Nesta nossa pequena introdução a
Chesterton, insistimos um pouco na duração denominada Idade Média, pois ela
mereceu uma substancial atenção por parte do autor inglês. Não poderia ser de
outra maneira: além de mal estudada pelos teóricos e desconhecida pelo público
em geral, a época era (é ainda) vítima de boatos e vitupérios generalizados,
lendas negras e preconceitos intoleráveis, enquanto se foi tornando ao longo do
tempo objeto de um acervo histórico sem qualquer ajuste nem integridade: a idade das trevas. Nenhuma outra época
é tratada de semelhante forma por profissionais e amadores da História e do
Pensamento.
O nosso autor reconhecia que
escalpelizar os séculos em que o cristianismo surge e em que acaba por se
afirmar, era imprescindível para o leitor interessado poder reter uma
perspetiva reta, equilibrada e verdadeiramente equidistante do conjunto.
Reencaminhar a sociedade para essa era remota ou desejar imbuir nos espíritos
seus conterrâneos o seu perfume e carisma particulares, não foi o ofício a que
se impôs. Estava longe de ser um romântico revivalista. Não era de todo um
pré-rafaelita. O seu foco foi sempre o presente, a sua única real preocupação
foi o seu quotidiano – a situação da sua Inglaterra e do mundo. O trabalho de
arqueologia (uma espécie muito sui generis
de “arqueologia do saber”) que levou a cabo, obedeceu a uma necessidade lógica
e operativa: dar a conhecer a realidade sentida e vivida nos primeiros séculos
cristãos. Em vez de oferecer um inventário cronológico ou de enveredar por uma
desconstrução polemista, preocupou-se em apresentar uma fenomenologia histórica.
Nesse enquadramento, é lícito apelidar a sociedade medieva como um corpo místico.
É extremamente difícil para nós -
concedo sem qualquer azedume ou estranheza - conceber sequer uma aproximação
honesta a tal conceito social e comunal. Estamos muito arredados e
completamente alheados desse espírito de proteção e do dever (já o dissemos). Porém,
não há escapatória para um ser humano humilde e honesto, homem ou mulher sério
e de mente aberta, para o cidadão
coerente contemporâneo que deambula pelas ruas apinhadas e confusas das nossas
cidades individualistas. Apresenta-se como a única alternativa possível para
olhar a época de relance sem preconceitos de qualquer origem. Só desta forma
poderemos entender o acontecimento místico das Cruzadas.
Sem dúvida alguma, Chesterton dominava
muito bem os heréticos seus contemporâneos. Já anteriormente os referimos.
(Especial atenção tiveram os socialistas fabianos George Bernard Shaw e H. G.
Wells e os calvinistas). Além das obras Ortodoxia,
Heréticos, O Homem Eterno, de salientar duas autênticas obras-primas no campo
da biografia e da hagiografia: São Tomás
de Aquino e São Francisco de Assis.
Através do estudo da vida destes dois santos, cada um com histórias de vida e
características pessoais nos antípodas do outro, o nosso escritor conseguiu
demonstrar a riqueza e a grandiosidade do catolicismo: Deus aprecia a
diversidade e como tal, escolhe os aparentemente incompatíveis polo sul e
equador para o demonstrar inequivocamente: envia um boi mudo da Sicília e o
primeiro sitgmata para colorir a face
da terra. O lado literato e o lado romanesco da vida. Nenhum complementa o
outro, nenhum obscurece o outro: trabalham ambos para a mesma Obra; são ambos
servos do mesmo Senhor, contribuindo com virtudes e qualidades diversas. Um
moderado e um apaixonado de mãos atadas à Palavra de Deus. Jamais se
contradisseram, e sem nunca se terem cruzado nesta vida, concordaram em tudo o
que é fundamental.
