"Todo o Mundo Moderno se divide entre Progressistas e Conservadores. O papel dos Progressistas é cometer erros continuamente. O papel dos Conservadores é evitar que os erros sejam corrigidos."
Chesterton expressa neste poema
algumas das ideias recorrentes na sua escrita e as imagens pictóricas que as
ilustram. Os ramos de árvores como vigas suspensas ou o terrível aspecto
antropomórfico de certas árvores de folhas caducas como as faias, sobretudo à
noite, assustadores e maravilhosos.
O cansaço dos homens pelas maravilhas
da natureza, como a noite e o dia, que paralelam o cansaço dos homens pelo amor
com compromisso e com honra. Este recorrer e renovar na natureza é uma alegoria
da vida humana. Como refere na sua apreciação a Stevenson, “a vida é uma
partida contínua mas também é um mar de reconciliação.”
A insignificância do homem, como
reconhecido por Job, mas que caminha com confiança, apesar dos seus pecados,
pela estrada da vida ao encontro de Deus, onde inacreditavelmente todas as
pedras brilham.
A grande noite que se levanta sobre a
humanidade que rouba a liberdade humana, a privacidade e a dignidade, uma moderna
escravatura, “um monstro de inúmeros olhos”, ergue-se sobre nós que possuímos
sempre connosco a graça de Deus e, como tal, circulamos no escuro com o sinal
de Cristo e cheios de alegria, porque somos o sal do mundo, a denúncia do mal,
“os profetas que vou enviar”. Para tal deveremos ver as coisas comuns como se
as víssemos pela primeira vez, como uma criança. O “nascer de novo” de Jesus
para Nicodemos.
Porque haverá sempre uma outra vida
para quem tiver a humildade de descobrir a humildade, a segunda infância.
E assim, como a relva se abre para depositar o nosso corpo, o céu abre amplas janelas para receber a nossa alma.
Cheios de alegria, como dizia Teresa de
Lisieux, seremos “uma gota de orvalho num mar de sofrimento”, como dizia Teresa
de Calcutá. Com poucas palavras e muito melhor, Chesterton resumiu tudo neste
poema.
Confesso que não me fascina João
Pereira Coutinho. Não partilho a sua admiração por Burke, por Oakeshot ou por Disraeli.
Como refere Pereira Coutinho no seu livro, todos eles possuem uma ética
política posicional, de acordo com as circunstâncias; i.e., prática, não
ideológica. O estadista é aquele que sabe ler o espírito da época,
encarnando-o, como dizia Hegel. É a “ideologia posicional”, citando Burke: “as circunstâncias dão a cada princípio
político a sua cor distinta e efeito discriminatório.”1 Mais à
frente um reforço da definição hegeliana do estadista como homem que interpreta
correctamente a História, mais do que aquele que a pode modificar, citando
Isaiah Berlin, “de um estadista espera-se
antes que ele seja capaz de captar as permanentemente mutáveis cores dos
acontecimentos e os sentimentos e actividades humanas.” O cinismo na
política também é enaltecido por Burke e recomendado por Pereira Coutinho: “Quando desejardes agradar a qualquer povo,
deveis dar-lhe o benefício que ele pede – não aquilo que pensais ser melhor
para ele.” Resumindo, usando as palavras de Vítor Bento, a moral na política basta-se a si própria. Duvido que o conservadorismo se esgote neste snobismo. Creio que jamais
o conservadorismo será poder enquanto não ostentar a discrição da humildade. Os
homens por mais ignorantes que sejam nunca serão tão estúpidos que não se
procurem rever em quem os representa. Podem ser enganados pela hipocrisia, mas
dificilmente abrirão o seu coração ao cinismo. Prefiro no terreno conservador
homens como Jaime Nogueira Pinto e João César das Neves, para quem a recusa da política
do Monte das Bem-aventuranças coloca em risco a civilização ocidental. 12
Na verdade, como afirmava Christopher
Dawson,2 o conservadorismo tem a sua raiz no liberalismo e este no
iluminismo. Deus é assunto privado e nada tem com os assuntos da sociedade, da
cultura ou do Estado. A alma humana é uma imagem, um humanismo. A fraternidade
humana é uma partilha da ideia de que o homem vive uma experiência concreta,
liberta da presença de Deus, e que a realidade última se encerra neste mundo.
