sábado, 18 de janeiro de 2014

A Contribuição de Vittorio Messori




Vittorio Messori (1941- ), de Modena, licenciado em ciência política com uma tese sobre Risorgimento (Garibaldi, Mazzini & Co), é o autor católico mais traduzido em todo o
mundo. Conheci Messori em 1994 ao Atravessar o Limiar da Esperança com João Paulo II. Na altura não lhe liguei nada. Quem era aquele Zé-ninguém que apresentava o grande Papa com as palavras “Um telefonema”? Depois voltei a ignorá-lo quando ele entrevistava o grande cardeal Joseph Ratzinger em 1985, no excelente Diálogos Sobre a Fé que eu apenas leria no ano transacto. Foi então, mais recentemente, que me foi apresentado e recomendado por Jose Ramon Aillón. Agora já sei quem é Messori: “Que coisa te falta se tens uma biblioteca que dá para um pequeno jardim?” Descobri que Messori e eu temos algo em comum: o gosto por Cícero e a felicidade de possuir uma biblioteca que dá para um pequeno jardim.

Se o músico Narciso Yepes encontrou Deus enquanto estava a olhar a água do rio Sena, já o jornalista do La Stampa O encontrou ao ler o Evangelho. E porque foi este ateu ler o Evangelho?

Talvez a resposta evolua em duas fases, como um fenómeno ondulatório:


Por um lado, este estudante ateu, filho de pais ateus, apercebeu-se de que a política só responde às penúltimas perguntas, i.e., a política não responde ao enigma do mal, da dor, da origem do homem ou do seu destino, não responde à pergunta que o homem faz sobre si próprio: “É importante conhecer-me? Porque não me conheço, porque parece que não posso conhecer-me?”. Parece que, ainda ateu, já se encontrava assombrado por Pascal, cuja fotografia conserva na sua secretária: “Toda a angústia do homem provém de uma só coisa; não saber ficar sossegado no seu quarto”.

Por outro lado, Messori era um ávido leitor dos clássicos, em grego, incluindo Homero, os líricos e os trágicos gregos. No entanto, não sabia nada sobre um obscuro carpinteiro judeu que dividiu a história da Antiguidade em duas metades, antes e depois: “Ainda hoje me espanta como se podem fazer doutoramentos em História sem tocar no nome Daquele que a dividiu a meio!”.

Encontro Messori, no intervalo das minhas obrigações profissionais e académicas, entre o tempo que dedico aos meus três filhos menores e os intervalos de almoço que desde há muito me habituei a poupar, a que se somam os longos jejuns de televisão, numa divisão parcimoniosa de um bem escasso: o tempo.


- Senhor Messori, porquê essa necessidade de investigar o acontecimento Jesus Cristo?


- Como racionalista muito distante do assunto cristão, comecei a ficar intrigado com alguns factos que desafiam a razão: como pode um carpinteiro, oriundo de uma aldeia perdida, numa minúscula e remota província do Império Romano, alterar o curso da história sem ter pegado em armas; e como sobreviveu a sua influência até ao nosso tempo, depois de ter sido várias vezes tida como extinta? Também achei estranho que a sua influência originasse tanto ódio dentro do próprio mundo que vive sob o seu paradigma, sobretudo porque Ele enfatizava o amor caritativo; isso não acontece com outros líderes espirituais. E porque razão haveria o direito romano de ter condenado à morte um inocente, acusado pelos seus apenas por uma divergência religiosa? E, sobretudo, queria uma resposta à pergunta: Ele ressuscitou mesmo?


- O que sentiu um excelente estudante, ateu,  orientado na universidade por professores anti-clericais, com uma mãe que dizia que a Igreja é apenas um pub, quando abriu o Evangelho pela primeira vez?

- Foi uma coisa que ainda hoje me mantém atordoado. Apercebi-me logo que ali estava, não uma ideia, uma história ou um livro, mas sim uma pessoa. A esse mistério dediquei a minha vida!

- Como bom jornalista iniciou o estudo crítico do texto evangélico. Mas, porque o fez, qual a necessidade?

- Procurei trabalhar para mim, procurando não me enganar a mim próprio. Deus, se existe, não precisa das nossas mentiras. Nós temos o direito de ser informados e Jesus tem direito à verdade, não necessita ser preservado por detrás de uma hábil argumentação falaciosa. Será que o Evangelho é uma poesia oriental, folclore semita inventado pelo homem ou é a verdade?

