Hoje,
22 de Dezembro, levaram-nos até à praça Semionovskaya, onde nos leram a todos a
sentença de morte, nos permitiram beijar a cruz e nos enfiaram as camisas
brancas
para irmos ao encontro da morte. Amarraram os três primeiros ao poste e
executaram-nos. Executavam três a três, eu era o sexto; tinha um minuto de
vida. Ouviu-se um toque militar de retirada e comunicaram-nos que Sua Majestade
Imperial nos concedia a vida.
Acusado de atentar contra a segurança
do Estado, Dostoiévski foi privado do seu título de nobre, da sua graduação
militar (tenente) e dos seus direitos civis. Cumpriu a sua condenação em Omsk,
no presídio militar, entre Janeiro de 1850 e Fevereiro de 1854. Serviria como
soldado raso na Sibéria até 1859. Em 1860 publicaria Memórias da Casa dos Mortos:
“Vivíamos amontoados todos numa
barraca. No Verão havia uma intolerável proximidade; no Inverno um frio
insuportável. A sujidade, no chão de madeira podre, tinha cerca de três
centímetros de altura, fazendo-nos escorregar e cair. Pulgas, percevejos e
baratas pululavam; estavam no seu meio. As janelas tinham três centímetros de
espessura de gelo. Do tecto, goteiras e correntes de ar. Dormíamos sobre tábuas
nuas e estendíamos sobre nós os sobretudos de pele de ovelha que deixavam os
pés destapados. Passávamos a noite toda a tiritar”.
Na prisão de Omsk, uma dúzia de prisioneiros
pertenciam à nobreza; os restantes, rudes e agrestes, tinham-lhes um ódio
infinito:
“Receberam-nos com hostilidade e
alegravam-se com a nossa desgraça. Eram cento e cinquenta inimigos que nunca se
cansavam de nos atormentar. Era inimaginável a miséria de todo o primeiro ano
na prisão. A contínua aversão com que me tratavam, por eu ser fidalgo, envenenou
toda a minha vida”.
Um dia, deitado naquele chão infecto, Dostoiévski
lembrou-se de um episódio da sua infância: tinha nove anos e ouviu um grito de
alerta de um lobo a rondar o bosque. Desatou a correr para fora do bosque, em
direcção a um rude camponês que estava a lavrar para o seu pai. Marey
interrompeu o seu trabalho, sorriu para a criança atemorizada e trémula e, como
uma mãe, fez sobre ela o sinal da cruz. Assegurou-lhe que não existia lobo
nenhum, que fosse para casa descansado e que a partir dali nunca o perderia de
vista.
Esta recordação, “foi Deus quem
contemplou lá do alto a ternura delicada, quase feminina de um rude camponês,
profundamente ignorante, que não poderia ter olhado para mim com mais amor,
ainda que eu fosse seu filho único”, originou uma mudança radical na sua
atitude para com os colegas de prisão:
“Levantei-me do soalho e vi aqueles
desgraçados com um olhar radicalmente diferente. Todo o ódio e todo o rancor se
desvaneceram do meu coração”.
Descobriu que a maioria dos camponeses
era muito melhor do que ele suspeitava:
“Era gratificante descobrir o ouro por
baixo da dura cerviz. Alguns deles eram fantásticos. A um moço condenado por
assaltar nos caminhos, ensinei-lhe a ler e a escrever; encheu-me de
agradecimentos. Outro chorava ao despedir-se de mim; costumava dar-lhe umas
moedas…uma ninharia”.
Impressionou-o particularmente o
impacto do Natal, quer nos presos quer na população civil:
“Muito poucos se embebedavam e todos se
comportavam com seriedade. Os presos sentem que pela observância do Natal estão
em contacto com o género humano e com o resto do mundo. Não havia na cidade uma
única mãe de família que não enviasse alguma coisa que tivesse preparado, como
saudação natalícia”.
Pouco depois de ter entrado para a
prisão, uma menina dos seus dez anos aproximou-se e colocou-lhe uma moeda na
mão:
- Toma este Kopeck em nome de Cristo!
Dostoievski guardou a moeda como um
tesouro durante muitos anos. De futuro opor-se-á a todos os que tentam
substituir a caridade cristã por uma mera ética. Experimentou o cristianismo em
circunstâncias que teriam suprimido qualquer moral:
“Antes de entrar na prisão, umas
mulheres aproximaram-se, benzeram-se e entregaram-nos o Novo Testamento, o
único livro permitido na prisão. Mantive-o debaixo da almofada nos meus quatro
anos de trabalhos forçados. Com ele ensinei a ler um prisioneiro”.
A partir desta experiência, nunca mais
entenderá Cristo como um conhecimento teórico ou uma ideia sublime. Cristo
seria a pessoa mais bela, razoável, profunda, compreensiva, viril e perfeita –
nada há de melhor, nem pode haver! Dostoievski morrerá com 60 anos, mas terá
vivido séculos de tormento: “Deus açoitou-me toda a vida!”, dirá Kirilov.
