Lembro uma vez ter afirmado que não
gostei de um livro chamado A Psicanálise
dos Contos
de Fadas. Em minha opinião, nos contos de fadas a
fantasia é apenas aparente, uma vez que o seu sentido é alegórico, enquanto que
na psicanálise a verdade é apenas aparente, porque o seu sentido é fantasioso. O autor caiu num erro comum: pensar que os contos de fadas são para as crianças por possuírem uma linguagem fantástica e alegórica, mimetizando o erro colossal da psicanálise ao atribuir à criança a responsabilidade do incesto, que é, em verdade, património de uma civilização. Os contos de fadas, por conterem as grandes verdades, são apenas apreensíveis por aqueles que "são como as crianças", um detalhe que faz toda a diferença. A chave encontra-se na passagem bíblica referida em Mt 11:25 e Lu 10:21, "Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultastes estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos."
Para defender a minha tese vou recorrer
às quatro ideias que Chesterton nos deixou sobre o sentido alegórico dos contos
de fadas, em Ortodoxia:
1 – A lição de A Bela Adormecida:
A beleza não salva o mundo; o seu
mérito é lembrar-nos qual a nossa real natureza, uma vez que não tem utilidade
prática. Somos seres espirituais e ansiamos por obter sentido. A própria beleza
se desvanece com o tempo e morre. A nossa vida é uma maravilha, mas
empalidecida pela sombra da morte. Só o amor resgata a morte quando ela se
encontra convertida em sono. Esta crença é descrita como uma verdade nos contos
de fadas. A natureza fantástica e extravagante dos contos de fadas serve
para exaltar a beleza do nosso mundo e para acordarmos do nosso cansaço, da
nossa alienação. Desse ponto de vista, os contos de fadas são uma caricatura de
nós próprios e um maravilhamento com o
mundo. A sua linguagem é alegórica, porque o seu conteúdo não consiste
numa série de mentiras mas de verdades. A psicanálise, pelo contrário, usa os
métodos de uma pseudo-ciência, para apresentar um conteúdo que consiste numa
série de mentiras, embora partindo de um fundo verdadeiro: o de que todo o
homem é um anjo e um demónio, que possui a decisão sobre o caminho a trilhar e que necessita de desabafar, para aliviar o fardo que transporta.
Claro que a Bela Adormecida não é
apenas a alegoria de que a beleza só pode ser salva pelo amor; ela é também a
alegoria da natureza do conhecimento humano: só o “outro” nos pode salvar do
torpor do subjectivismo - “Já Bocage não sou!” Só o amor acorda a beleza; o amor
é gratuito, dado sem merecimento. É o amor que nos confere dignidade.
2- A lição de A Branca de Neve e dos Sete Anões:
Nos contos de fadas, a morte paira
sobre todas as criaturas e todas elas têm que possuir a coragem mínima de a enfrentar. As criaturas que perseguem a imortalidade tornam-se grotescas. Os que
perseguem a beleza eterna tornam-se feios. Pensar que esta mensagem dos
contos de fadas não exprime a realidade é desmentido pelo resultado da
cirurgia plástica de muitas figuras públicas quando ficam com uma cara grotesca.
3 – A lição de A Bela e o Monstro:
A fealdade só se torna bela por ser
amada e para tal é necessário que também ame. Para fazer justiça a Dostoiévski,
desde Memórias da Casa dos Mortos que a conversão é apontada como a única coisa que pode salvar o homem. E continua, com Lisa de Cadernos do
Subterrâneo e com Sónia de Crime e
Castigo. Existe uma exaltação e uma beleza em ser revolucionário e em viver
o espírito da Internacional ou da Marselhesa, mas Dostoiévski, que a conhecia
por dentro, não hesitou em chamar os seus protagonistas de Os Demónios. Nesta Viena onde me encontro, consigo ver distintamente
a diferença entre Freud e Wittgenstein, como julgo conseguir ver em Lisboa a
diferença entre Pessoa e Camões. A beleza é uma propriedade conferida à criação
como reflexo da natureza do seu Criador. Mas existe uma beleza que não é
verdadeira, porque resulta de uma escolha ou haeresis, por parte das criaturas que têm poder de criar. Existe
uma beleza que seduz, mas engana; existe uma beleza que seduz e conforta,
porque é verdadeira. O homem anseia pela verdade. Existe uma diferença abismal
entre os valores religiosos e os valores artísticos, como afirmavam von
Balthazar e Kierkegaard, pela simples razão de que Deus ultrapassa o mundo na
sua beleza – é a diferença entre uma teologia estética e uma estética
teológica. Mas a lição de A Bela e do
Monstro não nos informa apenas sobre a descoberta da beleza em alguém que
parece feio à primeira vista. Ela é, naturalmente, uma caricatura do próprio
amor. Cristo confere sentido ao mundo, na medida em que é, a um tempo, verdade,
beleza e amor, Ele que atribui dignidade aos outros, por tanto amar.
Mas o sofrimento, a cruz, que resulta do livre arbítrio
humano, a sua humilhação e morte, a realeza humilde e humilhada, é a imagem
desse monstro sofredor, esse outro indesejável e repelente.
Tal como em A Bela Adormecida a morte não triunfa, também em A Bela e o Monstro a monstruosidade não
permanece. Esse desenlace positivo lembra-nos a expressão bíblica “tempo,
tempos e metade de um tempo”, todo o mal tem um fim; o sofrimento nunca será
eterno para quem muito ama.
4 – A lição de A Cinderela:
É, como afirma Chesterton, a mesma do
Magnificat, a exaltação dos humildes. A grandeza de ser pobre é a pureza de
coração, que também se observa nos ricos misericordiosos: o binómio, a Cinderela
e o Príncipe. Esta é uma lição que não escapa ao conto de fadas. Um dos
segredos do triunfo dos contos de fadas é serem puros e não pretensiosos. O
conto de fadas sabe que não chega a Deus, mas tem a confiança de que Deus repare nele. Expressa-a ao dar voz a todas as criaturas, como se afirmasse que todas
as criaturas dão glória a Deus. A expressão “e viveram felizes para sempre” é
uma antífona para um princípio, não para um fim; é a velha expressão católica:
“O meu fim é o meu princípio!” É a escada de Jacob: quando terminamos uma
coisa, isso apenas significa que obtemos uma licença para iniciar outra. Cada fim é um recomeço.
António Campos
Nota: O autor baseou-se no artigo de maximustheconfessor, The Redemption of Beauty, no blog Catholic Kung Fu, cuja leitura recomenda.
Nota: O autor baseou-se no artigo de maximustheconfessor, The Redemption of Beauty, no blog Catholic Kung Fu, cuja leitura recomenda.
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