Assim é na vida de todos os santos:
como humanos, são únicos e irrepetíveis, como cristãos, são exemplares, todos
convergindo para o mesmo centro. Mas nessa inconsciente convergência, desferem,
quantas vezes inocentemente, inexoráveis golpes profundos nas teses dos
inimigos da humanidade. Pois para um cristão, um inimigo de Deus é um oponente
sério e perigoso da humanidade. Representa o mais grave atentado contra ela. As
heresias e os heréticos, antigos e modernos, que Chesterton aborda ao longo da
sua vida e obra, têm essa vil duplicidade. Prejudicam o Homem e desrespeitam
Deus.
Talvez nem seja necessário ir ao fundo
da questão. Analisemos a leitura chestertoniana sobre determinado e
determinante fenómeno. Durante décadas, o simples e anónimo cidadão romano
convivia com uma estranha ideia na cabeça: é preciso destruir Cartago – delenda est Carthago. Existia alguma
coisa de mórbido com aqueles fenícios, qualquer coisa quase de inominável. De
modo que não bastaria conquistar, explorar ou capturar – era imperativo
aniquilar. Inclusivamente no Senado, tornou-se prática corrente muitos oradores
finalizarem os seus discursos com esse estribilho, parecendo querer assegurar
que permaneceria intacto através dos tempos para ser devidamente decifrado
pelos vindouros. Como uma marca ou sinal de eminente perigo. Tivessem sido
melhor instruídos ou mais esclarecidos, os simples homens rurais da república
saberiam denominar o mal - Baal/Moloque.
Esse pérfido deus dos cartaginenses
alimentava-se de crianças e de auto-mutilações adultas. Enquanto o pacato
agricultor romano orava aos seus deuses domésticos feitos de barro, oferecendo
pequenos sacrifícios animais e acendendo algumas velas, no outro lado do
Mediterrâneo, a poucas milhas da Sicília, matavam-se impiedosamente milhares de
crianças. O célebre Aníbal, o tresloucado cartaginês que levou dezenas de
elefantes a percorrer meio continente europeu e a atravessar os Alpes, que
dizimou à fome e ao frio os seus correligionários antes de poder ter à
disposição a vida dos seus inimigos latinos, quantos infantis não terá
sacrificado ao pérfido deus antes do seu monumental exército se ter feito ao
caminho? Que quantidade de sangue inocente derramado terá sido adequado para
uma empresa desse calibre? Baal certamente não ficaria satisfeito com pouco.
(Séculos mais tarde, no outro lado do Atlântico, os europeus iriam assistir a indescritíveis
espetáculos semelhantes).
A Roma pagã – e não somente os Cipiões -
não descansou enquanto não destruiu essa maldita cidade-estado, adepta sinistra
de um paganismo pérfido e cruel, arrasando-a até aos alicerces, e no fim - numa
ação bem mais elevada do que um mero ritual, num efeito bem mais que simbólico
-, para que nada de semelhante pudesse voltar ali a despontar, salgou o chão –
e Cartago nunca voltou a erguer-se. Tratou-se de um caso único na política de
expansão romana. Em vez de aumentar o seu território, em vez de aproveitar as
imensas riquezas e infraestruturas da poderosa cidade, em vez de jogar a
cartada diplomática em que era mestre, a república romana optou conscientemente
pela total e irreversível aniquilação. Há paganismo e há paganismo – é
imperativo proceder à aceção de superstições.
Na sua interessantíssima aportação ao
acontecimento Abraão-Isaac, Chesterton insiste no escândalo que reveste a ordem
de Deus: o pai oferecer em sacrifício o seu próprio (e único) filho. Por se
tratar verdadeiramente de um escândalo (escândalo em sentido bíblico) é que o
episódio assume uma importância decisiva e elucidativa. Efetivamente, se se
tratasse de um ato comum entre os judeus - de resto, ordinário entre vários
povos pagãos - o imperativo divino não revestiria o carácter exclusivista do
insólito para o povo hebraico. A verdade é que Deus não permitiu. Em vez de
Isaac, Abraão apenas terá de oferecer em holocausto um animal, prática que se
manterá dentro dos desígnios divinos até à proclamação da Nova Aliança.
