Em 1901 Chesterton foi convidado para escrever no Daily News. Uma condição apenas lhe foi
imposta: nada escrever sobre religião ou sobre política. Chesterton responderia: Se não posso escrever sobre religião e política, que mais há sobre que escrever? Na mente deste mosqueteiro, a importância primeva da vida residia na relação do homem com Deus e na relação do homem com os outros homens – eis a sua definição lata de religião e política. Chesterton não escreveu sobre política para obter notoriedade; de facto escreveu sobre este assunto contra a vontade de sua mulher e dos seus familiares e amigos, que lhe reconheciam talento literário e lhe auguravam uma carreira nas artes e nas letras. Mas escrever sobre política a partir de uma posição minoritária e praticamente herética - numa Inglaterra de Belle Époque que acreditava no imperialismo inglês, no liberalismo ad nauseum, na supremacia do protestantismo whig, no seu capitalismo baseado no comércio (um país de mercadores, nas palavras de Napoleão), na finança plutocrática sem escrúpulos, na acumulação de capital como sinal de virtude, no progresso virtuoso, no socialismo fabiano, na eugenia darwinista – seria como comprar um bilhete para a terra do nunca.
Chesterton comprou. E foi da terra do
nunca que falou…e fala. Pelo menos assim o dizem os que não acreditam na
exequibilidade prática da sua teoria económica que assenta na distribuição da
propriedade, na garantia de que todo o homem seja proprietário (como garantia
de liberdade e independência), na política de proximidade, na profusão da
pequena empresa, no comércio justo e determinado localmente, numa estrutura
accionista dispersa e conhecida, na garantia da propriedade com distribuição do
poder pelo maior número de homens de uma nação, numa organização do Estado com
limites de acção bem definidos. Numa palavra, a subsidiariedade ou doutrina
social da Igreja. Entendida como a defesa dos pobres, no sentido em que todo o
homem pobre tem o direito à propriedade. Entendida como um limite à acumulação
de riqueza, sobretudo de uma riqueza que não tem tradução na propriedade
física, mas apenas tem expressão económico-financeira; a riqueza virtual que é
hoje a forma predominante de riqueza. E também fala da terra do nunca para
aqueles que compreendem a filosofia como a análise de sistemas para abordar (ou
será amputar ou distorcer?) a realidade. Um homem para quem a política nunca
deixa de ser uma filosofia política, entendida como dialética de teoria e
prática.
Tal como com os Papas da Igreja
Católica, ninguém lhe deu crédito. Porque não convém a quem detém o poder,
porque a globalização o impede, porque os Estados nacionais se tornaram reféns
de um poder económico que se expressa através de legislação oriunda de
instâncias supra-nacionais. Por isso este ideal,
simultaneamente o direito à propriedade, a contenção na acumulação de riqueza e
os limites estritos à acção do Estado, foi achado difícil e não foi tentado.
Veremos até quando se aguenta o actual modelo económico, em larga medida
psicológico e virtual, mas sempre opressivo. Também não lhe dão crédito estes
discípulos de Édipo, professores de filosofia das nossas faculdades, normalizados pela Reforma e, como ela, em negação
dialética.
Mas voltemos ao Chesterton político.
Chesterton participa activamente na política, na ideia política, na análise
política, na crítica, na elaboração política. A sua posição tem uma raiz no
evangelho. Algo subtil, por vezes completamente apreendido de forma equivocada,
pelos católicos em primeiro lugar. Em nenhum lado Deus, Cristo, a Bíblia, etc.,
afirmam que este mundo é mau ou que a carne (matéria corporal) é má. Em nenhum!
Muito pelo contrário: este mundo é sempre descrito como uma obra sublime e
existe um livro inteiro que relata o quanto é bela e sublime a mulher. Ao referir
que o mundo e a carne são inimigos
do espírito, a Escritura apenas sublinha que o poder deste mundo emana das
relações públicas ou mundanismo e que o prazer como finalidade é um erro e
causa dependência. Mundo e carne são atitudes, comportamentos, não são
entendidos como a matéria que essas palavras igualmente expressam. O mundo
material é bom, tal como a mulher é boa para o homem e vice-versa.
Esta distinção é muito importante. Por
outro lado, também existe um outro mundo mais sublime do que este mas que não o
dispensa de modo algum. Teremos então o conceito de mundanidade-outra ou cidade dos homens e mundanidade-santa ou cidade de Deus, como dizia Agostinho. Tendemos
a ver a cidade de Deus como aparte deste mundo, e é; mas também se encontra
nele igualmente presente. Tendemos a ver a cidade dos homens como condenada, um
vale de lágrimas destinado a perecer pelo fogo, uma instância onde não se
encontra a justiça. Sim…e não.