Deus é uma imagem ou ideal. Um conservador como Oakeshott diz que é melhor
ignorar a religião do que ser importunado por ela. Ora, a maior contribuição de
Dawson foi precisamente a de nos mostrar que todas as civilizações nascem e
decorrem da crença religiosa: a cultura deriva do culto. Como afirmava
Chesterton, “Uma coisa pode ser ignorada
desde que seja demasiado grande”.3
O liberalismo, que decorre das ideias
de John Locke e da Revolução Gloriosa,
http://sociedadechestertonportugal.blogspot.pt/2014/06/john-locke-1632-1704-circunstancia.html,
compreende o individualismo económico do comércio livre e o laissez faire ou honi soit qui mal y pense, eufemismos de dinheiro e sexo. Decai no
final do século XIX até meados do século XX, muito devido à falência da ideia
de progresso contínuo e virtuoso, provocado pelos acontecimentos das duas
guerras mundiais. Outras causas para a sua perda, foram o desaparecimento da classe média de pequenos empresários
por conta própria e a exploração dos trabalhadores empurrando-os
para uma vida miserável, o que motivaria um forte pronunciamento da Igreja
Católica, através da Encíclica Rerum
Novarum.
O liberalismo persistiu, contudo, quer no
reavivar do conservadorismo, sob forma de preservação da tradição, da
autoridade e da propriedade, quer na emergência do socialismo, como forma de uma
mudança do mundo para incluir os miseráveis. O liberalismo originou à direita um capitalismo plutocrático, com destruição das pequenas empresas de revenda e distribuição, das relações de proximidade e dos pequenos empresários liberais por conta própria. O liberalismo originou à esquerda a destruição da ética de relacionamento pessoal e sexual. Como o socialismo é um ataque de natureza moral e
religiosa e o conservadorismo procura responder-lhe apenas com argumentos de
natureza económica e política, é natural que haja sempre uma percepção de deficit moral no conservadorismo.
Por detrás de uma imponente retórica,
Burke (1729-1797) elogiava a religião, o partido whig, a Revolução Gloriosa
e o “ser inglês”. Sobretudo abominava a revolução francesa, embora não a
americana, porque contrariamente à americana, não possuía uma vertente liberal
e comercial.
Burke era maçon, introduzido na loja
pelo primeiro ministro whig, Charles,
marquês de Rockingham, de quem foi secretário em 1765, de quem permaneceria íntimo
amigo até à morte em 1782. Uma das razões porque não gostava da Revolução
Francesa era a de ela representar a regra
da maralha. Burke preferia a regra da
elite iluminada. Na mente de Burke, o processo substitui Deus, como
autoridade imanente em assuntos de jurisprudência e política. Embora anglicano,
remete Deus e a sua lei para a esfera privada e para o discurso retórico.
Também o cético Hume que pensava que a religião e a moral não possuem
fundamento racional, declararia: “procurai
um povo inteiramente privado de religião: se o encontrardes, podeis estar certos
de que ele pouco difere dos animais.”4
Chesterton louvou as qualidades
retóricas de Burke, mas criticou a inconsistência e fraqueza do seu pensamento
conservador, chamou-lhe relativista e ateu, no sentido em que raciocinava como
um ateu, i.e., como um secularista ou como um iluminista, inspirado em Hume. De
facto, Burke partilhava a concepção de sociedade de Hume.
Adam Smith elogiaria Burke, dizendo que
ninguém antes dele exprimira melhor o seu pensamento sem o conhecer de antemão.
É o pensamento oposto ao pensamento socialista.
Então este duplo polo, Hume e Adam
Smith, caracterizam o pensamento de Burke e tornam mais clara a crítica de
Chesterton:
"Era o dogma de Bentham, Adam
Smith e afins, de que algumas das mais reles pulsões humanas se transformariam
em coisa boa. Era a doutrina misteriosa de que o egoísmo pode chegar ao mesmo
resultado que a generosidade."5
O que mais irritava Chesterton em Burke
não eram tanto as suas escolhas, mas as suas razões. Baseadas num ateísmo
prático, embora o seu autor não fosse um ateu convicto. Robespierre que era
deísta defendeu uma doutrina teísta, a igualdade dos homens perante a lei;
Burke que era teísta defendeu uma doutrina ateísta, a de que os homens tinham
direitos consignados na lei pela força da herança.6 Burke escolheu
Montesquieu sobre Tomás de Aquino. Ou melhor, David Hume: “o útil move a nossa concordância”.
Diz Burke: “Na famosa lei... A Petição dos Direitos, o Parlamento
declara ao rei, "Os teus súbditos herdaram esta liberdade",
reconhecendo os seus direitos baseados não em princípios abstratos como "os
direitos do homem", mas nos direitos dos Ingleses, como um património
herdado dos seus antepassados.”
Portanto os direitos que vêm por
herança, são os direitos dos senhores face ao rei, não são os direitos de todos
os homens, “uma abstracção”. Burke era um aristocrata e a sua democracia era
uma oligarquia onde o povo não tinha lugar. Ele não achava que os direitos do
homem fossem uma coisa natural, mas uma convenção. Por isso Chesterton o
apelidava de inimigo da democracia e “ateu funcional”. Ele faz parte do grupo
de pessoas que acredita que a esperança de uma sociedade reside nas suas elites
contra aquele grupo de pessoas que acredita que a desgraça de uma sociedade
reside nas suas elites.
