Sempre me diverti a ler a bíblia, mesmo quando não era crente. As histórias bíblicas
Confesso que
nunca fui um exegeta e certos teólogos aborrecem-me (lembro que Jean Guitton dizia que Hans Küng era muito rico e andava de carro de luxo). Entre outras coisas que a Igreja muito louvavelmente sublinha, a conversa com a
samaritana é um reconhecimento tácito da condição da mulher, o encontro com o
nobre rico é uma crítica à mentalidade calvinista, a réplica no Domingo de
Ramos (se eles se calarem falarão as pedras) um elogio à construção das catedrais
e a entrevista com Nicodemos é…o encontro com a universidade.
O que é a universidade?
A universidade é uma criação da Idade
Média (Bolonha 1088, Paris 1150, Salamanca 1134, Oxford 1167, Pádua 1202, Cambridge
1209, Siena 1240, Coimbra 1290). O saber acumulado pelos monges copistas, a
construção dos hospitais e das grandes catedrais, o crescimento das urbes, o
ensino da teologia e da ciência, a maior complexidade económica, a ciência
militar, formaram as condições para a criação do ensino superior que, em última
análise, originou a expansão europeia e a sua supremacia científica, económica,
tecnológica, militar e cultural.
O que é a moderna universidade?
No raciocínio de Chesterton, “vale mais
ler temas vivos de homens mortos do que temas mortos de homens vivos”, somos
conduzidos a Newman. No seu ensaio, Newman defende que a universidade deve
ensinar os alunos a pensar, a formular as questões certas, a exercer o
pensamento livre. O seu objecto é formar o carácter, preparar para o trabalho e
não preparar para a santidade ou salvar almas. A função da universidade não seria
então apenas ministrar conhecimento, mas sim aplicar a razão ou pensamento
sobre o conhecimento adquirido, por forma a atingir a excelência intelectual. A
essa atitude pode chamar-se filosofia, não no sentido estrito do termo, mas no
sentido lato, aplicado a cada uma das ciências que são objecto de ensino.
Newman não enaltece a investigação nem
faz referência ao modelo americano de PhD importado da Alemanha, lançado por
Halle e Göttingen e oficializado em Berlim por Wilhem von Humboldt, mas
enfatiza a autonomia intelectual que se coloca à prova.
Esta é a essência da moderna
universidade que, no entanto, apesar do seu sucesso, enferma das mesmas
limitações que permeavam o modelo alemão. Uma coisa é dizer, como Newman, que a
Universidade não tem como objecto a salvação das almas, mas sim a preparação
intelectual dos homens. Outra coisa é proibir explicita ou subrepticiamente a
menção ao transcendente ou ao mistério, que deve ficar no domínio privado, fora
do campus.
O Sinédrio e Nicodemos são porventura
as duas faces da Universidade. Dois modos de estar perante a realidade externa,
mas também duas tonalidades diferentes de poder e influência. Por um lado, o
orgulho arrogante, o tráfico de influências, o carreirismo e o exercício do poder; por outro
lado, a humildade curiosa, o exercício do pensamento crítico, o amor da verdade
e…o perigo de cair em desgraça entre os pares.
Aquelas duas ideias expressas por
Newman sobre o que é uma universidade, i.e., moldar um cavalheiro e ensinar a
pensar, encontram-se completamente retratadas na conversa entre Cristo e
Nicodemos, mestre e aluno.
Hoje ninguém diz que o objecto da
universidade é a procura da verdade, assente na observação empírica e na
certeza a priori quanto à existência
real da verdade sobre as coisas. Banalidades como o serviço à comunidade, a
preparação para o mundo do trabalho, a procura do progresso, a excelência, são
referidos, não como função da universidade mas como o seu objecto. Mas o que é
um progresso que não tem uma orientação ética ou o que é uma excelência que não
é uma coisa excelente? Um excelente mentiroso será dificilmente uma coisa
excelente. Seguramente, precisamos de facas excelentes mas jamais deixaremos de
punir a sua utilização para apunhalar um inocente. Há algo hoje na universidade
de processo, mas não de objecto.
Uma vez que o que interessa é a
excelência, toda a verdade e toda a mentira é igualmente considerada, desde que
expressa de forma excelente. O tipo de tolerância moderna expresso como de
tolerância para com todas as pessoas, o que seria louvável, transforma-se na
realidade (uma vez que na universidade cada pessoa é tomada como uma ideia ou
trabalho) numa imposição de tolerância para com todas as ideias, o que é
repugnante. Na universidade em particular, torna-se um crime não concordar com
o trabalho de alguém desde que seja excelente. Num universo sem ética, louva-se
a inteligência. A sociedade encontra-se à beira do abismo moral de não
conseguir ajuizar entre o assassino e o assassinado, desde que o assassino seja
um indivíduo interessante e inteligente. O cavalheiro deixa de ser “aquele a
quem repugna causar dor” ou aquele que é “calmo e crítico sobre o conhecimento”,
para passar a ser aquele que faz bem aquilo que faz – Kant diria “não interessa
o que faço, mas como faço aquilo que faço.”