- Lembro-me de ter lido que o senhor refere, creio que em A Hipótese sobre Jesus, de 1977, que ninguém sabe o que existiu antes do seu nascimento ou o que existirá após a morte.

- Sim, parece que acordámos num comboio em movimento que vai atravessar proximamente um túnel, mas não sabemos o que existe do outro lado. Não existe nada, dirão alguns. É uma opinião respeitável, mas destituída de evidência. Por outro lado, Cristo é o único homem que atravessou esse túnel da morte e voltou para nos falar dele, com rigor histórico.

- Rigor histórico?

- Sim. Repare..., ninguém, em nenhuma escola contemporânea, pensa em negar a autenticidade dos textos dos clássicos gregos e romanos, ou a existência dos autores, embora as cópias sejam escassas e estejam separadas dos originais por mais de mil anos (no caso concreto de Platão é de mil e trezentos anos). No entanto, muitos “intelectuais” negam a veracidade de um livro como o Novo Testamento, do qual existem mais de mil manuscritos, alguns dos quais dos séculos II e III. E não é só a questão do rigor histórico…


- Não? Existe outro tipo de evidência?





- Sim, claro. O relato dos evangelhos não assenta só em testemunhos qualificados; ele também nos informa de como os discípulos de Cristo mudaram drasticamente de comportamento após a sua morte e ressurreição, tornando-se seguros, corajosos e dispostos a morrer a troco de nada. Além de que os acontecimentos relatados tiveram uma enorme repercussão na História, na Arte e na Geografia.

- Bem, uma das críticas ao rigor do Evangelho assenta na existência de versões discordantes sobre a mesma passagem: O sermão da montanha de Lucas numa planície, as discordâncias na genealogia de Cristo ou no cartaz que Pôncio Pilatos colocou na cruz. Elas não colocam em causa a sua autenticidade?

- Não! O que se passa é que os “intelectuais” do nosso tempo pensam que descobriram algo! Eles presumem que todos os intelectuais que, ao longo dos séculos, os precederam nunca repararam em tal coisa…Essas versões divergentes sempre lá estiveram!

- Então porque não foram corrigidas as discordâncias?

- É evidente que para a Igreja Primitiva não seria de todo difícil elaborar uma convergência total. Deixar as diferentes versões do mesmo acontecimento seria absurdo, a menos que houvesse uma proibição absoluta de manipular o conteúdo dos documentos.

- Então a não uniformidade sugere autenticidade, devido a uma mensagem impossível de manipular?

- Exactamente. A primeira comunidade cristã recebeu esses quatro textos como intocáveis.

- A genealogia de Jesus apresenta o mesmo tipo de discordância…


- Não o mesmo tipo de discordância, meu caro. O problema é ainda mais profundo. Mateus inclui quatro mulheres na genealogia de Jesus.

- Era o que eu dizia.

- Não, António. É muito pior. A primeira comunidade que, quer Jesus quer os discípulos, sempre tentaram converter foi a comunidade judaica. Mesmo Paulo sempre se dirigia em primeiro lugar à comunidade judaica. Ora, a mulher era vista como uma criatura impura nessa comunidade semita. Essas quatro mulheres em particular eram exemplos de incesto, prostituição, adultério e assassínio.





- Percebo…Isso atingia o mais sagrado da cultura e religião do povo que se pretendia converter.

- Exactamente! Textos inventados nunca cometeriam esse tipo de suicídio. É evidente que o tipo de sedução social, tão presente no nosso tempo, não se encontra presente no Evangelho. Se uma coisa é certa é que aqueles textos não foram feitos para agradar.

- É engraçado que essa marca de choque social, de uma certa rebeldia, parece ter permanecido com os grandes santos, já dentro da cristandade. Lembro-me de S. Francisco, de Santo António, de São Francisco Xavier. Para já não falar nos resistentes aos totalitarismos que pagaram com a vida. Sempre vi os grandes santos como grandes obstinados frente a uma tarefa impossível.

- É isso mesmo o que significa a Fé e a consagração total: o abandono à Divina Providência. Veja o exemplo da descrição do herói, essencial a qualquer mitologia. Nos evangelhos não se diz nada sobre o aspecto físico de Jesus.

- Nada que possa alimentar a devoção ou a curiosidade?