Na verdade, Burke defende uma História
sem saltos, sem convulsões. Uma defesa permanente dos direitos adquiridos pelos
ingleses na Magna Carta. Burke era
irlandês. Os católicos ingleses desapossados dos seus haveres e da sua vida
também tinham os seus direitos consignados na Magna Carta. A Revolução
Gloriosa consistiu na covarde deserção do comandante em chefe das forças
armadas britânicas, John Churchill, a favor dos holandeses, abandonando o rei
legítimo de Inglaterra. A Revolução
Gloriosa não foi uma restauração da ordem correta, como dizia Burke, foi o
fim da dinastia Stuart e dos católicos em Inglaterra, numa luta fraticida que
vinha desde Henrique VIII. A dinastia dos Stuart foi a última barreira contra a
plutocracia na Inglaterra, uma forma de poder essencialmente ligada a uma elite
e a uma Igreja indissociável do Estado.
Burke defendia a aristocracia
imobiliária e comercial britânica representada pelo Parlamento. Por isso
defendeu a Revolução Gloriosa e não
emitiu uma palavra contra Cromwell. Por isso jurou contra a transubstanciação e
fez o voto de supremacia que negou a tantos católicos um emprego e a
tantos outros a vida, como a Thomas More. Burke afirmou muitas coisas certas,
mas dificilmente escapa à crítica de Marx de que sempre se vendeu no melhor mercado – o partido whig era a aristocracia e o puritanismo. A restrição à posse da terra para católicos, após a vitória de Guilherme III na Irlanda, em 1690, foi desastrosa para a nação irlandesa, que sobrevivia de uma economia agrária.13
As suas relações com a Companhia das
Índias levaram-no a perseguir um homem respeitador dos costumes e tradições
indianas, Warren Hastings, substituindo-o pelos típicos evangélicos
protestantes que com a sua arrogância e exploração conduziram a Índia aos
primeiros motins de 1857.
Para Chesterton, a Revolução Gloriosa encerrou o que tinha sido iniciado por Henrique
VIII e continuado por Cromwell: “A revolução dos ricos contra os pobres.”7
Diz Chesterton: “O seu argumento é o de
que nós temos alguma protecção pelo acaso natural e pelo nascimento. E como nos
atrevemos a discordar, defendendo o mesmo para todos os homens como se fossemos
imagens de Deus (imago Dei de São
Tomás)? (…) Então, muitos anos antes de Darwin dar a sua machadada na
democracia, o essencial do argumento darwiniano estava a ser usado contra a
Revolução Francesa. O homem deve adaptar-se a tudo, como um animal; não pode
modificar tudo, como um anjo.” "O último grito do optimismo e deísmo do século dezoito veio pela voz de Stern: Deus regula o vento para o cordeiro tosquiado. E Burke, o evolucionista, responde: Não, Deus regula o cordeiro tosquiado para o vento. É o cordeiro que tem que se adaptar, ou seja, morre ou transforma-se numa espécie peculiar de cordeiro que gosta de permanecer numa corrente de ar."
O mundo de Burke compreende o escravo
confinado à sua pocilga e o aristocrata snob
e nada pode alterar este processo evolutivo. O processo gradual é assim melhor
que um processo abrupto; um relativismo gradual melhor que um relativismo
radical. Ambos numa cosmovisão destituída do divino. É um iluminismo.
Chesterton crê que os ingleses como
Burke ao acreditarem no processo, crêem que o passado passou, ao passo que os
franceses capazes de romper com o passado podem voltar a restaurar o passado,
se o acharem por conveniente: “Aqueles que tudo derrubaram podem tudo voltar a
recolocar, mas aqueles que tudo incorporaram, nada poderão restaurar.”
“O ponto mais importante de uma
revolução é o de que ela é a única estrada para qualquer coisa – até para a
restauração. A revolução não pode ser apenas uma revolta dos vivos, também tem
que ser uma ressurreição dos mortos.”8
Não basta deixar as coisas como estão;
é necessário agir sobre elas. Porque a mutabilidade, a entropia, faz parte da
natureza do mundo e do homem. A política não é mera preservação para
salvaguardar a evolução. A videira necessita ser podada: o revolucionário corta
as cepas; o conservador recusa podar as videiras. Um provoca uma morte rápida, o
outro, uma morte lenta. Chesterton outra vez: “Uma vigilância extrema é
necessária por parte do cidadão devido à enorme rapidez com que as instituições
humanas envelhecem.”
