sábado, 1 de fevereiro de 2014

Fiódor Dostoiévski (1821-1881)



Hoje, 22 de Dezembro, levaram-nos até à praça Semionovskaya, onde nos leram a todos a sentença de morte, nos permitiram beijar a cruz e nos enfiaram as camisas brancas
para irmos ao encontro da morte. Amarraram os três primeiros ao poste e executaram-nos. Executavam três a três, eu era o sexto; tinha um minuto de vida. Ouviu-se um toque militar de retirada e comunicaram-nos que Sua Majestade Imperial nos concedia a vida.

Acusado de atentar contra a segurança do Estado, Dostoiévski foi privado do seu título de nobre, da sua graduação militar (tenente) e dos seus direitos civis. Cumpriu a sua condenação em Omsk, no presídio militar, entre Janeiro de 1850 e Fevereiro de 1854. Serviria como soldado raso na Sibéria até 1859. Em 1860 publicaria Memórias da Casa dos Mortos:

“Vivíamos amontoados todos numa barraca. No Verão havia uma intolerável proximidade; no Inverno um frio insuportável. A sujidade, no chão de madeira podre, tinha cerca de três centímetros de altura, fazendo-nos escorregar e cair. Pulgas, percevejos e baratas pululavam; estavam no seu meio. As janelas tinham três centímetros de espessura de gelo. Do tecto, goteiras e correntes de ar. Dormíamos sobre tábuas nuas e estendíamos sobre nós os sobretudos de pele de ovelha que deixavam os pés destapados. Passávamos a noite toda a tiritar”.

Na prisão de Omsk, uma dúzia de prisioneiros pertenciam à nobreza; os restantes, rudes e agrestes, tinham-lhes um ódio infinito:
“Receberam-nos com hostilidade e alegravam-se com a nossa desgraça. Eram cento e cinquenta inimigos que nunca se cansavam de nos atormentar. Era inimaginável a miséria de todo o primeiro ano na prisão. A contínua aversão com que me tratavam, por eu ser fidalgo, envenenou toda a minha vida”.

Um dia, deitado naquele chão infecto, Dostoiévski lembrou-se de um episódio da sua infância: tinha nove anos e ouviu um grito de alerta de um lobo a rondar o bosque. Desatou a correr para fora do bosque, em direcção a um rude camponês que estava a lavrar para o seu pai. Marey interrompeu o seu trabalho, sorriu para a criança atemorizada e trémula e, como uma mãe, fez sobre ela o sinal da cruz. Assegurou-lhe que não existia lobo nenhum, que fosse para casa descansado e que a partir dali nunca o perderia de vista.

Esta recordação, “foi Deus quem contemplou lá do alto a ternura delicada, quase feminina de um rude camponês, profundamente ignorante, que não poderia ter olhado para mim com mais amor, ainda que eu fosse seu filho único”, originou uma mudança radical na sua atitude para com os colegas de prisão:
“Levantei-me do soalho e vi aqueles desgraçados com um olhar radicalmente diferente. Todo o ódio e todo o rancor se desvaneceram do meu coração”.

Descobriu que a maioria dos camponeses era muito melhor do que ele suspeitava:
“Era gratificante descobrir o ouro por baixo da dura cerviz. Alguns deles eram fantásticos. A um moço condenado por assaltar nos caminhos, ensinei-lhe a ler e a escrever; encheu-me de agradecimentos. Outro chorava ao despedir-se de mim; costumava dar-lhe umas moedas…uma ninharia”.


Impressionou-o particularmente o impacto do Natal, quer nos presos quer na população civil:
“Muito poucos se embebedavam e todos se comportavam com seriedade. Os presos sentem que pela observância do Natal estão em contacto com o género humano e com o resto do mundo. Não havia na cidade uma única mãe de família que não enviasse alguma coisa que tivesse preparado, como saudação natalícia”.

Pouco depois de ter entrado para a prisão, uma menina dos seus dez anos aproximou-se e colocou-lhe uma moeda na mão:
- Toma este Kopeck em nome de Cristo!

Dostoievski guardou a moeda como um tesouro durante muitos anos. De futuro opor-se-á a todos os que tentam substituir a caridade cristã por uma mera ética. Experimentou o cristianismo em circunstâncias que teriam suprimido qualquer moral:
“Antes de entrar na prisão, umas mulheres aproximaram-se, benzeram-se e entregaram-nos o Novo Testamento, o único livro permitido na prisão. Mantive-o debaixo da almofada nos meus quatro anos de trabalhos forçados. Com ele ensinei a ler um prisioneiro”.