Tolstoi vive na órbita de Schopenhauer,
quer atingir o nada, o niilismo, a não violência, a paz totalitária, o
sincretismo religioso: “Sinto que não posso viver, já não possuo desejos, a
vida é absurda”. “A base do mal é a propriedade”, indica o latifundiário
burguês Tolstoi, que viria a tornar-se o ícone da juventude. “A base do mal é a
morte, mesmo a de animais", afirma o vegetariano Tolstoi. A base do mal é o
prazer, pelo que devemos procurar o asceticismo: “aquele que fita uma mulher,
mesmo a própria esposa, já cometeu adultério”, indica o Tolstoi dos 13 filhos e
das várias infecções venéreas. “No camponês, no mujique, está a verdadeira
virtude”, indica o milionário novelista.
Tolstoi indica um caminho mas nunca é
capaz de o seguir. “Os sentimentos da nossa sociedade resumem-se a três: o
orgulho, a sensualidade e o cansaço de viver”. Tolstoi via-se ao espelho: por
várias vezes pensou no suicídio, mas apenas Ana Karenina o executou.
Apaixona-se por Rousseau, passa a trazer a sua fotografia num medalhão: “A
solução para o problema individual não é bastante, ela deve servir toda a
humanidade”. Tolstoi quer mudar o mundo, funda uma religião, mas aparta-se do
homem. Tolstoi via o homem como um ser tão negativo, que chegou a defender a
extinção total da humanidade pela prática do celibato universal.
Morre afogado no seu drama: “ Tanto
dinheiro, luxo e celebridade. Para que me serviram? Quanto ao mal, à indigência
à minha volta, nada pude fazer!”. Um dos maiores novelistas de sempre morre,
em 1910, no drama de não se poder evadir de um conforto material que ele
condena. Tudo na sua vida foi uma estranha mistura do estúpido e do sublime.
Dostoiévski encontra o seu verdadeiro
mundo no abismo do coração humano. As suas personagens, de carne e osso, vivem
sempre a inquietação do espírito: tímidos, medrosos, humilhados, confusos, desassossegados…Permanentemente,
perante o mistério, procuram a verdade, aos tropeções: “Quem sou? Que faço
neste mundo? Que posso esperar de Deus?”- Dostoiévski transporta a angústia da
criatura concreta perante o silêncio de Deus. O seu mundo situa-se no céu da
religião, obcecado pelos problemas eternos. Dostoiévski não quer mudar o mundo,
quer tentar compreender o caminho do ser humano.
“Preciso de Deus porque é o único ser a
Quem sempre se pode amar”. Alioscha e Ivan Karamazov exprimem o pêndulo entre a
fé e a incredulidade. Precisar de Deus e não o ver claramente, eis o suplício.
Mas o Deus do silêncio também fala: fala pelo exemplo das pessoas santas, pela
beleza da natureza e, sobretudo, pelas páginas bíblicas.
Quando Nietzsche nasce, o super-homem
estava na moda. Kant tinha falado do homem numénico, o legislador supremo;
Hegel tinha falado dos mais fortes que se deveriam impor pela força. Em 1865,
tinha Nietzsche 21 anos, surge Rodian Raskolnikov: vive em Crime e Castigo desde então, decidido a provar à machadada a sua
condição de super-homem. Quer provar que um homicídio é equivalente a um
espirro ou a um passeio:
“O meu crime? Que crime? Será crime
matar um parasita vil e nocivo? Tenho a consciência tranquila”.
Raskolnikov segue o caminho do seu
criador e termina na prisão. A sobreposição autobiográfica não termina aqui. É
também na prisão que mudará dramaticamente. Um dia tem um sonho em que uns
estranhos micróbios provocam uma estranha forma de loucura: o infectado fica
convencido que está na posse absoluta da verdade. A epidemia alastra e provoca
discussões intermináveis, pois ninguém admite ceder. As relações sociais e
familiares dissolvem-se e o mundo torna-se um manicómio. Os homens infectados
têm raciocínios lógicos, mas subjectivos, que não guardam relação com a realidade
das coisas.
- Que havemos de fazer com um
super-homem mentalmente desequilibrado? Para além da moral e da consciência
situa-se o abismo da loucura. Valerá a pena pagar pelo super-homem o preço de
um psicopata? – questiona Dostoiévski.
Nietzsche responderia mais tarde à sua
pergunta.
Mas, contrariamente a Nietzsche,
Raskolnikov encontra a sua redenção. Na forma em que a maioria dos homens
encontra a sua. Sónia tinha um passado duvidoso, mas um coração de ouro:
-Derramaste sangue!
Quando sente o seu amor por ela,
percebe que ela tem toda a razão. Não existem argumentos, nem discussão, nem
faz falta a lógica. Uma coisa tão natural como o amor corrige a razão e destrói
as argumentações lógicas do super-homem. Rodian sabia que a toda a palavra,
outra se lhe poderia opor; mas não encontrou palavras que se comparassem às de
Sónia.
-Porque é que tu rezas? - pergunta-lhe.