É necessário um terceiro lado para
fazer um triângulo. A nossa alternativa não é a morte rápida ou a morte lenta,
mas num mundo sem Deus como o nosso, a restauração e ressurreição só poderão
sobrevir com o regresso da fé.
Na perspectiva da videira, será melhor
viver sem ser podada, definhando, do que ser cortada pela raiz. Mas esse lento
definhar não poderá ocultar-nos o verdadeiro caminho, o terceiro lado do triângulo,
o equilíbrio.
“E queda-se ténue mesmo a meio
A ponte nomeada Ambos-e-Nenhum
(…)
Onde as coisas não são o que parecem,
Mas o que significam”.9
“Penso ser legítimo afirmar que o
comunismo, o nacional socialismo, o capitalismo e a democracia liberal, são na
verdade três formas de uma mesma coisa, que elas se movem em caminhos separados
mas com o mesmo destino final, i.e., a mecanização da vida humana e a completa
subordinação do indivíduo ao Estado e/ou ao processo económico.
Evidentemente que não estou a afirmar
que são completamente equivalentes, de que não temos o direito de preferir um
em detrimento do outro. No entanto, creio que um cristão não os pode conceber
como a solução derradeira do problema da civilização, ou mesmo como a solução
possível.
A cristandade ergue-se contra qualquer sistema
social que reclama a completude do homem e que se propõe como a finalidade
última da acção do homem, uma vez que afirma com desassombro que a essência da
natureza humana ultrapassa qualquer sistema económico ou político. A civilização
é a Estrada pela qual o homem caminha, não a casa em que ele habita. A sua
verdadeira cidade situa-se noutro lugar.”2
Diz Chesterton: “Nos clubes de
pensadores é tido como sensato que avançar com o argumento convencional é sinal
de inteligência e sanidade. Pelo contrário, é tido como sinal de lirismo
avançar com uma opinião própria. Esta filosofia assenta no princípio de
Euclides de que dois lados de uma questão são sempre superiores ao terceiro
lado. Mas existe sempre um terceiro lado. Dois lados não definem um espaço.”10
“Os sábios peneiram a razão por um
crivo estreito que retém a areia e perde o ouro.”11
António Campos
REFERÊNCIAS:
1 – João Pereira Coutinho, Conservadorismo. Dom
Quixote, 2014.
2 - Christopher Dawson, Religion and the Modern State.
Sheed & Ward, 1935.
3 – Chesterton, Illustrated London News, Dezembro de
1907.
4 – G. Reale – D. Antiseri, História da
Filosofia, vol. 4, Paulus, 2007.
5 – Chesterton, The Outline of Sanity.
6 - Chesterton, Os Disparates do Mundo,
cap. O Império do Insecto.
7 – Chesterton, A Short History of England.
8 – Chesterton, A Miscellany of Men.
9 – Chesterton, Ubbi Ecclesia.
13 -
10 – Chesterton, Illustrated London News, Two Sides of a Question, Junho de 1911.
11 – Chesterton, The Convert. 12 - Jaime Nogueira Pinto. Ideologia de Razão e Estado. Civilização, 2013.
14 – Norman Davies, The Isles: A History (London: Macmillan,1999), pág. 629.
Confesso que só entendi o sentido das
procissões quando me explicaram que eram uma alegoria da
vida: uma viagem em
que, como “o ferro com o ferro se aguça, o homem afina-se ao contacto com
outros”, Prov. 27, 17-18. Ler A Nova
Jerusalém é uma viagem pelo ambiente da Palestina mas também pelo ambiente do
homem. É um sair de casa para entender a nossa casa. É olhar a nossa casa como
se a víssemos pela primeira vez. Este sempre foi o método de Chesterton, “para
entrar no reino é necessário nascer de novo”. O livro é, pois, uma viagem. Uma
viagem à Palestina, uma viagem ao ocidente e à cristandade, uma viagem pela
alma humana. Pleno de sentidos literais e alegóricos sobrepostos, como a
Bíblia, sobretudo se considerarmos o livro de Job e os quatro evangelistas.
Uma ideia interessante exposta no livro
é a de que a Nova Jerusalém, a nova polis,
é a Cristandade e que a cristandade se move num mar de coisas recorrentes, de
ideias ou ambientes de época que aparecem como novas, mas que são antigas;
recorrem no tempo. Então a recorrência no tempo, é a marca das coisas eternas, boas
ou más.
“Tomei consciência disso quando me
dirigia à Gare de Lyon e, caminhando por uma série de esplanadas, visualizei no
final da rua uma coluna ao fundo, encimada por uma figura dançante: a Liberdade
que dançava sobre a queda da Bastilha.”