Jesus, no exorcismo ao geraseno, não
hesita em aceder ao pedido do demónio Legião, permitindo que ele possua a horda
de porcos, que de resto, logo se precipita no mar. Afinal, as aves do céu não
semeiam nem colhem, não dispõem de celeiros, mas mesmo assim Deus as alimenta –
e não somos nós, homens e mulheres, muito mais que as aves? É a mesma conceção
de São Francisco quando canta a beleza dos animais e da natureza: o Cântico das Criaturas. Está
completamente arredado de qualquer paganismo ou naturalismo, pois filtrado pela
visão de Deus. Como sempre acontece com todo o paganismo e com todo o
naturalismo, a ligação direta e a submissão passiva à natureza acaba por
resultar em algo que é contranatura. Assim com os gregos, com os cartaginenses,
e em menor grau, com os romanos. A estrita observância do natural em nós, além de rebaixar-nos ao nível da abjeta
bestialidade, é um impedimento de aceder ao sobrenatural – a Deus. A conexão e
a promiscuidade com a natureza amesquinha-nos ao ponto de não sermos nada mais
que lama. O corte é profundo, acabando por ser uma fronteira dimensional, em
que o Homem se vê afastado do Senhor e a sua alma conspurcada.
Foi precisamente esse o trabalho de
sapa da Idade Média: após séculos de paganismo desenfreado, a Igreja viu-se
forçada a equilibrar o homem e a sua conduta, ao mesmo tempo que procedia a uma
separação entre o trigo e o joio. A torre da catedral gótica teve que romper a
basílica clássica pagã. Nada se perdeu, e como tudo se transformou! Até que São
Francisco pudesse cantar hinos fulgurantes à irmã natureza, até que Petrarca
pudesse surgir em todo o esplendor literário, foi um longo percurso que teve de
ser trilhado. Atentemos nas palavras de Etienne Gilson, fazendo um paralelo
entre Santo Agostinho e o poeta de Arezzo: “ele escrevia em latim melhor do que
o próprio Petrarca, logo Petrarca só podia respeitá-lo; era um santo, logo
Petrarca podia confiar-lhe o cuidado de sua alma; esse santo sofrera as mesmas
desordens de costumes que Petrarca, logo podia compreender Petrarca; ele se
curara, logo podia curar Petrarca”, e “podia-se ser cristão, e sê-lo até a
santidade mais sublime, sem se crer obrigado a desertar os clássicos”. O Bispo
de Hipona significou para Petrarca a possibilidade do convívio pacífico e
frutífero entre os grandes autores pagãos e o cristianismo; que havia uma ponte
entre Cícero e Santo Ambrósio.
Em abono de Chesterton e em detrimento
de Foucault, podemos inferir que a sua obra não pertence ao seu tempo - ou a
qualquer outro: ela é eterna. Nela, o
inglês defende, disponibiliza, analisa e reergue o que designa por Filosofia Cristã, que mais não é – e é
muito, ou melhor, é tudo! – do que o catecismo e a tradição católicas. Tal como
o Concílio Vaticano II, não erige nenhum novo dogma, não traz qualquer novidade
metafísica ou ontológica, não propõe um recente e brilhante princípio
filosófico ou teológico: simplesmente remete a mensagem dos evangelhos – a Eterna Revolução - para os
condicionalismos com que diariamente se convivia em Inglaterra, na Europa e no
mundo.
Como bom católico, Chesterton
participou ativamente na obra da Igreja – e desse modo, cumpriu a vontade de
Deus. Acusar este pensamento de ser apropriado apenas para velhos e para
indivíduos quadrados é um erro
indesculpável em matéria de geometria e uma notória falta de preparação, quanto
mais não seja, em ciência política. É confundir Euclides com César. Além de
demonstrar uma total e completa ignorância sobre aspetos característicos do
conservadorismo, acrescenta a uma longa lista de ignorância teológica e
filosófica, um preconceito contra os idosos que não podemos deixar de lamentar
e reprovar. Além de ser contraproducente para os proponentes da tese: a velhos
iremos chegar todos (– com a saúde de Deus). Para quê estar antecipadamente a
dar tiros nos pés?
Paulo
Pinto
2015
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