chesterton, A Miscellany of Men.
9 – Chesterton, Ubbi Ecclesia.
13 -
10 – Chesterton, Illustrated London News, Two Sides of a Question, Junho de 1911.
11 – Chesterton, The Convert.
12 - Jaime Nogueira Pinto. Ideologia de Razão e Estado. Civilização, 2013.
12 - Jaime Nogueira Pinto. Ideologia de Razão e Estado. Civilização, 2013.
14 – Norman Davies, The Isles: A History (London: Macmillan,1999), pág. 629.
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