(…)
“À medida que olhava para essa deusa
esculpida encimando a coluna clássica, a minha mente viajou para outra época no
passado, e eu interrogava-me de onde e de que época, tinha vindo esse ideal
republicano de liberdade, democracia e igualdade. E a resposta aflorou
claramente na minha mente: o lugar de onde tinha vindo era o mesmo lugar para
onde eu agora me dirigia, Roma. Foi quando cheguei a Roma que constatei a
realidade simples que simplificou tudo. Eu não conheço nada que cause mais
estupefação do que essa súbita verticalidade, como ruas escalando o céu, onde
se situa, revestido de telhas, de tijolos e de pedra, essa pequena pedra que
cresceu e encobriu toda a terra: o Capitólio.”
Chesterton continua o argumento
defendendo que a revolução francesa (e antes a americana) se fez no sentido de
um neoclassicismo.
“Aqui, na penumbra cinzenta da nossa
história, situava-se a forte república que colocou o pé no pescoço de reis; e
foi seguramente daqui que o espírito da república voou como uma águia para
pousar nesse pilar distante da terra dos gauleses. Porque deve ser lembrado
(até por ser muito esquecido) que se Paris herdou o que se pode chamar a
autoridade de Roma, é igualmente verdade que Roma antecipou aquilo a que muitas
vezes se chama a anarquia de Paris.”
“Os cidadãos eram muitas vezes
rebeldes, mas existiam homens que não eram rebeldes, porque não eram cidadãos. O
mundo antigo forçava um grande número de pessoas a fazer o trabalho do mundo em
primeiro lugar, para permitir que um grupo mais restrito de uma elite
privilegiada lutasse pelo governo do mundo. Trata-se de uma verdade muito
simples; é a palavra escravatura, que não é o nome de um crime como a simonia 1,
mas antes de um esquema como o socialismo. Por vezes muito semelhante ao
socialismo.”
Mas este ressurgimento não foi completo,
porque após a revolução francesa se manteve a noção de liberdade do homem e a
escravatura não foi reinstituída. Chesterton atribui a responsabilidade ao que
aconteceu no interregno: “O que é que fez a diferença? O que é que aconteceu
entre a ascensão do Império Romano e a ascensão da República Francesa? Porque é
que os cidadãos em igualdade da primeira república achavam natural existirem
escravos enquanto que os cidadãos em igualdade da segunda não admitiam que
houvesse escravos?”
Foi o cristianismo que trouxe o
singular valor da dignidade da pessoa humana como filho de Deus. Cristo veio
matar o paganismo da Antiguidade e terminar com a escravatura. Também aqui
existe uma metáfora ou melhor, uma alegoria. Terminou não apenas com a
escravatura propriamente dita, mas também com a escravatura do pecado.
“Porque na primeira república existia
uma igualdade entre cidadãos e na segunda a igualdade era entre homens.”
Esta recorrência no sistema político
também é acompanhada por uma recorrência na esfera moral e religiosa:
“…nada se perdeu de forma tão clara nos
nossos ideais religiosos como o valor da tenacidade. Chama-se à moda progresso.
Cada nova moda é uma nova fé. Mas cada fé nova oferece tudo menos fidelidade.
Torna-se necessário insistir que as ideias mais altas e mais valiosas do mundo,
incluindo a cristandade, nunca teriam sobrevivido se não tivessem sobrevivido à
sua própria morte, mesmo no sentido de morte diária. O ideal sempre esteve fora
de moda desde o primeiro dia. É por isso que é eterno, pois o que tem uma época
está condenado.”
Numa fantástica viagem pela razão
humana, Chesterton vai demonstrar que a apostasia moderna, essa separação que a
mente humana fez de Deus, vai novamente lançar a alma humana no pecado e a
razão humana na irracionalidade. A emergência do paganismo fez-se após e por
meio do cepticismo:
“A palavra agnóstico deixou de ser um
eufemismo para ateu. Passou a ser uma palavra definidora de um estado mental,
que admite muitas possibilidades para além do ateísmo, não excluindo nenhuma do
politeísmo. Já não se trata de definir e depois negar um único poder central,
mas de lançar a mente num desnorte de novos poderes que se podem sobrepor e até
conflituar. A própria natureza deixou de ser natural.”
“A verdade é que por múltiplos canais
alguma coisa voltou à mente moderna. Não é cristão. Pelo contrário, será mais
correcto dizer que é o paganismo. Na realidade um tipo de paganismo muito
especial, uma vez que se trata do politeísmo. A palavra surpreenderá muita
gente, mas não as pessoas que conhecem melhor o mundo moderno. Quando eu uma
vez disse a um distinto professor de psicologia de Oxford que a minha visão do
universo não era igual à sua, ele replicou:
- Porquê universo? Porque não
multiverso?