Ele pensou que Sónia o aborreceria falando-lhe continuamente nas escrituras.
- Cala-te! Que seria de mim sem Deus?
Faz tudo por mim - responde Sónia, baixando o olhar.
Sónia teve que se vender para suportar a sua vida miserável, mas a sua vitória não é intelectual, não é baseada em argumentos, mas na grandeza do seu coração. Era essa grandeza de coração que lhe permitia abandonar-se a si mesma e partilhar o destino dos outros. Foi essa mesma grandeza que fez com que Sónia nunca lhe tenha tocado nas escrituras. Ele mesmo lhe tinha pedido o livro, mas não o tinha aberto. Apenas pedira a Sónia que lhe lesse a passagem de Lázaro em que Cristo demonstra o seu poder sobre a morte. Mantinha o livro sob a almofada:
Sónia teve que se vender para suportar a sua vida miserável, mas a sua vitória não é intelectual, não é baseada em argumentos, mas na grandeza do seu coração. Era essa grandeza de coração que lhe permitia abandonar-se a si mesma e partilhar o destino dos outros. Foi essa mesma grandeza que fez com que Sónia nunca lhe tenha tocado nas escrituras. Ele mesmo lhe tinha pedido o livro, mas não o tinha aberto. Apenas pedira a Sónia que lhe lesse a passagem de Lázaro em que Cristo demonstra o seu poder sobre a morte. Mantinha o livro sob a almofada:
- Será possível que a crença dela seja
também a minha? Poderei eu ter uma fé diferente da dela?
Deus ama e perdoa aquele que aceita o
sofrimento da sua vida. Diz-lhe Sónia:
- Aceita o sofrimento. Tens que fazer isso para te
salvares. Depois vem a mim que eu carregarei a tua cruz e então rezaremos e
caminharemos juntos.
Ippolit, de O
Idiota; e Kirilov, de Os Demónios,
justificam o suicídio, porque “o homem é o senhor do próprio destino”. Suprimido
Deus, o homem torna-se o único senhor do seu destino, a última instância de
apelo. Sem a convicção na imortalidade da alma, o vínculo do homem em relação à
vida diminui, e a perda do vínculo e do sentido último da vida conduz
inevitavelmente ao suicídio. Estes comandantes da nova era trouxeram a noite
sobre a Rússia mas também a sede pelo seu Deus.
A imortalidade, ao prometer a
vida eterna, sujeita o homem mais fortemente à Terra. Se a crença na
imortalidade da alma é tão necessária à vida humana, é porque ela espelha a
própria natureza do ser humano, provando que a imortalidade existe. Nesta
crença reside a própria vida e a primeira fonte de verdade e de consciência
geral para a humanidade.
Um Deus que perdoa os seus filhos é um
Deus que transborda de alegria. Dostoievski e os seus personagens não só estão
convencidos disso, como se emocionam com isso:
- Entrai também vós bêbados. Entrai vós
os de carácter fraco e dissoluto. – dirá. Sois uns brutos e levais a marca da
besta, mas vinde a Mim.
Então os sábios e os prudentes perguntarão
porque os acolhe.
- Acolho-os porque nenhum deles se
julgava digno desta honra.
- Então abrirá os braços para nos
acolher e nós lançar-nos-emos neles a chorar.
Dostoiévski foi um dos autores mais rotulados. Tudo
lhe assenta: ateu, agnóstico, um dos fundadores do existencialismo. Talvez seja
mais sensato ouvir as palavras do próprio Dostoiévski do que ouvir aquilo que
os entendidos dizem que ele disse:
“Os ignorantes troçaram do obscurantismo e do
carácter retrógrado da minha fé. Mas esses imbecis nem sequer concebem uma
negação de Deus tão forte como a que eu manifesto no romance (Os Irmãos Karamazov). Em toda a Europa
não se encontra uma expressão tão forte de ateísmo. Portanto, eu não creio em
Jesus Cristo como uma criança. Foi pela prova da dúvida que consegui o meu
hossana.”
Nicolai Berdyaev (1874-1948) diria, em Solidão e Sociedade, “a filosofia…é a
percepção criativa, pelo espírito, do real significado da existência humana”.
António Campos
Bibliografia:
1 - Berdiaeff, Nikolai. O Espírito de Dostoiévski.
Editora Panamericana Lda, Rio de Janeiro, 1926.
2 - Queiroz M: Leon Tolstoi (1828-1910): Oitenta
vidas que a morte não apaga. Ed. O Público, 1997.
3 - http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/7752/4951
4 - José Ramón Ayllón. Dez Ateus que Mudaram de
Autocarro. Ed. Gráfica de Coimbra, 2010.
5 – Thomas H,
Thomas D L: Fyodor Dostoyevsky, Living Biographies of Famous Novelists. Arden
Library,1982.
6 - http://en.wikipedia.org/wiki/Fyodor_Dostoyevsky
7 - O Sentido da História. Höderlin, Dostoievski e Nietzsche. www.erealizacoes.com.br/renegirard
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