O sentido original da filosofia é o amor à sabedoria. A filosofia tem não apenas sistema, mas uma
organização coerente. No entanto, se lhe faltar visão, i.e., penetração na vida humana concreta e no mistério do ser – o facto misterioso e fascinante de que existe algo que não é o nada – o filósofo falha o seu papel de ser uma grande alma.
É precisamente aqui que a filosofia
cristã tem um vazio para preencher, um contrapeso que equilibre a balança no
sentido da sanidade. Chesterton, ao nunca procurar ser sistemático porque não era um académico, nunca pretendeu ser um filósofo profissional, mas seduz-nos pelo seu pensamento, convidando-nos a segui-lo e a sistematizá-lo; dir-se-ia que construiu uma via em aberto.
Em contrapartida, ele sempre seguiu a
distinção fundamental expressa por Platão entre o filosofar responsável e irresponsável. Filosofar
irresponsavelmente é conduzir a busca pela sabedoria divorciada das exigências
da experiência quotidiana, baseada apenas na mera abstracção, abandonando o
sistema assim construído à condição de um puzzle, estático, não possuindo mais movimentos do que um peixe num aquário.1
Se as provas da existência de Deus se
encontrarem na natureza e na experiência prática quotidiana, à medida que nos
separamos delas por abstracção excessiva, adquirimos uma visão distanciada,
fria e seca, dessas mesmas provas, reduzindo-as a um mero jogo conceptual ou
retórico. Nós apenas podemos provar aquilo que está ausente, o que está
presente deve ser revelado, não provado.
A Santa Igreja ensina que Deus, sendo o
princípio e o fim de todas as coisas, pode ser conhecido pela luz natural da razão humana, como é
afirmado em Rom 1:20, “As suas perfeições invisíveis, tanto o Seu
eterno poder quanto a Sua divindade, tornam-se visíveis quando as suas obras
são conhecidas pela inteligência”.
FILOSOFIA E TEOLOGIA
Na medida em que um crente baseie as
suas afirmações apenas na Revelação permanece como crente; mas quando o crente
defende as suas afirmações com base na razão, torna-se um filósofo de uma
filosofia cristã: a ortodoxia. Esta foi a posição de Chesterton que tratou de
colocar sempre as suas afirmações no território da razão e para fora do terreno
de uma Igreja a que, até 1922, não pertencia. Como ele dizia “Eu estou no adro e indico a quem passa o caminho para dentro da
Igreja”.
A filosofia tem que levar em conta que nenhum homem pode pensar sozinho, porque isso o afasta de um princípio fundamental da vida: nenhum homem é uma ilha. Portanto, a comunhão dos santos é não só um conceito teológico como inteiramente filosófico.
A filosofia tem que levar em conta que nenhum homem pode pensar sozinho, porque isso o afasta de um princípio fundamental da vida: nenhum homem é uma ilha. Portanto, a comunhão dos santos é não só um conceito teológico como inteiramente filosófico.
Uma outra ideia de Chesterton, a
democracia dos mortos, é não apenas teológica, como inteiramente filosófica,
porque inteiramente humana. Nas palavras de T. S. Eliot, a comunicação dos mortos é uma projecção flamejante para além da
linguagem dos vivos.
Quem hoje poderá afirmar que a sua imaginação, imaginário ou ideário, as suas imagens da vida nada têm que ver com alguns pensadores mortos? Aristóteles, Platão, Heráclito, São Tomás, Kant, Marx, Freud, Wittgenstein, Foucault, etc., continuam a determinar o pensamento ou os pensamentos modernos. O presente carrega sempre a lição do passado. O crente é um homem precedido e tem consciência disso, porque toda a época tem a sua miopia e a sua mancha cega. É o crédulo que, sendo um homem precedido, não admite a precedência.