- Isso. Não existe epopeia religiosa ou mitologia que não se tenha preocupado constantemente com a descrição física do seu herói. Isso é essencial ao imaginário mitológico.

- Portanto, o senhor Messori acredita que tudo isto prova que os apóstolos não se desviaram da veracidade dos factos, mesmo apercebendo-se que isso iria dificultar muito a missão a que se propunham?

- António, qualquer judeu que dissesse “bebei o meu sangue” seria lapidado, pois um dos mais intransigentes tabus do judaísmo é a abstenção do sangue!

- Logo, conclui que a primitiva comunidade cristã, de origem judaica, foi obrigada a aceitar e a propagar uma mensagem perturbadora e blasfema. E que se tivesse podido optar jamais escolheria esse caminho, certo?

- Precisamente!

- Em A Hipótese sobre Jesus faz a afirmação de que Jesus Cristo é o único homem na História a quem se associa o nome de Deus. E que na Biblioteca Nacional de Paris, que é um dos espelhos da cultura ocidental, o seu nome é o segundo em registos, apenas suplantado pelo nome Deus.

- Sim. Mas nós ocidentais já estamos habituados a este escândalo incrível. Jamais uma civilização pré-cristã afirmou que um homem é Deus e existe uma inteira religião pós-cristã que o recusa terminantemente, o Islão.

- Nesse livro também se confessa fascinado pelas profecias messiânicas. Uma vez que aconteceram no seio do povo judaico, qual  a sua real importância para o cristianismo?

- António, no Velho Testamento, as profecias sobre a vinda de Jesus são mais de trezentas. Pascal disse que se um homem tivesse inventado aquilo tudo, o seu cumprimento necessariamente teria requerido uma força divina.

- Portanto, parece-lhe pouco crível que tudo aquilo fosse inventado pelo homem...

- Sim, claro, Uma sucessão de homens, por mais de dois mil anos, profetizou o mesmo acontecimento. É todo um povo que o anuncia. Um povo culto e literato.

- Outra passagem do livro refere que outros líderes espirituais, como Buda, Lao Tsé, Confúcio ou Maomé não tiveram essa tradição religiosa a precedê-los.

- Sim, surgiram por geração espontânea. O que acontece com Cristo é que ele vem precedido de uma expectativa de dois mil anos e a sua Igreja continua a obra Dele por mais outros dois mil.

- Raramente nos apercebemos desse processo temporal, esse antes e depois. Qual o seu alcance preciso?

- Meu caro, um fenómeno histórico ininterrupto por quarenta séculos é contrário às leis da História. No plano meramente histórico, é inegável que aquilo que os profetas de Israel profetizaram, milénios antes, se cumpriu totalmente: Israel cedeu o seu predomínio religioso a um povo que saiu dele e que afirma que Deus desceu ao terreno da História para se apresentar como pastor.

- Mas o cumprimento tão exacto das profecias pode dar azo à objecção de que os autores do Evangelho tivessem desenhado um Messias conforme o retrato profético. Concorda?

- Pois, mas a expectativa geral em Israel ia em sentido contrário àquele que Jesus seguiu. Em Israel não se esperava um chefe montado num jumento e muito menos a lavar os pés aos outros ou condenado e crucificado. Isso era e é incompreensível para o povo judeu que se regula pela lógica da política.

- E a Cristandade tem sobrevivido à queda de sistemas ideológicos, de revoluções e de impérios. Até Hegel afirma que Jesus violentou a História para se tornar no seu eixo. A divinização do homem resultou?

- Bom, Nietzsche também admitiu que Ele mudou a História de forma irreversível. Repare, divinizar um homem, admitido pelos romanos no caso do Imperador, era absolutamente interdito no caso judaico. Associar o nome de Deus a um homem era o sacrilégio máximo, a abominação suprema. O nome de Deus era, e é, formado por quatro letras mudas que não podem pronunciar-se.

- Sim, os judeus submetiam-se publicamente a Roma mas recusavam adorar o Imperador. Portanto a tarefa entregue aos discípulos era…, como dizer…, impossível?

- Pelo menos assim parecia. Supor que um carpinteiro da província pudesse equiparar-se a Deus e ser adorado como tal, poucos anos após a sua morte, é não conhecer nada do mundo hebraico. Admitir que a divindade de Jesus Cristo é fruto da crendice dos seus contemporâneos é ignorar que os judeus preferiram a aniquilação e a destruição total do país a ter que reconhecer a imagem de um homem, o Imperador Romano, divinizada em Jerusalém.