O cristianismo é a mais materialista das religiões.
O Deus Eterno entrou no tempo e na
matéria. A Criação, a Encarnação, a Ressurreição, não só evidenciam que o
Espírito penetra na matéria como igualmente que o corpo humano é imortal. Esta
convicção descarta qualquer religião puramente materialista, como o marxismo,
ou puramente espiritualista, como a gnose. Cristo é o centro. Então o cristão
deve odiar o mundo na sua mundanidade, na sua tendência mítica e idolátrica,
nas suas relações para obter benefícios, na sua imagem e representação. E, no
entanto, deve igualmente amá-lo, mesmo na sua fealdade, porque só amando-o pode
contribuir para o mudar. Só assim será o sal da terra. Só assim os cristãos
estabelecerão o Reino de Cristo na Terra. Tal como o sal, sempre em minoria,
sempre com sabor intenso e por vezes insuportável, sempre em risco de
desaparecimento ou de dissolução. E, contudo, só assim mudarão o sabor da
comida.
Este é o princípio da acção política.
Embora não tendo ilusões sobre a
verdadeira natureza da política, que tem mais que ver com poder, sedução, ocultação
e mentira do que com justiça e verdade, o cristão deve aceitar a missão de
entrar na política, precisamente porque tem a possibilidade de ser um exemplo,
pagando um preço; é isso que significa que para ganhar este mundo ele o deve
perder. Se for apenas mais um, servindo-se em vez de servir, deixa de ser
cristão, no sentido em que deixa de fazer a vontade de Cristo, mas
hereticamente, segue apenas a sua.
O falhanço na sua projecção social não
o deve deprimir ou fazer desistir. Na verdade, “Nada falha como o sucesso” –
nenhuma outra instituição, como a Igreja, falhou tantas vezes e de tantos
modos, por vezes em risco de extinção, e nenhuma outra teve tanto sucesso. E o
mesmo se pode dizer de Cristo.
Portanto, o cristão deve participar na
política, desde logo votando.
As Ciclopias
A concepção do real como “aquilo que
está para vir” cindiu o homem com o mundo real, com a realidade do existir, e
fundou a sua esperança no progresso, no que está para vir, no porvir: o
misticismo anti-racionalista, deísta ou freudiano e o materialismo lógico pelo
estabelecimento de um reino messiânico na Terra, totalmente desvinculado de uma
realidade-outra. O cego místico Tirésius e o racionalista Édipo; o pessimista e
o optimista; as partículas aprisionadas de Eckhart e o nominalismo de Ockham; o
deísmo de Robespierre e a deusa Razão dos fanáticos de Hébert; romantismo e
realismo; Freud e Marx; Espinosa/Goethe e Kant/Wittgenstein.
Esta dialética fechada, pendular, em
negação e retorno ao longo da História, efectua a sua síntese: Édipo com o
cajado hermético, monstrum horrendum cui
lumen ademptum – uma manifestação precoce de Hegel. A sociedade
racionalista e cientifista, com os seus horóscopos e astrologias, com os seus
espíritos e vampiros, com as suas medicinas alternativas e o seu tarot, com o seu vegetarianismo e
adoração dos animais; o socialismo esotérico e gnóstico nazi com a sua Thüle e
o socialismo marxista com a sua Liga dos Justos; o liberalismo materialista e o
socialismo liberal; a democracia e as sociedades secretas; os direitos humanos
e os serviços secretos; a sociedade “aberta” de Popper onde vale tudo, onde a
verdade objectiva não existe, onde nada tem valor absoluto, nem a própria vida.
“É proibido proibir”, a menos que seja o novo poder revolucionário a proibir:
“Há dois tipos de pessoas: aqueles que sabem que usam dogmas e aqueles que aceitam
dogmas sem saber.” “O moderno adepto das novas ideias não é inconstante, mas
fixo” (é um conservador).
Um estado mental que tudo relativiza
destrói a própria possibilidade de revolta e de luta pela justiça social, na
medida em que o relativismo moral destrói a própria distinção moral entre
oprimido e opressor. Só o retorno à objectividade moral pode permitir o
radicalismo político; só o restabelecer do mundo do ser pode parar o mundo do
devir: “Devemos amar este mundo mesmo para o mudar. Também se disse que devemos
amar um outro mundo (real ou utópico) de forma a que tenhamos objectivos para a
mudança do nosso…O progresso tem que significar que estamos continuamente a
mudar o mundo para o adaptar à nossa visão e não que estamos continuamente a
mudar de visão.” Como se para correr os 110 m barreiras estivéssemos sempre a
colocar a meta para trás; faria sentido continuar a chamá-los de 110 m? Que
sentido tem um progresso sem regras, sem um objectivo?
