Aqueles que alegam não existir paralelo
entre Chesterton e Dostoiévski apoiam-se em
diferenças no que respeita à complexidade (mas não à dualidade) das personagens, à atmosfera psicológica e à densidade dos ambientes. Outra grande
diferença existe, nas histórias de detectives, na descrição do criminoso, não existindo em Dostoiévski um
paralelo para Flambeau ou em Chesterton um paralelo para Raskolnikov.
É verdade que as descrições de
Chesterton, quer de personagens quer de ambientes, são mais pobres, mas ele
próprio admite que o que o preocupa são as ideias e não a descrição dos seus
portadores: “Resumindo, eu não sou um romancista, porque eu vejo os conceitos e
as ideias nus, e não vestidos, numa espécie de baile de máscaras, como
homens e mulheres” (Autobiografia). O seu irmão Cecil já tinha escrito em 1908
que Chesterton via apenas ideias onde os outros escritores viam pessoas. Mas, aquilo que as personagens de Chesterton e de Dostoiévski descrevem não são
simplesmente ideias ou pessoas; o que elas descrevem são tipos: o céptico, o
místico, o agnóstico, o revolucionário, o cientista, o louco, o cínico, o
excêntrico, o homem comum. Ambos confrontam estes tipos, as diferentes tonalidades
da alma humana, ora expondo-os ora percorrendo com eles a viagem, do
desespero à esperança.
Um dos maiores pontos de encontro entre
Chesterton e Dostoiévski reside precisamente nas histórias de detectives, não
exactamente do lado do criminoso – embora em ambos exista uma noção de que o
crime tem uma origem perfeitamente racional, entendível por qualquer ser humano
– mas mais propriamente do lado do investigador. Em Crime e Castigo, a
investigação conduzida por Porfirii Petrovich
encontra paralelo nos heróis detectivescos de Chesterton. Os detectives
de Chesterton continuam o arquétipo iniciado com Petrovich: O investigador que
decifra crimes por uma combinação de incongruência, perspicácia, intuição e
surpresa, além dos métodos policiais mais convencionais, sempre evitando
deduções fantasiosas e tácticas sensacionalistas, ou uma postura egoísta, tão
ao gosto de Conan Doyle.
Em Dostoievski e Chesterton, o crime
resolve-se por uma intermitência de pretensão e reconhecimento. No início, quer
o detective quer o criminoso se representam equivocamente: o criminoso alega
inocência, o detective apresenta-se como incompetente e caótico. O criminoso
interpreta incorrectamente a atitude do detective como genuína; o detective
interpreta correctamente a atitude do criminoso como falsa. No momento do
desenlace, finalmente, o criminoso avalia correctamente o detective e, num momento
suspenso no tempo, ambos os homens experimentam um período de admiração mútua.
Este clímax psicológico final também influenciou Michael Mann, que o incluiu no
argumento do filme “Heat”, com Al Pacino (como polícia) e Robert de Niro (como
assaltante), que experimentam um interlúdio de auto-reconhecimento mútuo.
Os
detectives de Dostoiévski e de Chesterton decifram o caso por intuição, mais do
que por evidência, porque entendem sempre o motivo do crime e se colocam sempre
no lugar do criminoso, tentando pensar como ele. Na verdade, subentendem que
uma distância muito curta separa a virtude do crime, no sentido em que um homem
normal sob determinadas circunstâncias pode ser um marginal, tal como um criminoso pode encerrar em si mesmo um homem perfeitamente
normal.
Em O Segredo
do Padre Brown, o padre explica a Mr. Chase como resolve o crime: "Bem
vê, eu próprio os assassino, por isso sei como foi feito”. O padre explica que
ele partilha a natureza humana com o criminoso e portanto compreende-o. Em O Martelo de Deus: “Eu sou um homem e
portanto tenho todos os demónios no meu coração”. É exactamente por essa partilha de uma natureza caída, essa identificação, que é possível propor ao criminoso uma saída, a conversão. Esta recusa radical do dualismo que observamos em Chesterton e Dostoiévski é uma das facetas mais radicalmente diferentes da narrativa do vilão que é habitual observar no mundo moderno.
Ambos colocam os seus detectives como
pessoas muito comuns, num tempo em que o arquétipo do detective era uma
personagem seca e áspera. Porfirii é um polícia comum, o padre Brown é um
sacerdote, Horne Fisher é um secretário, Gabriel Gale é um poeta, Gabriel Syme
é um amador profissional, um diletante. Os quatro detectives de Chesterton
juntam-se a Porfirii Petrovich como defensores do comportamento humano.
Chesterton escreveu em 1901:
“As histórias de detectives
recordam-nos que a civilização é a mais fantástica das partidas e a mais
romântica das rebeliões.” E ainda: “O agente de justiça é uma figura poética e
original. O romance da polícia é, portanto, o maior romance do homem”.
