Até 31 de Maio de 1998 a questão do
corpo de Deus era-me tão longínqua, indistinta e diáfana, como o era à
maioria das almas que eu conhecia. Foi por ocasião do meu crisma, durante a
celebração, que o Sr. D. João Alves me remeteu para o foco na questão ao
interrogar uma jovem alma, minha camarada de “infortúnio”.
No ano de 325, o jovem diácono Atanásio
dirigiu-se à povoação de Niceia, actual Iznik, na Turquia asiática. Eloquente e
bravo, determinado, estaria provavelmente longe de vislumbrar a extraordinária
civilização que se ergueria sobre a sua posição, o Ocidente.
Desde o Pentecostes, algures entre 29 e
33 DC, que entre os convertidos se formaram seitas heréticas, sobretudo durante
os primeiros 3 séculos, versando sobre a real natureza de Cristo. A sua génese
assentava na natural ânsia humana de racionalizar o incompreensível, de
exorcizar o mistério, de rejeitar tudo o que está para além da razão humana. A
maioria dos heresiarcas tiveram em comum a vaidade e a ambição, um certo
autismo espiritual, i.e., uma crença desmedida nas suas próprias ideias, um
racionalismo lógico aliado a grande eloquência. Arius, um clérigo africano
líder da nova seita ariana, não fugia ao estereótipo. O arianismo defendia que
Cristo não era Deus, Ele mesmo. Cristo teria um lugar privilegiado, teria sido
criado antes de todas as criaturas, o mundo poderia mesmo ter sido criado por
ou através dele, a sua substância até poderia ser divina, mas…não era Deus!
Mas o que interessa uma questão tão
aparentemente espúria à nossa vida actual, ao dia a dia em que temos que ganhar
a vida e sobreviver aos impostos do Estado? Para compreender isso teremos que
constatar que civilização foi construída sobre essa ideia: o maometanismo!
Como dizia Chesterton, o homem não é
apenas economia, ele também não suporta viver fora da verdade, da sabedoria. O
homem não vive só de pão, mas também da palavra, do verbo. E as grandes
civilizações decaem por esquecer coisas óbvias. Os grandes inimigos do ocidente
actual não são estes muçulmanos que nos ameaçam com bombas ou com facas. O
ocidente é muito mais desenvolvido, rico, multiforme e bem armado que o Islão.
O problema do ocidente é a sua própria decadência, aquela humildade espúria de
se auto-culpabilizar e de se desacreditar. Quando a tentativa de simplificar e
racionalizar os mistérios da fé vence numa sociedade, perde-se a ligação entre
a natureza humana e Deus, que é a substância da Encarnação. Perde-se a
dignidade humana, embora permanecendo retórica. Perde-se a autoridade de Deus e
a noção de prestar contas. Cristo aparece como um homem ou como um mito. O que
se reduz a unitarismo acaba como paganismo.
“Ouçam, ó cristãos, Jesus é apenas um
homem, homem entre homens, filho de Maria!”, diz a mesquita de Omar.
Essa recusa de compreender o aprisionamento
do infinito no finito, essa recusa de um Deus humano, demasiado humano, é
também uma recusa de casta. No império romano, da elite orgulhosa da sua
tradição pagã, dos intelectuais que recusavam o incompreensível e não queriam
misturas com a populaça, do exército que não podia aceitar uma igual
condição para todos os seres humanos, do imperador que via recusada a sua
infalibilidade e natureza essencialmente divina, e via crescer uma organização
complexa que se auto-administrava e nomeava os seus próprios líderes, uma
espécie de Estado dentro do Estado, com uma moral intransigente, a Igreja.
Contrariamente ao comumente acreditado,
Constantino, que decretara a liberdade religiosa em 313, tinha mais simpatia
com o arianismo do que com as ideias de Atanásio. Seria baptizado apenas na
véspera da sua morte, em 337. Dentre os seus sucessores, os seus filhos eram
arianos e Juliano, o seu sobrinho, seria um perseguidor e assassino de cristãos.
O Senado e o Exército também abominavam essa nova religião e tinham simpatia
pelo arianismo. Após o concílio de Niceia, Constantino chamou Atanásio, bispo
de Alexandria, para re-admitir o excomungado Arius na Igreja. Atanásio recusou.
Foi deportado. Em 367, um Atanásio de 70 anos de idade seria deportado pela
quinta vez. Para a Gália, uma parvalheira de brutos e atrasados semi-selvagens.
O deportado Atanásio converteria a Gália, o embrião do Ocidente. Atanásio
morreria como o maior homem do seu tempo.
A diferença que ele cavou entre um
ocidente onde o arianismo morreu e um oriente onde ele viveria o tempo
suficiente para influenciar Maomé, reside na diferença entre o que aconteceu a
oriente e a ocidente. O império romano do ocidente caiu com as supostas
invasões bárbaras, que foram mais assimilações progressivas e autonomias crescentes.
Os chefes do exército passaram a ser convertidos directamente do paganismo e
não existia legado ou “ascendência”. O pedantismo morreu, o Ocidente nasceu.
Deus era uma família, Cristo era Deus Ele-mesmo que se fez homem como nós.
António Campos
(O autor recomenda vivamente a leitura de The Great Heresies de Hilaire Belloc que serviu de base para este texto).
A RENOVAÇÃO DA NOSSA JUVENTUDE
A Igreja teve inúmeras oportunidades de
morrer e até de ser respeitosamente enterrada. Mas a nova geração vinha sempre
bater à porta; e batia com mais força quando batia no bordo de um caixão
prematuramente enterrado. O Islão e o arianismo foram tentativas de propagar um
são e simples teísmo – o primeiro apoiado num grande sucesso militar; o segundo
num vasto prestígio imperial. Deveriam ter estabelecido definitivamente o novo
sistema, mas pelo facto desconcertante de que foi o velho sistema o único a
preservar a semente e o segredo da novidade. Qualquer pessoa que leia nas
entrelinhas dos registos do século XII poderá constatar que o mundo se
encontrava permeado por um panteísmo e paganismo potenciais. Podemos vê-lo no
pavor da versão árabe de Aristóteles, nos rumores de grandes homens que seriam
muçulmanos em segredo; o homem velho, que via a fé simples da idade das trevas
em dissolução, poderia facilmente alvitrar que o cristianismo iria acabar por
desembocar no islamismo. Se foi assim, o homem velho deve ter-se surpreendido
bastante com o que realmente aconteceu.
E o que aconteceu foi um ribombar de
trovoada provindo de milhares e milhares de jovens, investindo a sua juventude
numa contra-ofensiva exultante: as cruzadas. O efeito real das novas religiões
foi a renovação da nossa juventude. Foram os filhos de São Francisco, o
saltimbanco de Deus, deambulando e cantando por todas as estradas da terra; foi
o gótico erguendo-se como um vôo de flechas; foi o rejuvenescimento da Europa.
E embora saiba pouco da época velha, suspeito que o mesmo aconteceu quando da
ortodoxia de Atanásio em revolta contra o oficialismo de Ário. Os velhos homens
propuseram-lhe o compromisso e Santo Atanásio liderou os jovens como um demagogo divino. O perseguido levou o fogo
sagrado para o exílio. Era uma tocha incandescente que podia ser expulsa mas
não podia ser pisada.
Chesterton, Where All Roads Lead (1922)
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