R. H. S. Crossman no seu livro Plato today afirma: “a verdadeira
democracia não é platónica porque ela emana da própria ideia de personalidade;
o verdadeiro democrata sabe que o mundo ainda tem que ser construído como
democrático, portanto ele deve ser considerado pagão, apesar das suas
instituições democráticas e das suas igrejas cristãs.” Quer a democracia quer o
cristianismo são afirmações incríveis: “Contra a ordem existente e aqueles que
a pretendem manter, elas apregoam uma impossibilidade e lutam por a tornar
real.”
As ciclopias e respectivas sínteses não
deixam de ser ciclopias, nunca são estereopsias. Só a percepção de que este
mundo importa e não está separado em absoluto do outro, mas que se encontra
interpenetrado e com leis semelhantes, com um tipo análogo de racionalidade e
moral, com o mesmo tipo de verdade objectiva. Por isso mesmo a atitude
epistemológica certa nunca pode ser a adopção de um sistema filosófico, por
mais cativante ou “artístico”, porque todos eles são sempre baseados em premissas
e um pouco de lógica, tomando a actividade racional de forma tão estreita, que
exclui a maioria das operações intelectuais humanas e a maioria dos homens no
seu proceder diário, incluindo os inventores e useiros de tais sistemas. As
ciclopias são modas que se repetem ao longo da História e são as grandes
inimigas de uma coisa completamente nova: a Boa Nova, o Evangelho.
“A vida ou é uma luta apaixonante ou é uma trégua miserável.”
A mensagem do evangelho afirma as duas
mundanidades, equilibrando o aristotelo-tomismo com o agostinismo. A realidade
aproxima-se sempre com dois olhos. Uma ciclopia como a teologia da libertação
(e o marxismo) transforma o reino de Cristo num reino deste mundo,
transgredindo as palavras do próprio Cristo. Um tipo de cristianismo que
assente a sua acção na transformação das estruturas sociais sem transformar o
indivíduo, ignora a maior conquista que o homem faz à luz da graça: a do pecado
em si próprio. Uma espiritualidade puramente individualista e virada para o
outro mundo também é uma ciclopia, na medida em que ignora ostensivamente o
facto de que o homem é um animal social, que é formado pelas sociedades onde
aparece desde a concepção, a família e a pátria, que a sanidade destas ajudam à
sanidade daquele. A Igreja não ensina a ciclopia; ela prega a ânsia da mundanidade-santa de S. Francisco no
desejo pela pobreza voluntária, e o direito à propriedade de São Tomás, a mundanidade-outra, pela necessidade de
todo o homem possuir algo para se encontrar numa situação de liberdade. O
catolicismo prega a insignificância deste mundo em face do mundo que está para
vir e a absoluta necessidade e importância deste mundo em face do mundo que
está para vir. O “negócio” de Cristo é simultaneamente aqui e na eternidade.
Não se jura pela Terra, porque ela é o escabelo (banquinho) dos Seus pés.
Em que medida é que esta noção teológica
influencia a acção política?
Para um protestante, a Salvação é
assunto privado, sem intermediários, pessoal. A Igreja é apenas uma associação
de crentes, cuja salvação é independente para cada um e independente do corpo
da Igreja. Não existe essa coisa de “corpo místico”. É uma concepção quase
gnóstica. Esta concepção protestante baseia-se no platonismo de Santo
Agostinho, no triunfo da sua soteriologia sobre a sua eclesiologia. A
soteriologia é o estudo da salvação; a eclesiologia o papel da Igreja.
Agostinho sublinha a natureza da realidade
como algo que é para além e outra,
relativamente a este mundo. A união com a Igreja leva à graça de Deus que é
obra unicamente de Deus (daí a ideia da indiferença das obras dos homens e,
como consequência, a via aberta para o determinismo). Ao homem cabe buscar a
santidade na Igreja (daí a ideia da sola
fide, a fé certa). Se a realidade não está neste mundo, que sentido faz a
política secular? A menos que seja uma forma de poder, não fará qualquer
sentido, uma vez que nunca será uma forma de justiça já que a verdade não se
encontra neste mundo. Está aqui exemplificada a falta de entusiasmo de muitos
teólogos pela política, incluindo alguns convertidos ao catolicismo, vindos do
protestantismo, como Newman. E explica a falta de visão espiritual daqueles que
se ocupam da política neste mundo.
