Foucault
afirmou que o sujeito está irremediavelmente preso aos predicados do seu
próprio
tempo, ou seja, delimitado pelas características paradigmáticas da episteme e moldado pelas suas respetivas consequências cognitivas e linguísticas do pensar e do dizer - ao seu quadro reflexivo e ao seu enquadramento epistemológico. Assim, seria tão paradoxal avaliar um cientista, um autor ou um artista, pelo seu aparecimento prematuro como pelo seu cariz reacionário, pois afinal, ele não é mais do que um mero produto da sua época - um mero recipiente passivo.
tempo, ou seja, delimitado pelas características paradigmáticas da episteme e moldado pelas suas respetivas consequências cognitivas e linguísticas do pensar e do dizer - ao seu quadro reflexivo e ao seu enquadramento epistemológico. Assim, seria tão paradoxal avaliar um cientista, um autor ou um artista, pelo seu aparecimento prematuro como pelo seu cariz reacionário, pois afinal, ele não é mais do que um mero produto da sua época - um mero recipiente passivo.
Apesar
de G. K. Chesterton defender uma posição ontológica diferente, é lícito colocar
uma questão logo de início. Será o autor de Ortodoxia
um indivíduo fora de época? Um homem ultrapassado pelos acontecimentos, completamente
desfasado do seu tempo? Um género de vingador do espírito medieval, desse vil
espírito convenientemente massacrado e irremediavelmente varrido do mapa
europeu pelos ventos impiedosos da História? Ou então encarnará uma espécie de
príncipe nostálgico da idade das trevas, um protótipo esquisito, onde se
combinam de forma harmoniosa e escandalosa, o tipo dogmático, o tipo simpático
e o tipo bonacheirão? Como classificar esse estranho ser, disposto a trazer de
volta os obscurantismos religiosos esmagados pela modernidade e pelo martelo de
Nietzsche? Não passará, enfim, de um simples e simplório – embora extremamente
erudito - inquisidor tardio?
Pois
um facto parece certo. Tivesse nascido três séculos antes, e certamente não
teríamos sido brindados com e pelo fenómeno
Chesterton. De facto, a sua obra só se compreende perspetivada a partir de
uma cultura europeia secularizada, já totalmente alheada e estranha ao espírito
religioso (ao espírito, vá). Após os efeitos devastadores perpetrados pelo protestantismo,
pelo Iluminismo, pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial, o
cristianismo – nomeadamente na sua versão católica – viu-se apeado novamente
para as catacumbas – quando não para as masmorras e guilhotinas. Se nos tempos
medievos, as pessoas nasciam num ambiente cristão, cresciam, fortaleciam-se e
tornavam-se adultas no seio familiar, aconchegante e firme dos valores
cristãos, seguras da compreensão de si, da dos seus vizinhos e da do seu mundo,
repousando serenamente e confiadamente na equivalente retribuição por parte dos
demais, nos dias de Chesterton a cosmovisão era outra. Na ausência dessa aura,
o autor sentiu-se obrigado a levar a cabo a tarefa de levantar o pó do
catecismo, de aclarar e esclarecer a história dos combates da Igreja, de
iluminar e eliminar as falsas lendas negras que se foram construindo em torno
do Magistério e do seu percurso milenar, de polir as vetustas verdades, e de
separar, navegando-as, as águas turvas do ateísmo militante nas suas variadas e
multiformes facetas – quando não a andar sobre elas.
Qual Pedro, qual Paulo,
dois mil anos antes, o criador do Padre
Brown sentiu necessidade de evangelizar
os contemporâneos, de mostrar a beleza, a justiça, o bom-senso, a verdade eterna dos dogmas preservados na Santa
Igreja. Em vez de fariseus e saduceus, em vez de gregos e romanos pagãos, em
vez de gregos romanizados ou de romanos helenizados, deparou-se com comunistas,
socialistas, ateus, evolucionistas, relativistas, orientalistas, espiritistas,
capitalistas – e até neo-pagãos fascistas e nazis. Nos seus célebres debates e
disputas acalorados, trouxe ao panorama intelectual moderno conceitos
esquecidos e considerados inapropriados - quando não ofensivos ou risíveis,
consoante a sensibilidade, a tolerância, a disposição e o humor dos oponentes –
tais como a Queda, a Ressureição, a Verdade, a Heresia, o Milagre, o
Senso-Comum – Deus.