A essência do politeísmo é a adoração
de deuses que não são Deus, i.e., que não são o autor e a autoridade última de
todas as coisas. Os homens começam a pensar de forma crescente que existem
múltiplas forças espirituais no universo, e os homens mais instruídos pensam
que umas são mais confiáveis do que outras. O espiritismo invoca algo menor que
o divino, de um mundo do qual não conhece nem a doutrina nem a posição. Tudo
isto degenerará numa profusão de cultos psíquicos, desde a reverência aos
poderes da natureza até ao uso de cristais e mascotes.”
(…)
“Eu não estou a brincar com o
trocadilho entre agnosticismo e ignorância. Pelo contrário, a ignorância é uma
coisa boa, porque pode ser criativa. E o que pode criar e dentro de pouco tempo
criará, é uma das artes perdidas do mundo: uma mitologia. Numa palavra, o mundo
moderno acabará exactamente onde a Bíblia se inicia.”
Chesterton envolve-nos então, em todo o
capítulo IX, um dos mais notáveis, A
Batalha com o Dragão, num outro tipo de argumento para iluminar a
recorrência: “Nós nunca chegamos à conclusão que a nossa religião está certa
como quando pensamos que ela está errada. Nós acabamos convencidos não pela
evidência de que estávamos à espera mas por aquela de que não estávamos à
espera.”
O argumento desenvolve como um conto de
fadas e com a mesma dimensão alegórica. Consideremos a história de São Jorge e
o Dragão: quantos estarão prontos a admitir que esta lenda tem um fundo de
verdade e que pode ter havido em algum lugar um cavaleiro valente que figurasse
a lendária figura de São Jorge? E quantos estãrão dispostos a admitir que o que
ele matou era mesmo um dragão, daqueles que deitam fogo como o do filme do
Hobbit?
Agora suponhamos que nós vamos para o
local onde supostamente viveu o cavaleiro, em busca de indícios da sua
existência, e o que encontramos são as descomunais ossadas do dragão e vestígios
de que ele era mesmo um dragão autêntico!
É uma imagem que ilustra que por vezes é
o dragão, e não o cavaleiro, que nos prova a existência de Deus e a insanidade
do mundo. Chesterton usa para a sua imagem uma controvérsia que existiu em Inglaterra
entre o primeiro-ministro Gladstone (1809-1898) e o biólogo darwinista ateu T.
Huxley (1825-1895), sobre a passagem em que Jesus Cristo expulsou os demónios
do gadareno para uma vara de porcos (Mc 5). Huxley representava o cepticismo e
Glastone a ortodoxia da Escritura. Gladstone com o pior argumento veria o tempo
conferir a sua validade; pelo contrário, o melhor argumento de Huxley viria a
revelar-se falso. Huxley considerava que o futuro se encarregaria de depurar o
ideal cristão, que considerava sublime, da demonologia cristã que considerava
ridícula. Gladstone afirmava que no futuro os homens se iriam tentar libertar
da moral cristã mas que uma forma de demonologia persistiria.
Na geração seguinte o escritor George
Moore (1852-1933) representaria o espírito
da época e desdenharia daquilo que Huxley considerara respeitável e
enalteceria o que Huxley afirmara ridículo. Huxley declarara indestrutível a
passagem de Miqueias “E Ele te declarou,
ó homem, o que é bom”(Miq 6, 8)
e perguntara com desdém, se alguém se lembraria de dizer que a justiça não tem
valor ou que não é de admirar a misericórdia.
“E, no entanto George Moore, talvez
antecipando Nietzsche em as rochas
imersas na cave de Zarathustra, disse, se bem me lembro, que Cromwell deveria
ser admirado pela sua injustiça. Ele deixou implícito que Cristo deveria ser
censurado não por ter destruído os porcos mas por ter curado os doentes. Em
suma, ele considerava a justiça inútil e a misericórdia desprezível.”
"O mundo estava a desdenhar da moralidade
que Huxley afirmara que perduraria e estava a fazer reviver o misticismo que
ele afirmara que desapareceria. Houve um regresso ao misticismo pagão, com as
suas luas, os seus crepúsculos, os seus talismãs e feitiços. O misticismo
regressou e trouxe os seus sete demónios piores do que ele.”
E Chesterton aponta o espiritismo
introduzido em Inglaterra pela mão de Moore, Yeats, Sir William Crookes e Sir
Arthur Conan Doyle: “Penso ser mais fácil imaginar um espírito maligno a agitar
as pernas de um porco do que um espírito bom a mexer as pernas de uma mesa.”
O processo de chegada a este misticismo
não foi teológico, mas sim psicológico, com a dissolução da personalidade.
“Se o dogma do inconsciente deriva do
agnosticismo, então o agnosticismo deve funcionar nos dois sentidos. O homem
não pode dizer que tem uma parte da qual não tem consciência e ao mesmo tempo
dizer que tem absoluta consciência de que não tem contacto com o desconhecido.