A partir desta experiência, nunca mais entenderá Cristo como um conhecimento teórico ou uma ideia sublime. Cristo seria a pessoa mais bela, razoável, profunda, compreensiva, viril e perfeita – nada há de melhor, nem pode haver! Dostoievski morrerá com 60 anos, mas terá vivido séculos de tormento: “Deus açoitou-me toda a vida!”, dirá Kirilov.


Tolstoi vive na órbita de Schopenhauer, quer atingir o nada, o niilismo, a não violência, a paz totalitária, o sincretismo religioso: “Sinto que não posso viver, já não possuo desejos, a vida é absurda”. “A base do mal é a propriedade”, indica o latifundiário burguês Tolstoi, que viria a tornar-se o ícone da juventude. “A base do mal é a morte, mesmo a de animais", afirma o vegetariano Tolstoi. A base do mal é o prazer, pelo que devemos procurar o asceticismo: “aquele que fita uma mulher, mesmo a própria esposa, já cometeu adultério”, indica o Tolstoi dos 13 filhos e das várias infecções venéreas. “No camponês, no mujique, está a verdadeira virtude”, indica o milionário novelista.

Tolstoi indica um caminho mas nunca é capaz de o seguir. “Os sentimentos da nossa sociedade resumem-se a três: o orgulho, a sensualidade e o cansaço de viver”. Tolstoi via-se ao espelho: por várias vezes pensou no suicídio, mas apenas Ana Karenina o executou. Apaixona-se por Rousseau, passa a trazer a sua fotografia num medalhão: “A solução para o problema individual não é bastante, ela deve servir toda a humanidade”. Tolstoi quer mudar o mundo, funda uma religião, mas aparta-se do homem. Tolstoi via o homem como um ser tão negativo, que chegou a defender a extinção total da humanidade pela prática do celibato universal.

Morre afogado no seu drama: “ Tanto dinheiro, luxo e celebridade. Para que me serviram? Quanto ao mal, à indigência à minha volta, nada pude fazer!”. Um dos maiores novelistas de sempre morre, em 1910, no drama de não se poder evadir de um conforto material que ele condena. Tudo na sua vida foi uma estranha mistura do estúpido e do sublime. 

Dostoiévski encontra o seu verdadeiro mundo no abismo do coração humano. As suas personagens, de carne e osso, vivem sempre a inquietação do espírito: tímidos, medrosos, humilhados, confusos, desassossegados…Permanentemente, perante o mistério, procuram a verdade, aos tropeções: “Quem sou? Que faço neste mundo? Que posso esperar de Deus?”- Dostoiévski transporta a angústia da criatura concreta perante o silêncio de Deus. O seu mundo situa-se no céu da religião, obcecado pelos problemas eternos. Dostoiévski não quer mudar o mundo, quer tentar compreender o caminho do ser humano.

“Preciso de Deus porque é o único ser a Quem sempre se pode amar”. Alioscha e Ivan Karamazov exprimem o pêndulo entre a fé e a incredulidade. Precisar de Deus e não o ver claramente, eis o suplício. Mas o Deus do silêncio também fala: fala pelo exemplo das pessoas santas, pela beleza da natureza e, sobretudo, pelas páginas bíblicas.

Quando Nietzsche nasce, o super-homem estava na moda. Kant tinha falado do homem numénico, o legislador supremo; Hegel tinha falado dos mais fortes que se deveriam impor pela força. Em 1865, tinha Nietzsche 21 anos, surge Rodian Raskolnikov: vive em Crime e Castigo desde então, decidido a provar à machadada a sua condição de super-homem. Quer provar que um homicídio é equivalente a um espirro ou a um passeio:

“O meu crime? Que crime? Será crime matar um parasita vil e nocivo? Tenho a consciência tranquila”.

Raskolnikov segue o caminho do seu criador e termina na prisão. A sobreposição autobiográfica não termina aqui. É também na prisão que mudará dramaticamente. Um dia tem um sonho em que uns estranhos micróbios provocam uma estranha forma de loucura: o infectado fica convencido que está na posse absoluta da verdade. A epidemia alastra e provoca discussões intermináveis, pois ninguém admite ceder. As relações sociais e familiares dissolvem-se e o mundo torna-se um manicómio. Os homens infectados têm raciocínios lógicos, mas subjectivos, que não guardam relação com a realidade das coisas.

- Que havemos de fazer com um super-homem mentalmente desequilibrado? Para além da moral e da consciência situa-se o abismo da loucura. Valerá a pena pagar pelo super-homem o preço de um psicopata? – questiona Dostoiévski.

Nietzsche responderia mais tarde à sua pergunta.

Mas, contrariamente a Nietzsche, Raskolnikov encontra a sua redenção. Na forma em que a maioria dos homens encontra a sua. Sónia tinha um passado duvidoso, mas um coração de ouro:

-Derramaste sangue!