É curioso que dois outros escritores de
contos policiais, como Dickens e Stevenson, apenas tenham visto Crime e Castigo
como uma narrativa de um estranho crime e de uma estranha ingenuidade do
detective. Para compreender a extensão do drama psicológico, a inovação
literária e estilística e o realismo social de Dostoievski, era necessário a
esses dois escritores criar uma Sónia inglesa, coisa de que não foram capazes,
ou por conformismo ou porque simplesmente ela não existe. No nível filosófico,
o único escritor inglês que aprecia a vastidão do universo dostoievskiano é
G.K. Chesterton.
Ambos procuram a essência da pessoa e,
só depois, reconstituem os limites físicos do ser humano em torno dessa
essência. Ambos criam caricaturas de pessoas; ambos escrevem como um jornalista
que cria uma narrativa, num movimento de fluxo variável ao longo do livro. E,
sobretudo, usam o exagero, a hipérbole, de um modo original e criativo.
O uso da alegoria encontra-se, em
Dostoiévski, na história da “conversão” de Raskolnikov e na analogia com a
história da ressurreição de Lázaro ao fim de quatro dias (para a mentalidade
judaica o prazo em que a alma se encontra necessária e definitivamente
separada do corpo); na história do Príncipe Mishkin; na luta entre o ideal aético,
puramente estético de Oscar Wilde (a arte pela arte ou o egoísmo, o carpe diem) e os ideais
ético e religioso; ou ainda na alegoria inversa da luta entre o ideal empirista e
racional grego de sair da caverna para a realidade ou o ideal místico russo,
representado pelo homem subterrâneo, de fugir da realidade para fora da
racionalidade, numa espécie de egoísmo circular em progressão concêntrica em
círculos lógicos perfeitos, cada vez mais pequenos e mais subterrâneos ou, por oposição, com
Lisa, na área do sentimento e da religião.
Chesterton diria no seu ensaio sobre Oscar Wilde: “Ele por vezes fingia que a arte é mais importante do que a moralidade, mas isso era apenas fachada. A moralidade ou imoralidade é mais importante do que a arte para ele e para toda a gente”. A conversão de Wilde no leito de morte daria um ênfase particularmente dramático a estas palavras de Chesterton.
Sobre o valor da alegoria, diria Chesterton: “Toda a grande literatura sempre foi alegórica porque nós temos uma visão da existência, goste-se ou não, que altera, ou melhor, que engloba tudo aquilo que escrevemos ou que afirmamos, goste-se ou não. A Ilíada é grande porque a vida é uma batalha, a Odisseia é magnífica porque a vida é uma viagem, o Livro de Job é tremendo porque a vida é um enigma”. Diz Gabriel Gale em O Poeta e os Lunáticos: “Eu duvido que qualquer verdade possa ser dita excepto por uma parábola”.
Chesterton diria no seu ensaio sobre Oscar Wilde: “Ele por vezes fingia que a arte é mais importante do que a moralidade, mas isso era apenas fachada. A moralidade ou imoralidade é mais importante do que a arte para ele e para toda a gente”. A conversão de Wilde no leito de morte daria um ênfase particularmente dramático a estas palavras de Chesterton.
Sobre o valor da alegoria, diria Chesterton: “Toda a grande literatura sempre foi alegórica porque nós temos uma visão da existência, goste-se ou não, que altera, ou melhor, que engloba tudo aquilo que escrevemos ou que afirmamos, goste-se ou não. A Ilíada é grande porque a vida é uma batalha, a Odisseia é magnífica porque a vida é uma viagem, o Livro de Job é tremendo porque a vida é um enigma”. Diz Gabriel Gale em O Poeta e os Lunáticos: “Eu duvido que qualquer verdade possa ser dita excepto por uma parábola”.
Existe uma pequena história em O Poeta e Os Lunáticos chamada O Pássaro Azul, em que Gabriel Gale
pergunta a um dos amigos: “Algum dia foste um triângulo isósceles?” Gale
interroga-se quão claustrofóbico será estar rodeado de linhas rectas e se será
preferível estar dentro de um círculo. Parece irrelevante, mas não é.
Curiosamente, Gale está a colocar-se na mente de um anarquista russo (!), que
tem a fixação por explodir todas as barreiras – existe obviamente aqui um
paralelo com o homem subterrâneo, que quer fazer explodir todos os limites,
matemáticos e lógicos, para se poder conhecer a si próprio e só assim ser
verdadeiramente livre – a neurótica centralidade no “Eu”, que tanto
influenciaria Nietzsche e Freud.
Gale interroga-se sobre o que é a liberdade. E conclui que, em primeiro lugar, é a capacidade que alguém pode ter de ser ele próprio. Mas para Gale, em oposição ao homem subterrâneo, a capacidade de ser ele próprio, que é a liberdade, consiste na auto-limitação. Nós encontramo-nos limitados pelos nossos corpos e pelas nossas mentes; se sairmos de nós, deixamos de ser nós próprios para ser…provavelmente coisa nenhuma. Como o pássaro que, liberto da gaiola, não tem qualquer hipótese de sobrevivência num meio hostil ou, como o peixe que, partido o aquário, termina a sua existência.