Haverá
sempre aqueles que confortavelmente sentados (alguns decerto deitados) nas suas
cátedras, apontarão o dedo ou cerrarão os punhos, enquanto consistentemente
esperneiam de raiva, indignando-se e rangendo os dentes, rasgando as vestes com
tais apologéticas: afirmarão que se trata de nebulosidades retrógradas, estados
de alma petrificados e putrefactos, desenlaces inevitáveis da caricata,
desastrosa e desumana falta de educação e de escolaridade; resultado eminente
da ausência de cultura e de formação académica – sintoma inequívoco de
analfabetismo.
Neste
instante, somos compelidos a condescender com esses: definitivamente, não é nos
curricula atuais que vamos encontrar
a Salvação – nem sequer um salvamento momentâneo. No entanto, por caridade, e
apenas por breves momentos - comprometemo-nos desde já -, vamos fazer-nos seus
convidados e combinar acertar agulhas; vamos pois então, quais inapropriados e
indignos penetras, consentir na sua tese – anunciaremos que professar e
defender a fé cristã é sinal inequívoco de superstição, ignorância e
estultícia. Por conseguinte, com toda a humildade de que somos capazes, com
todo o reconhecimento e respeito que essas entidades nos provocam, invocaremos
a sua sagaz sabedoria e faremos um apelo à sua paciência para connosco: através
das nossas parcas e difusas capacidades de expressão, ousaremos questionar as
venerandas sumidades com duas ou três perguntas acerca do catecismo - algo ao
nível da catequese da nossa adolescência. Ou então, ainda recorrendo às nossas
toscas palavras, elaboraremos de forma grosseira uma ou duas questões
relacionadas com a história da Igreja; ou outra hipótese, tentando não abusar
do imerecido beneplácito para connosco, colocaremos, sem qualquer retoque
polido pelo verniz da douta sofisticação, uma singela demanda acerca de um
marco histórico da Idade Média.
-
Oh, meu Deus! Mas não é que tais eruditos desconhecem aquilo que nós – os
incultos e atrasados - na nossa infância já tínhamos como adquirido?! Que
ignoram por completo o mais básico fundamento do catecismo?! Que são incapazes
de destrinçar entre uma simples ideia relacionada com a fé e uma matéria do
foro da história? Que não dominam sequer os mais imberbes acontecimentos dos
Evangelhos? Que colocam palavras ditas por Pilatos na boca de Jesus?! Que
trocam Pedro por Paulo, mesmo quando o sujeito em causa é Judas Iscariotes? Ou
que – mais grave - assumem poses de um alto gabarito e de uma sobranceria
intelectual, quais detetives do Iluminismo, sobre aspetos supostamente
escondidos da incauta massa popular, que qualquer edição bíblica contém?! Estes
catedráticos do livre-pensamento
chegam ao cúmulo de ser bíblicos em matéria histórica e históricos em matérias
de fé! Como se a explicação sobre a Santíssima Trindade radicasse numa pedra
solta da Muralha de Adriano! Tais vendilhões da sabedoria seriam mais
apreciados por nós se ao menos dominassem os princípios fundamentais do
cristianismo e discernissem os principais fenómenos históricos da – afinal -
sua própria civilização.
Invocar
superioridade intelectual e moral em temáticas onde se aventuram como que em
terra incógnita, é um comportamento, que apesar de merecer o epíteto de
temerário, é igualmente capaz de aguentar o de infeliz e o de ridículo – além
de ser desonesto por inteiro. A dura expressão “como um boi a olhar para um
palácio” arroja à superfície da mente, e não será completamente desajustada nem
sem sentido. “Mas um bovino não argumenta”, poderão retaliar com toda a justiça
e propriedade; ao que responderei: – “se bem que é capaz de permanecer dias a
fio sem emitir qualquer som”. “Com as devidas distâncias, reparem no caso de
São Tomás, alcunhado como o boi mudo”.
E a santidade sabe perfeitamente que o silêncio pode ser de ouro.