Quem hoje poderá afirmar que a sua imaginação, imaginário ou ideário, as suas imagens da vida nada têm que ver com alguns pensadores mortos? Aristóteles, Platão, Heráclito, São Tomás, Kant, Marx, Freud, Wittgenstein, Foucault, etc., continuam a determinar o pensamento ou os pensamentos modernos. O presente carrega sempre a lição do passado. O crente é um homem precedido e tem consciência disso, porque toda a época tem a sua miopia e a sua mancha cega. É o crédulo que, sendo um homem precedido, não admite a precedência.
A história não é a noite escura em que
todos os gatos são pardos nem é um elevador gigante que conduz os homens à
época em que por acaso nos encontramos. Estes dois erros de Hegel são
claramente apontados por Chesterton.
A tradição é exactamente a arma mais
poderosa que esta geração possui para relativizar os relativistas. O dogma
relativista bem expresso de dentro, por G.B. Shaw - “a única regra de ouro é
que não existem regras de ouro” - não é um paradoxo, é uma contradição. Todo o
relativista é um dogmático.2
A civilização cristã europeia foi
construída com base numa imagem, numa pessoa, numa face, Jesus Cristo. Os
princípios da dignidade humana fundam-se exactamente neste princípio
imagiológico: cada homem é uma máscara de Deus.
Deste conceito resulta uma enorme
dissonância com Hegel: não só o estadista é um mero homem, sujeito a todos os
erros e limitações dos outros homens, conceito a que Chesterton chama a Doutrina da Queda (o que o leva a ter
aversão por todas as formas de despotismo e a defender a democracia), como as
críticas do seu mordomo são inteiramente válidas, porque o seu mordomo vive no
mundo dos homens e não no mundo artificial da política e dos gabinetes (e não é
legítimo afirmar, como Hegel, que as críticas do seu mordomo, tal como as dos
professores, ao carácter das figuras históricas, parte apenas da inveja ou da
mesquinhez).
O MÉTODO
Qual a atitude correcta para se apreender
a realidade? A resposta é esquecê-la e voltar a olhá-la com os olhos de uma
criança. “Se não fores como crianças não
entrareis no Reino dos Céus!”
A percepção vence o argumento. Assim,
na descrição da realidade, a ilustração é superior à argumentação, porque, como
dizia Dostoiévski pela boca de Raskolnikov, a um argumento sempre se pode
contrapor outro argumento, mas nada se pode opor à evidência, ao absurdo, à
iluminação ou “insight”.
Chesterton, atendendo à sua
hermenêutica (interpretação) da realidade, seguiu uma epistemologia
(teoria, método e validade do conhecimento): descreveu o seu estilo como a descrição de coisas familiares a partir de
ângulos insuspeitos, acendendo novas luzes na imaginação, por forma a que as
possamos ver com a inocência da surpresa.
O seu método consistia em fazer ver,
não em demonstrar logicamente, e é por isso que sentimos um estremecer, “um
acordar”, quando o lemos. Ele acreditava que o melhor que podia fazer pelo seu
semelhante era pô-lo a pensar de tal modo que ele conseguisse ver da mesma
maneira que Chesterton via, era portanto “mostrar”, não “demonstrar”, “porque o
mais forte dos desejos de conhecimento é o desejo de saber qual o propósito do
universo e qual o nosso propósito.”
A sua preocupação fundamental era
relacionar qualquer verdade com o sentido da vida humana e, ao fazê-lo, estava
a pensar filosoficamente, no sentido em que estava a encontrar o sentido de ser
humano. Chesterton preocupava-se com as ideias porque “não podes virar uma
coisa do avesso se não sabes qual é o lado direito” e porque para agir,
primeiro tem que se pensar no que se vai fazer e como se vai fazer, de outro
modo pode sair asneira.
Chesterton não foi um filósofo que
tenha feito uma contribuição original para a história do pensamento humano
sobre a realidade do real, no sentido em que o foram Platão, Aristóteles, Tomás
de Aquino, Descartes, Kant, Hegel ou Kirkegaard. Mas ele fez pelo menos duas
grandes contribuições que continuam de plena importância na actualidade:
- Ele foi insuperável no modo como
satirizou os pontos fracos da filosofia da sua época.