Ele não pode afirmar que existe uma
cave selada na sua casa da qual tudo desconhece, enquanto que afirma ter a
certeza absoluta de que essa cave não possui uma passagem secreta para outro
lugar. Ele não pode dizer que uma coisa é impossível se ele se confessar não
apenas ignorante mas também inconsciente.”
Ou seja, só se pode falar de cosmos e
de investigação supondo uma consciência integrada e com nexo, racional e não
irracional.
“Se nós lidamos com quantidades
desconhecidas nunca estaremos em condição de negar qualquer conexão com outras
quantidades desconhecidas. Se eu tenho um “eu” do qual nada posso dizer, como
poderei dizer sequer que ele é o meu “eu”? Como poderei dizer que sempre o tive
e que não veio de qualquer outro lugar?”
O sobrenatural saudável foi substituído
pelo pagão. O milagre que cura pelo acontecimento sobrenatural.
“Isto ainda se torna mais claro se
sairmos da esfera da ciência para a sua penumbra na literatura. Existe uma
conversa da moda de que se pode afirmar que o que perdemos não foram os demónios
mas o poder de os exorcizar. Combina o oculto com o obsceno; a insanidade do materialismo
com a insanidade do espiritualismo. Na história do gadareno aceitámos tudo
excepto o Redentor, ficámos com os demónios e os porcos. Por outras palavras,
não encontrámos São Jorge; encontrámos o Dragão.”
Em vez da moral crista ter sobrevivido
na forma de uma moral humanista, a demonologia cristã sobreviveu na forma de
uma feitiçaria. Seguimos a curiosidade de Huxley, “seguimos a razão até onde
ela nos levasse” e a razão levou-nos a coisas que os racionalistas deveriam
considerar bastante irracionais. A ciência supostamente deveria obrigar-nos a
ser racionais, mas parece que agora nos obriga a ser irracionais.”
“Se um homem ignora o seu outro “eu”
como poderá afirmar que o seu outro “eu” é ignorante? Ele já não pode afirmar
orgulhosamente que ao menos ele sabe que nada sabe. Porque isso é exactamente o
que ele não sabe. O chão na sua mente caiu e o abismo que se abriu pode conter
certezas inconscientes bem como dúvidas inconscientes. Ele é demasiado
ignorante mesmo para ignorar; e ele deve reconhecer ser agnóstico quanto à
questão de ser ou não agnóstico.”
O dragão não só existe como foi para a
irracionalidade que nos conduziu. Resta a questão do São Jorge: teremos
indícios da existência desse São Jorge, desse cavaleiro, diria mesmo, desse
cavalheiro que derrota o dragão?
Chesterton lembra que de todas as
tribos da Antiguidade apenas uma encontrou Deus, produziu um profeta que foi o
único profeta que afirmava ser Deus; por isso a velha religião matou o profeta
e, em consequência, o profeta matou a velha religião. O facto de que ele não
era apenas um profeta não é testemunhado apenas pelos que nele acreditam, mas
também pelos que não acreditam. Porque ele não está morto nem quando é negado.
“Que sentido tem um moderno dizer que
Cristo é como Áttis 2 ou como Mitras 3, quando logo a
seguir está censurar a cristandade por não seguir Jesus Cristo? Curiosamente
nunca se refere ao nosso culto pouco mitraico mas sim ao nosso culto pouco
cristão. Não se encontram bolchevistas que se auto-denominem socialistas
mitraicos, como muitos se dizem cristãos socialistas. Ao rejeitar a ortodoxia e
mesmo a sanidade, as próprias insanidades e heresias do nosso tempo provam que
dois mil anos depois o assunto continua vivo e que o nome é um nome a
esconjurar. Deixemos que os críticos o esconjurem com outro nome. Em nenhum dos
modernos clubes de pensadores se consegue motivar um místico com o nome de
Mitras como se motiva um materialista com o nome de Jesus. Até há homens que
negam a Deus mas aceitam a Cristo.”
Cristo é muitas vezes tomado como
socialista ou pacifista. Chesterton afirma que alguém que leia um Evangelho, de
fio a pavio, de forma despreconceituosa e honesta, se decide prontamente se
Cristo é um mito ou é um homem.
“O exorcista eleva-se acima do poeta e
mesmo do profeta; a história entre Canaã e o Calvário consiste numa longa guerra
com demónios. Ele entendeu melhor que cem poetas a beleza das flores do campo
de batalha (os lírios do campo, Mt 6,
28-31); mas ele meteu-se à batalha. E se as suas palavras têm algum
significado, elas significam que existe mesmo ao nível dos nossos pés um abismo
escondido entre as flores, um mal insondável.”