Em
cristalino contraponto, os defensores da Igreja sempre conheceram extremamente
bem os seus adversários. Alain de Lille, por exemplo, o autor de De fide catholica contra haereticos, nos
seus veementes ataques aos cátaros e valdenses, aos judeus e muçulmanos no
século XII, refutou-os de forma brilhante no terreno das suas teses, ideias e
valores. Claro que para tal é necessário esforço e entrega – e nestes tempos que
vão correndo só se tem coragem para pedir e reclamar, e nunca para oferecer
(mas a isso não se chama coragem, mas cobardia). Que não restem dúvidas:
oferecer um combate cerrado é uma forma quase sublime de homenagem; um
reconhecimento de capacidade e de humanidade no outro - inclusive quando os
confrontos aparentam a agressividade dos campos de batalha e os fiéis parecem
vestidos com uma armadura agressiva e ofuscante – dir-se-ia intolerável!
Permitam que vos assegure: os cristãos jamais perderiam tempo com monstros ou
bestas. Ao invés, encaram a disputa como um arrufo fraterno entre irmãos –
embora sobre pressupostos de assumida importância. São implacáveis para com os
pecados e compreensivos para com os pecadores.
Neste
momento, gostaríamos de invocar as palavras de consolo do abade Foulques de
Deuil ao recém castrado Abelardo, que por muitos clérigos seus contemporâneos
era tido como herético: “faz pouco tempo, a glória deste mundo te cumulava de
seus favores e não se imaginava mais que estivesses exposto aos reveses da
sorte. Roma te enviava seus filhos para os instruíres, e ela, que outrora
inculcava em seus ouvintes o conhecimento de todas as ciências, mostrava,
enviando-te seus escolares, que tua sabedoria era superior à dela. Nem a
distância, nem a altura das montanhas, nem a profundidade dos vales, nem as
estradas repletas de perigos e infestadas de bandoleiros nos impediam de se apressarem
em ir até a ti. A multidão dos jovens ingleses não temia nem a travessia do
mar, nem suas terríveis tempestades; a despeito de todo o perigo, desde que ela
ouvia o teu nome pronunciado, acorria até a ti. A longínqua Bretanha te enviava
seus filhos para os educares; os angevinos te prestavam homenagem com os deles.
Os poitevinos, os gascões e os espanhóis, a Normandia, a Flandres, o alemão, o
suábio não cessavam de proclamar e louvar o poderio do teu espírito. Não digo
nada de todos os habitantes da cidade de Paris e das partes mais distantes,
como mais próximas, da França, que estavam sedentas de teu ensino como se não
houvesse ciência que não fosse possível aprender contigo”.
Pode
vir como uma surpresa, mas o ensino era tido em muita boa conta nos tempos
medievais. Tem-se o péssimo hábito de abusar duma ideia feita à pressa acerca
deste ponto, como se rebolando variadas vezes em cima do falso ele se tornaria
verdadeiro. Obviamente, que comparando com os dias atuais, o ensino, além de
estar extremamente longe do regime de obrigatoriedade, não se encontrava
massificado. Partes consideráveis da população não podiam despender do tempo,
dar-se ao luxo de abandonar a família, de sonhar sequer em esquecer os deveres
para com a comunidade – estava-se num era do cumprimento do dever e do respeito
das obrigações! Mas não se pode esquecer que incontáveis indivíduos se acotovelavam
em frente ao Mestre, colados às suas sábias palavras – em muitas ocasiões,
desconfortavelmente sentados nas frias e ásperas ruas, enquanto as pernas
descansavam das muitas dezenas de quilómetros percorridos e com os estômagos a
insistir em emitir ruídos estranhos com a fome de dias. E que marcantes
professores a Idade Média (e os seus alvores) nos deixou: Santo Ambrósio, Santo
Agostinho, Santo Anselmo, São Vítor, São Bento, São Boaventura, São Bernardo,
São Alcuíno, o já referido Alain de Lille, entre muitos outros - além do
infeliz Abelardo. Universitas, a
universidade, orgulho tremendo dos pais dos nossos jovens e de onde jorram
fornadas de mentes livres e seculares
a torto e a direito, nasceu nestes séculos católicos – o Papa Inocêncio III é o
fundador da prestigiadíssima Universidade de Paris no século XIII.
Paulo Pinto
Olá, Gostaria de saber de qual livro retiraram essa citação do Chesterton:
ResponderEliminar"Todo o Mundo Moderno se divide entre Progressistas e Conservadores. O papel dos Progressistas é cometer erros continuamente. O papel dos Conservadores é evitar que os erros sejam corrigidos."
Quero coloca-la em minha monografia.
Caro Lucas,
ResponderEliminarAqui vai:
"The Blunders of Our Parties", Illustrated London News, 1924-04-19.