Esta noção de que o mundo material é
mau ou irreal e de que a verdade não se encontra disponível na matéria é
rejeitada pela eclesiologia católica, para quem a Igreja é o corpo de Cristo e
a contínua obra de Jesus Cristo na Terra, mesmo que composta de pecadores, tal
como um corpo com partes menos decorosas. A salvação individual não existe
“porque aqueles que tiverem encaminhado a muitos é que brilharão” e sem obras
não existe salvação, mesmo que em última análise ela dependa da Graça. Mas a
Graça não é absurda nem caprichosa, ela leva em conta as obras.
Chesterton pelo contrário não veio para
a Igreja Católica a partir do protestantismo, mas do liberalismo (o partido
liberal incluía os socialistas no tempo de Chesterton) e do ateísmo (segundo
Pearce, Chesterton foi mesmo fabiano). O primeiro movimento de Chesterton no
caminho para a religião foi mesmo o de rejeitar o platonismo. Para Chesterton,
a existência era maravilhosa e jamais se poderia ignorar ou menosprezar este
mundo – isso seria um bilhete para a loucura. Este mundo não é uma ilusão, é
maravilhoso. Este lado aristotélico em Chesterton ligou-o à política e à sua
crença de que é possível agir sobre o curso dos acontecimentos neste mundo. A
crença numa filiação comum de todos os homens sem excepção.
Chesterton era aristotélico no sentido
de que partilhava esta mundanidade-outra; e tomista no sentido em que no seu
amor por esta vida nunca ignorou a vida além desta, que ilumina o presente com
a sua luz, simultaneamente pálido em face dessa luz: “eu nunca perdi a noção de
que esta é a minha vida real; o prenúncio de uma vida ainda mais real, uma
experiência perdida na terra dos vivos.” E Newman abandonaria o puro platonismo
agostiniano para abrir a porta ao aristotelismo, num movimento inverso, i.e., a
realidade do outro mundo interpenetra e é constitutiva da realidade deste: “a
presença de Cristo não é uma coisa à distância, nem Cristo é separado de nós
como o sol, iluminando-nos mas mantendo a distância; pelo contrário, encontramo-nos
cercados por uma atmosfera e imersos num meio no qual o amor e a luz nos tocam
por todos os lados.” O aristotelismo foi o primeiro movimento de retorno do
cepticismo em Chesterton: aproximar a realidade primeiro pelo que se vê e só a
partir daqui inferir sobre o que não se vê. Uma vez na doutrina da Criação, a
mente de Chesterton é conduzida à fraternidade humana na filiação divina, à
comunhão dos santos, ao corpo místico de Cristo. Resumindo: ateísmo →
aristotelismo → cristianismo tomista → eclesiologia ˃ soteriologia. Embora
Newman fosse muito mais neo-platonista na sua origem, em face da sua vinda do anglicanismo,
ele evoluiu para uma posição final em que a eclesiologia também superava a
soteriologia individual.
Este modo original inglês de ver o
catolicismo, não escolástico, mas aristotélico-tomista (aproximar primeiro a
realidade deste mundo pelo que se vê e só depois fazer o movimento para o que
não se vê), com ênfase na epistemologia da criança e na convergência de
probabilidades, no sentido ilativo, tornou Newman um herege na Inglaterra da
década de 1840, mas por outro lado um suspeito entre os católicos, pagando um
preço como pioneiro, que o catolicismo mais tarde não exigiria a Chesterton :
“Sendo um exemplo sublime de que a fé pode crescer em qualquer solo, e de que
uma mente brilhante pode ver a Igreja de qualquer ângulo, ele causou aquela
estranha impressão nos da sua fé católica de ser um estranho, demasiado estranho
para ser considerado imediatamente um par.” Depois deste constatar de que
Newman foi sempre mantido “à vista” por Manning, Chesterton elogia a sua mente
prodigiosa: “As aulas de Newman sobre O
Estado Actual dos Católicos, uma resposta à onda de anti-papismo dos anos
de 1850, foram dadas praticamente contra uma multidão em fúria. Havia algo
maior do que o humor, existia o próprio divertimento, quando na primeira aula
sobre a Constituição Britânica, Newman a explicou como se se estivesse a
dirigir a um congresso de russos.”
Chesterton e Newman ou a base de acção
política. O realismo metafísico, um processo tipicamente inglês: a noção de que
este mundo é real e a percepção da existência de uma realidade-outra e não de
uma outra realidade.
António Campos
1- Donald Attwater, Modern Christian Revolutionaries.
The Devin-Adair Company, NY, 1947, cap. II: G K Chesterton, by F. A. Lea.
2 - David Paul
Deavel, An Odd Couple. A First Glance to Chesterton and Newman. Logos: A Journal of Catholic Thought and Culture, vol 10, 1, 2007, pp. 116-135 |
10.1353/log.2007.0003.
3 – Sheridan Gilley,
Chesterton's Politics. The Chesterton Review, 21 (1/2):27-47
(1995).
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