- Embora a sua filosofia não fosse
original, o modo de a expressar era inteiramente original.
Ele esteve sempre interessado nas
ideias mais importantes, nas coisas últimas; ele não era apenas um amante da
sabedoria, ele possuía uma sabedoria intuitiva. Ele tinha um pensamento
que Hegel caracterizou como “especulativo”, i.e., pensava num assunto no
sentido em que entrava nele, o via de dentro e o virava do avesso para detectar
incongruências. Chesterton nunca utilizava a razão como sinónimo de lógica, uma
vez que via o que “ligava” as coisas em vez de provar essa ligação.
Sobretudo porque utilizava o senso comum, a chamada “convergência de
probabilidades” (de J. H. Newman). A “certeza” de Chesterton assenta naquilo de
que nenhum homem são duvida.
E a concordância com esta atitude vem
de um lado insuspeito, Bertrand Russell. Em Os
Problemas da Filosofia, Bertrand Russell discute a realidade; afirma que
realmente existe um mundo exterior. Por outras palavras, que existe uma
realidade para além dos nossos sentidos e dos nossos pensamentos. Após concluir
que tal realidade existe, Russell escreve:
“O argumento que nos trouxe a esta
conclusão é sem dúvida menos consistente do que desejaríamos, mas isso é uma
característica de muitos argumentos filosóficos; e, portanto, vale a pena
determo-nos um momento no seu carácter geral e na sua validade. Todo o
conhecimento tem que ser construído sobre as nossas convicções instintivas,
algumas mais fortes do que outras, enquanto que outras foram, por hábito e
associação, enredadas noutras crenças, não realmente instintivas, mas no que é
falsamente suposto pertencer ao que é aceite instintivamente.
A filosofia deve mostrar-nos a
hierarquia dos nossos credos instintivos, começando por aqueles em que
acreditamos mais firmemente, e mantendo-os tão livres de misturas irrelevantes
quanto possível. Deve ser evidente que na sua formulação final as nossas
crenças instintivas não se contradigam; antes formem um Sistema harmonioso. Só
se pode recusar uma crença instintiva na medida em que ela colida com outras;
portanto se elas se harmonizarem entre si, todo o sistema é confiável.”
Com a ressalva de ser, naturalmente em
Russell, um argumento que exclui a fé na transcendência, com ele lá se vai
Descartes e a dúvida metódica, Kant e o idealismo alemão…
Chesterton não tinha o raciocínio
ordenado, progressivo e sistemático de um académico como Lewis. Isso é certo.
Mas Foi Chesterton quem levou Lewis até ao argumento ontológico de Jesus
Cristo. O Jesus Cristo resumido por Lewis na tríade, mentiroso/louco/Deus, é
indicado por Chesterton em três páginas do capítulo A História Mais Estranha do Mundo do livro O Homem Eterno. Chesterton viu e levou lá Lewis. Lewis
compreendeu, sistematizou e explicou-nos para que víssemos claramente.3
A Ética e a Lei
O episódio do diabolista trouxe a
Chesterton a necessidade imperiosa de traçar limites, porque de outro modo não
existe modo de delimitar e julgar a acção do mal. Esses limites são essenciais
à existência da liberdade, não a anulando mas libertando-a.
Ao definir limites, o homem é absolutamente livre dentro e fora desses limites, sabendo no entanto que ao ultrapassar os limites, terá que pagar o preço da responsabilidade. Este preço pode ser de natureza moral, religiosa, legal ou social. Mas sem estes limites à liberdade individual, não existe modo de respeitar a liberdade de todos. Em O Poeta e os Lunáticos, G. Gale interroga-se sobre o que é a liberdade, concluindo que ela é a capacidade que alguém pode ter de ser ele próprio. A liberdade consiste na auto-limitação. Encontramo-nos limitados do meio exterior físico pela nossa pele e do meio existencial pela nossa mente.