Gale interroga-se sobre o que é a liberdade. E conclui que, em primeiro lugar, é a capacidade que alguém pode ter de ser ele próprio. Mas para Gale, em oposição ao homem subterrâneo, a capacidade de ser ele próprio, que é a liberdade, consiste na auto-limitação. Nós encontramo-nos limitados pelos nossos corpos e pelas nossas mentes; se sairmos de nós, deixamos de ser nós próprios para ser…provavelmente coisa nenhuma. Como o pássaro que, liberto da gaiola, não tem qualquer hipótese de sobrevivência num meio hostil ou, como o peixe que, partido o aquário, termina a sua existência.
Esta tentativa de romper as barreiras
geométricas também encontra paralelo na tentativa de Raskolnikov abolir as
barreiras éticas. Mas, tal como o anarquista que Gale descreve, Raskolnikov não
consegue sobreviver sem limites bem definidos, após se ter soltado da “jaula”
da sociedade. Também o homem subterrâneo, quando pensa que atingiu o
conhecimento de si, ao se separar de todos, encontra o inevitável paradoxo:
“Quem sou eu? Se ao menos eu fosse um preguiçoso, se não fizesse rigorosamente
nada, todos poderiam dizer que eu era um preguiçoso.”
Entretanto, do fundo da sua extrema solidão, dessa radical infelicidade e separação, desse desespero, ele ainda se crê superior a todos os outros homens!
Mas Dostoievski colocou-o no seu devido lugar: subterrâneo, ou seja, abaixo de nós. Este é um argumento incontornável que desacredita um preconceito muito comum: o de que Dostoiévski foi um dos fundadores do existencialismo.
Entretanto, do fundo da sua extrema solidão, dessa radical infelicidade e separação, desse desespero, ele ainda se crê superior a todos os outros homens!
Mas Dostoievski colocou-o no seu devido lugar: subterrâneo, ou seja, abaixo de nós. Este é um argumento incontornável que desacredita um preconceito muito comum: o de que Dostoiévski foi um dos fundadores do existencialismo.
O Cadernos
do Subterrâneo foi publicado em 1864, dez anos após a saída de Dostoiévski
da prisão, onde ocorreu a sua conversão. Crime
e Castigo seria publicado apenas dois anos depois. Nele, também se encontra
uma prostituta redentora, não Lisa, mas Sónia ou Sónetchka Marmeládova.
A ideia errada de um Dostoiévski existencialista assenta no conceito de que Lisa
não converteu nem resgatou o homem subterrâneo; de que neste livro não é expressa
a ideia de que a natureza humana só pode ser modificada por meio de uma fé religiosa. Esse foi também o equívoco de Nietzsche, que chamou a Doistoiévski "O grande psicólogo".
A explicação de Dostoiévski não necessita de palavras mais compridas, uma vez que remete aos sensores a
amputação, mais do que a omissão, dessa ideia:
“Era melhor não publicar o
penúltimo capítulo (onde a ideia é expressa) do que publicá-lo com as frases
esfaceladas e contradizendo-se a si próprias. Porcos de censores! Onde
escarneço de tudo e blasfemo a fingir, deixam passar; mas onde concluí disso a
necessidade da fé em Cristo, proibiram!”
Lord Ivywood de The Flying Inn, é um
dos retratos feitos por Chesterton deste mesmo tipo de insanidade circular:
“Eu
fui onde Deus não se atreveu a ir”, afirma Ivywood no momento da sua ruína,
ecoando um defunto Nietzsche.
“Eu estou acima do ridículo super-homem tanto
quanto ele está acima do mero homem. Onde eu caminho, nos céus, nenhum homem
colocou o pé antes de mim; encontro-me sozinho no jardim. O que se passa comigo
pode ser descrito como a cena de alguém que colhe solitariamente as flores de
um jardim; e eu ficarei com esta flor para mim…”.
Trata-se do “Eu, e nada mais do que eu!”.
Trata-se do “Eu, e nada mais do que eu!”.
Este orgulhoso solipsista, este lunático, é o maior inimigo do homem,
da sua vida e do seu espírito – é um espelho de uma opção antiga, ocorrida
antes do tempo. Chesterton expressa-a quase visualmente em 1900, por ocasião da
morte de Nietzsche, em The Wild Knight
and Other Poems, The Mirror of Madmen:
“Eu sonhei com o Céu, tudo era branco
como a geada,
A calma esplêndida de um hospedeiro
vivo;
Numerosos coros de faces voltadas lá estavam, alinhados.
Subitamente gelou-me o sangue, porque
todas as faces eram o meu rosto”.
Encontram-se, nestas alegorias, a
universalidade do pensamento de Dostoiévski, a inteligência de G. K.
Chesterton e a intemporalidade de ambos.
António Campos
Brilhante. Dois dos meus escritores preferidos, esse texto resumiu muito bem o que pude observar no contato com a obra de ambos, muito obrigado! Saudações do Brasil! :)
ResponderEliminarObrigado.
EliminarTem bom gosto literário, o que é raro nos dias que correm.
Saudações do inverno português.
António C.