- Persistir nessa ideia de um homem-Deus comportaria os seus riscos?


- Bom, Santo Estêvão, o primeiro a proclamar continuada e publicamente que Jesus Cristo era Deus, foi arrastado para fora da cidade e morto à pedrada. Ainda hoje, o mesmo sangue semita sob forma de um pós-cristianismo, o Islão, se revolta contra essa pretensão cristã de um homem se equiparar a Deus.




- O vaticanista Andrea Tornielli que prefacia o seu livro A Hipótese sobre Jesus afirma que o senhor escreveu o livro que não encontrou. No entanto, muitos encontraram o seu livro, uma vez que o livro foi um sucesso. Mais de um milhão de exemplares vendidos, traduzido em trinta línguas e, apesar de escrito nos anos setenta, ainda vende anualmente 20 a 30 mil exemplares. A que se deve esse sucesso?

- Bem, eu não tenho mérito algum. O mérito deve-se todo a Cristo – é Ele quem continua a interpelar a humanidade. Veja bem, o livro foi visto com hostilidade pelos anti-clericais e com cepticismo por muitos crentes. Todos me tentaram dissuadir. Mesmo os Salesianos que o editaram, tiveram-no um ano na gaveta e, finalmente, apenas imprimiram 3 mil exemplares.

- Nos tempos actuais vive-se na aura do secularismo. Em nome de “todas as religiões” parece ensaiar-se a proibição da prática pública de uma só. Existe o caso da retirada de crucifixos de edifícios públicos em muitos países. Isso afecta-o muito como católico?

- Não me escandalizo nem rasgo as vestes pelo que aconteceu em Espanha e em muitos outros países, porque estou convencido de que um pouco de dificuldade e de hostilidade fazem bem ao cristianismo; desperta e faz tomar consciência da própria identidade.

- O senhor Messori entrevistou dois Papas. Em 1985, o cardeal Ratzinger, que viria a ser o Papa Bento XVI e em 1994 o Papa João Paulo II. Qual deles lhe causou a maior impressão?

- É difícil comparar pessoas diferentes, mas não é verdade que a Igreja a todos concede o mesmo nome, Pedro?

- No entanto, não deixam de ser homens diferentes; o que leva a que umas pessoas se identifiquem mais com uns do que com outros…

- Sim, mas São Paulo já respondeu por antecipação à sua pergunta: “Não digais eu sou de Paulo ou eu sou de Apolo, pois ambos servimos a Cristo”. E reforçou: “Se todo o corpo fosse olho, o que seria do ouvido?” Penso que isto responde por antecipação a essa pergunta.

- Sim. Já não lhe vou perguntar o que pensa do Papa Francisco. Obrigado!

Despedimo-nos. Messori não é um escritor vigoroso e místico como Dostoievski; não é um escritor prolífico e polemista como Chesterton; não é um académico claro e cristalino como C. S. Lewis. Mas nenhum dos três entrevistou dois Papas. A Messori, entre outros, devemos a compreensão do valor da Crítica Textual de manuscritos.1 Ele afirma repetidamente que o que mais lamenta é que muitas vezes a sua conversão intelectual, que é total, não se acompanhe de uma conversão do coração: “Quanta distância existe em mim, cristão, entre o pensamento e a vida!”.

Quando penso em Messori, lembro-me sempre do que Santa Teresinha de Lisieux me disse quando li A História de uma Alma: no jardim de Deus há almas que são majestosas como as magnólias, outras deslumbrantes como as camélias ou as rosas, outras simples como as margaridas. Mas como é belo um campo com milhões de margaridas!




António Campos (esta foi, naturalmente, uma entrevista imaginária)




1 Critica Textus, na designação latina, avalia a fiabilidade dos manuscritos e estabelece os critérios objectivos que nos devem levar a preferir uma variante a outra. A Crítica Textual cria as chamadas “edições críticas”, isto é, a apresentação do texto reconstruído, mas com a indicação de todas as variantes existentes e a justificação para se ter escolhido uma em lugar de outra. O grau de certeza em relação às escolhas é diversificado e as próprias dúvidas vêm também assinaladas.

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