Ao definir limites, o homem é absolutamente livre dentro e fora desses limites, sabendo no entanto que ao ultrapassar os limites, terá que pagar o preço da responsabilidade. Este preço pode ser de natureza moral, religiosa, legal ou social. Mas sem estes limites à liberdade individual, não existe modo de respeitar a liberdade de todos. Em O Poeta e os Lunáticos, G. Gale interroga-se sobre o que é a liberdade, concluindo que ela é a capacidade que alguém pode ter de ser ele próprio. A liberdade consiste na auto-limitação. Encontramo-nos limitados do meio exterior físico pela nossa pele e do meio existencial pela nossa mente.
Esta necessidade de traçar uma linha,
define a individualidade, a propriedade e a liberdade. Mas ela é também a
solução para um outro problema: o problema do julgamento. Nenhum homem está em
posição de julgar, mas o julgamento é absolutamente necessário à vida gregária
e à organização social. Portanto, existem mais garantias de existência de um
julgamento justo se ele for guiado por leis, ou seja, por limites, que levam em
consideração valores morais, como o inestimável valor da pessoa humana, da
liberdade e da responsabilidade, que são sinónimos de dignidade humana –
ninguém se lembra de exigir um comportamento responsável a um animal.
“Quando se destroem todos os pesos e
medidas, se nega a existência de tabelas ou normas, se destroem as tabelas de
cálculo ou os instrumentos de medida que a sabedoria do homem fabricou; sim, é
difícil dizer o que é o sexo normal e a perversão; o que é religiosidade e
fanatismo. É especialmente difícil quando se começa a dizer: «A única regra é
que não há regras».
Isto torna-se especialmente difícil
quando se considera que todos os nossos antepassados eram uma corja de idiotas
num deserto ululante de ignorância; que os seus ideais eram fetiches e dogmas
fantasiosos. Isto torna-se penoso se se deixa sistematicamente de fora a
possibilidade de que a humanidade tenha uma experiência de moralidade –
sobretudo da má moralidade. Isto parece-me consistir em levar longe demais o
princípio de que ninguém tem o direito de apontar qual é o caminho.”
“Ninguém tem o direito de falar de
progresso sem antes definir o que é o bem.”
António Campos
1
Talvez seja por isso que Chesterton não obteve reconhecimento no meio
literário. Até Harold Bloom - que editou uma colectânea sobre Chesterton - exclui
Chesterton da sua classificação dos génios da literatura, muito provavelmente
pela mesma razão que criticou T. S. Eliot: A sua opção pelo judaísmo gnóstico e
cabalístico afastou-o da compreensão fundamental da sua própria religião
revelada, sobretudo ao não aceitar que Deus possa coexistir com o livre
arbítrio humano e o problema do mal.
2 É
também o mote das sociedades secretas: tudo
é relativo, excepto o facto de que tudo é relativo.
3 Chesterton
não tinha um sistema demonstrativo que pudesse ensinar e convencer outros da
sua validade. Nesse sentido está desligado da filosofia moderna. O seu método é
mais ilustrativo, uma aufklarung, um
novo aude sapere, ousa saber. Ele não
impõe o seu sistema para fazer prova de algo; ele leva-nos lá e deixa-nos
contemplar a realidade e retirar as nossas próprias conclusões.
Desse ponto de vista o seu método assemelha-se
à dialética de Sócrates. A sua ironia não assume a forma de questionamento
formal, mas de paradoxo. Ao expor contradições internas numa afirmação ou num
conceito, ao fazê-lo ver de um outro prisma, ele obriga à reformulação – é uma
espécie de maiêutica.
Ele mostra-nos uma convergência de
probabilidades antes insuspeitas e a direcção certa.
Esse era também o modo que exercia na
conversação, mesmo em casa com convidados. Referia sempre algo que alguém tinha
previamente afirmado, incluindo a pessoa, e depois levava a conversa numa outra
direcção sem expor a pessoa que referira, mas incluindo-a.
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