A universidade deve ser um espaço de livre
discussão, mas o background dos
interlocutores deve ser conhecido. Não existem posições neutrais, porque o
relativismo é dogmático. Como dizia Popper, ninguém é uma tábua rasa. Nós
operamos sempre com teorias, mesmo que não tenhamos consciência disso. Deve ser
desmascarada esta atitude geral de tolerância para com a mentira que reina na
universidade. Embora o objecto da universidade seja aprender, é bom que esse
conhecimento seja alimentado da verdade e avaliado pelas suas consequências
éticas, definidas pela cultura de uma civilização. Embora a fé fique à porta da
sala de aula, não deve ser proscrita do campus porque, como afirmava Dawson,
cultura vem de culto. É possível aceitar os ensinamentos da Igreja, mas manter
o espírito crítico e a integridade intelectual. Perdida a ligação à fé, à ética
e ao sentido de prestar contas, o plágio e a mentira assaltarão uma
universidade dominada pelo nepotismo e pelo servilismo carreirista.
Precisamente o oposto do que primeiro se pretendia de uma universidade: a
independência intelectual e o espírito crítico.
Nesse ponto de vista a entrevista com
Nicodemos é elucidativa. Um aprendiz de carpinteiro vai ser interrogado por um
“professor” do Sinédrio, à noite, à socapa, o que é revelador da atitude geral
no Sinédrio. O paralelismo com uma universidade que despreza e ridiculariza os
agradecimentos a Cristo nas teses é por demais evidente.
“Como pode um homem reentrar no ventre
de sua mãe e nascer do novo?”, questiona um perplexo Nicodemos. Cristo enfatiza
a necessidade de uma nova atitude para adquirir o conhecimento verdadeiro: a
humildade. O negar-se a si mesmo que tantas vezes repetiria. O homem que se
fecha sobre si mesmo tem muita dificuldade em adquirir conhecimento e aplicar
sobre ele a razão, como ainda mais dificuldade tem em possuir aquela empatia
humilde para o comunicar, apanágio dos grandes mestres. O grande professor é
sempre humilde, de uma humildade genuína, conatural, não fingida. Fica sempre
na memória dos seus alunos como um grande mestre, um cavalheiro, um senhor. Não
é apenas um homem que faz bem aquilo que faz, é também um homem bom.
Mas Cristo continua: sabes tudo sobre
as coisas físicas, a ligação da aparência das nuvens de hoje ao tempo que fará
amanhã, mas nada sabes sobre o ambiente psicológico, social, sobre as coisas do
espírito. E porquê? Porque só acreditas no que vês, os limites do conhecimento
são definidos pelos teus olhos, pela tua razão. Não admites que exista conhecimento
para além da razão: o mistério, o amor, o espírito, a alma humana. Tal como o
vento…não o vês e ele sopra onde quer.
Nicodemos na posição de uma universidade
que não vê, porque só tem um olho. Essa ideia liga-se com Marta e Maria (Lu 10,
38-42): o homem não é apenas um animal, não vive apenas de reprodução e
economia, ele é um ser espiritual. É frequente ouvir-se dizer, na universidade
actual, que nós vivemos apenas para a reprodução e depois entramos em declínio,
após os 45 anos de idade. Este é o paradigma da ciclopia: quantas obras de
arte, ciência e literatura foram criadas por pessoas numa idade em que já eram
presbíopes?
Nicodemos também representa a esperança
da universidade: o amor pela verdade, a valorização do indivíduo pelo que é e
não por quem é, a humildade, o gosto pela verdade, mesmo pagando um preço.
E tu que és mestre na Universidade (Israel)
não sabes todas estas coisas?, interroga Cristo. Esta é a pergunta que Cristo
continua a formular à universidade actual, afundada na dúvida de Pilatos e no
problema crítico pós-kantiano.
Mais à frente, Nicodemos lembra ao
Sinédrio que se deve ouvir e estudar, antes de fazer um julgamento (Jo 7, 51-52).
A universidade recusa estudar um homem aprendiz de carpinteiro de uma remota
província do império romano, que partiu a história a meio e que é o principal
pilar da civilização ocidental. O único que disse ser Deus, o único que voltou
do maior destino que aguarda todos os homens: a morte. “Ele é apenas um
Galileu!”, i.e., um zé-ninguém que não pensa como nós. Não comunga connosco
materialmente (não é do nosso círculo, não tem pedigree), nem espiritualmente
(não partilha as nossas ideias). Nestas palavras sem assinatura (Jo 7, 52-53),
escondem-se a universidade e a imprensa modernas.
Primus inter pares – hoje é tudo quanto se busca a
qualquer preço, mas o lema não é digno da universidade, é mais indicado para um
maço de tabaco.
Como realça Ratzinger em Jesus de Nazaré (Semana Santa), os 33 Kg
de mirra e aloé que Nicodemos usou para embalsamar Jesus caracterizam um
enterro real.
Ainda há esperança para a universidade…quando
nascer de novo!
António Campos
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