Quando sente o seu amor por ela, percebe que ela tem toda a razão. Não existem argumentos, nem discussão, nem faz falta a lógica. Uma coisa tão natural como o amor corrige a razão e destrói as argumentações lógicas do super-homem. Rodian sabia que a toda a palavra, outra se lhe poderia opor; mas não encontrou palavras que se comparassem às de Sónia.

-Porque é que tu rezas? - pergunta-lhe. Ele pensou que Sónia o aborreceria falando-lhe continuamente nas escrituras.

- Cala-te! Que seria de mim sem Deus? Faz tudo por mim - responde Sónia, baixando o olhar. 
Sónia teve que se vender para suportar a sua vida miserável, mas a sua vitória não é intelectual, não é baseada em argumentos, mas na grandeza do seu coração. Era essa grandeza de coração que lhe permitia abandonar-se a si mesma e partilhar o destino dos outros. Foi essa mesma grandeza que fez com que Sónia nunca lhe tenha tocado nas escrituras. Ele mesmo lhe tinha pedido o livro, mas não o tinha aberto. Apenas pedira a Sónia que lhe lesse a passagem de Lázaro em que Cristo demonstra o seu poder sobre a morte. Mantinha o livro sob a almofada:

- Será possível que a crença dela seja também a minha? Poderei eu ter uma fé diferente da dela?

Deus ama e perdoa aquele que aceita o sofrimento da sua vida. Diz-lhe Sónia:

- Aceita o sofrimento. Tens que fazer isso para te salvares. Depois vem a mim que eu carregarei a tua cruz e então rezaremos e caminharemos juntos. 

Ippolit, de O Idiota; e Kirilov, de Os Demónios, justificam o suicídio, porque “o homem é o senhor do próprio destino”. Suprimido Deus, o homem torna-se o único senhor do seu destino, a última instância de apelo. Sem a convicção na imortalidade da alma, o vínculo do homem em relação à vida diminui, e a perda do vínculo e do sentido último da vida conduz inevitavelmente ao suicídio. Estes comandantes da nova era trouxeram a noite sobre a Rússia mas também a sede pelo seu Deus. 
A imortalidade, ao prometer a vida eterna, sujeita o homem mais fortemente à Terra. Se a crença na imortalidade da alma é tão necessária à vida humana, é porque ela espelha a própria natureza do ser humano, provando que a imortalidade existe. Nesta crença reside a própria vida e a primeira fonte de verdade e de consciência geral para a humanidade. 

Um Deus que perdoa os seus filhos é um Deus que transborda de alegria. Dostoievski e os seus personagens não só estão convencidos disso, como se emocionam com isso:

- Entrai também vós bêbados. Entrai vós os de carácter fraco e dissoluto. – dirá. Sois uns brutos e levais a marca da besta, mas vinde a Mim.

Então os sábios e os prudentes perguntarão porque os acolhe.

- Acolho-os porque nenhum deles se julgava digno desta honra.

- Então abrirá os braços para nos acolher e nós lançar-nos-emos neles a chorar.

Dostoiévski foi um dos autores mais rotulados. Tudo lhe assenta: ateu, agnóstico, um dos fundadores do existencialismo. Talvez seja mais sensato ouvir as palavras do próprio Dostoiévski do que ouvir aquilo que os entendidos dizem que ele disse:

“Os ignorantes troçaram do obscurantismo e do carácter retrógrado da minha fé. Mas esses imbecis nem sequer concebem uma negação de Deus tão forte como a que eu manifesto no romance (Os Irmãos Karamazov). Em toda a Europa não se encontra uma expressão tão forte de ateísmo. Portanto, eu não creio em Jesus Cristo como uma criança. Foi pela prova da dúvida que consegui o meu hossana.”

Nicolai Berdyaev (1874-1948) diria, em Solidão e Sociedade, “a filosofia…é a percepção criativa, pelo espírito, do real significado da existência humana”.



António Campos

Bibliografia:
1 - Berdiaeff, Nikolai. O Espírito de Dostoiévski. Editora Panamericana Lda, Rio de Janeiro, 1926.
2 - Queiroz M: Leon Tolstoi (1828-1910): Oitenta vidas que a morte não apaga. Ed. O Público, 1997.
3 - http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/7752/4951
4 - José Ramón Ayllón. Dez Ateus que Mudaram de Autocarro. Ed. Gráfica de Coimbra, 2010.
5 – Thomas H, Thomas D L: Fyodor Dostoyevsky, Living Biographies of Famous Novelists. Arden Library,1982.
6 - http://en.wikipedia.org/wiki/Fyodor_Dostoyevsky
7 - O Sentido da História. Höderlin, Dostoievski e Nietzsche. www.erealizacoes.com.br/renegirard


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