“E é aqui que a tradição nos adverte
quanto ao perigo da imaginação perversa do homem: o nascimento monstruoso e a
morte das coisas abomináveis. Falo disto sem qualquer forma de orgulho. Essas
coisas são hediondas, não por serem remotas mas por serem próximas. Nos nossos
cérebros, seguramente no meu, existem coisas enterradas tão más como aquelas
enterradas no Mar Morto 4, e se Ele não tivesse vindo para as
combater, mesmo nos recônditos sombrios da mente humana, então eu desconheceria
para que veio. Seguramente que Ele não veio apenas para falar de flores ou de
socialismo. Quanto mais compreendermos a vida como um conto de fadas, tanto
mais o conto se resume a uma Guerra contra o Dragão que está a devastar a terra
encantada. Tal como muitos afirmaram querer o drama de Hamlet sem o príncipe da
Dinamarca, também eles quereriam o drama do inferno sem o príncipe das trevas. Não
adiantarei mais sobre o assunto, excepto que a mensagem do Evangelho se resume a
uma única questão.”
António Campos
Referências:
1 – Embora a simonia seja um crime
teológico relacionado com a Igreja Católica, como apontado por Dante na Divina Comédia, que apontou o Papa
Nicolau III no oitavo inferno de cabeça para baixo com as solas dos sapatos a
arder, as igrejas cristãs mais dependentes do Rei ou do Estado, a Igreja de
Inglaterra e a Igreja Ortodoxa, são actualmente muito mais sujeitas a este
erro.
4 – O Mar Morto com alta densidade e
teor de sal é tido como o local das desaparecidas cidades de Sodoma e de
Gomorra.
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Outro problema analisado por Chesterton
é o problema da iconoclastia: o
grito iconoclasta do Islão representa essa recusa do deserto a todas aquelas
faces odiosas do politeísmo oriental, tal como a iconoclastia de Israel
representa a resistência do monoteísmo à contaminação. Já outra coisa se poderá
dizer da persistência da iconoclastia no ocidente. A Reforma retirou Cristo da
cruz com a justificação de que como tinha ressuscitado, Ele já não se
encontrava lá. Pelo contrário a Igreja sempre persistiu em apresentar o
crucifixo com Cristo, não só porque Deus sofre continuamente com os nossos
pecados, no sentido em que sofre com quem sofre, mas também porque a sua
posição na cruz não pode ser ocupada por qualquer ideal. Cristo é o holocausto
perpétuo, como diz Daniel, não apenas um homem que foi crucificado pelos
romanos como tantos outros. Do seio da Reforma surgiram prontamente ideais que
ocuparam o lugar de Cristo na cruz: a liberdade e o proletariado.
“Um estrangeiro que visite a Inglaterra
poderá afirmar que os nossos heróis nacionais, sobretudo os navais, são
completamente negligenciados e deixados nas mãos da escória da plebe. Os
retratos de Benbow e Nelson, quando exibidos em público em muitas barracas de
feira, foram pintados em madeira pelos artistas mais amadores e incompetentes. O
que ele não entende é que o sinal de Nelson pode ser pendurado alto em qualquer
lugar, porque a reputação de Nelson é alta em todo o lado; então o seu mau
retrato apenas assinala o seu bom nome. Pelo menos deveríamos desejar que as
coisas profanas se transfigurassem pelo sagrado e não que as sagradas se
profanassem pelo profano.”
Um outro assunto tratado são as
simplificações: pensar que os judeus, muçulmanos ou cristãos pensam todos do
mesmo modo e que atacar uma parte significa não gostar do todo:
“Existem muçulmanos que são
modernistas; sempre existiu uma classe dirigente de judeus que são
materialistas. Pode mesmo dizer-se que muitos judeus tendem a ser
materialistas, mas todos tendem a ser monistas, no sentido melhor sendo
monoteístas no sentido pior sendo materialistas.
A minha simpatia vai, confesso, para a
impotente e invisível maioria. A minha simpatia vai para com os pobres judeus
que acreditam no judaísmo tal como para com os maometanos que acreditam no
maometanismo, já para não falar dessa multidão difusa de cristãos que acredita
no cristianismo. Sinto-me mais ligado moralmente, e mesmo intelectualmente, a
essas pessoas e mesmo à religião dessas pessoas do que às arrogantes e
desdenhosas negações que constituem o núcleo daquilo a que se chamou o
iluminismo.”
“O sionismo, como sempre o entendi e
sempre defendi, consiste que seria melhor para todos os lados que Israel
tivesse a dignidade e a responsabilidade de ter uma nação independente; e que
isto deveria ser efectuado o mais rapidamente possível conferindo uma terra ao
povo judeu, de preferência a Palestina.”