domingo, 5 de janeiro de 2014

Clive Staples Lewis




Um dos dez tipos de José Ramón Ayllón apareceu-me um destes dias em sonhos, o Prof. Doutor Clive Staples Lewis (1898-1963). Lewis, professor de filosofia e literatura em Oxford desde 1925, era ateu, porque via a história humana como uma
sucessão de crimes, guerras, doenças e sofrimento.

Disse-me Lewis:

- António, tu afirmas continuamente que tudo isto que observamos no universo é obra de um espírito omnipotente e misericordioso, mas eu vejo-me obrigado a responder-te que todos os testemunhos apontam na direcção contrária.

- Professor, eu identifiquei num dos seus livros o seguinte problema: "Como é possível que um universo tão mau seja atribuído pelos humanos à acção de um sábio e poderoso criador?" Pode ser que os homens sejam idiotas, mas é difícil que da sua estupidez possam inferir o branco a partir do negro.

- Para um cobarde como eu, o universo do materialista apresenta uma responsabilidade limitada. Nenhum desastre infinito nos pode apanhar porque a morte põe um ponto final a tudo.

- Mas professor, Sócrates dizia (e eu sei que aprecia os clássicos): “Se a morte acabasse com tudo, isso seria uma vantagem para os maus”.

- António, os escritores deixam-me perplexo. Todos aqueles que não têm a doença da religião, como Shaw, Wells, Mill, Voltaire, para os quais a minha afinidade deveria ser total, são pouco profundos e demasiado simples. Neles, o dramatismo e a densidade da vida encontram-se ausentes. Por outro lado, os mais religiosos, como Platão, Ésquilo, Virgílio, são aqueles que me alimentam verdadeiramente.

- Mas eu sei que a afirmação de Lucrécio exerceu grande influência sobre o professor. Refiro-me à afirmação “Se Deus tivesse criado o mundo, não seria um mundo tão frágil e imperfeito como o que vemos”.

- Sim, eu escrevi um livro em 1940 sobre isso. Chama-se O Problema da Dor. Se Deus é tão bom e omnipotente não podia impedir o mal e fazer triunfar o bem e a felicidade entre os homens?

- Parece-me uma questão razoável…

- Meu caro António, um mundo em que um bastão de basebol, quando empregue como uma arma, se transforme automaticamente numa folha de papel ou em que o ar impeça a propagação das ondas sonoras que compõem as palavras que formam as mentiras ou insultos, nega o livre arbítrio à criatura humana, anula a liberdade humana. Mais: a matéria cerebral do homem que concebesse maus pensamentos, uma vez que é o pensamento que dirige a acção, teria forçosamente que se alterar. Ou seja, a matéria próxima de um homem mau, na verdade de todos os homens, estaria submetida a constantes modificações imprevisíveis. Isto significa que eliminar o sofrimento que decorre da existência de vontades livres, implica eliminar a própria vida.

- Parece-me detectar uma alteração subtil nas suas convicções. Chesterton teve alguma coisa a ver com isso?

- Sim. Em 1918, adoeci na frente de batalha durante a Grande Guerra. Fui enviado para o hospital de Le Tréport. Foi lá que li pela primeira vez um ensaio de Chesterton. Mal sabia onde me estava a meter.

- Alguma vez encontrou Chesterton, uma vez que ele só faleceu em 1936?



- Não. Mas o argumento de Chesterton, retirado de O Homem Eterno, de que Cristo é um demónio, um mentiroso ou um louco, a menos que seja Quem diz ser, levou-me a escrever Cristianismo Puro e Simples. Compreendi que Cristo jamais poderia ser meramente um grande professor ou um grande profeta, como muitos alegam que ele foi. Um grande professor ou um grande profeta jamais faz a afirmação idiota de que é Deus. Aliás há um Papa que veio depois de mim que referirá num livro chamado Introdução ao Cristianismo, que Buda apontou um caminho, para o Nada, enquanto que Cristo disse que Ele é o caminho, para Tudo; um propõe a via da anulação, o outro propõe um encontro.

- Começou o caminho com Chesterton…

- Sim, Chesterton tinha mais senso comum que qualquer escritor contemporâneo. Todos parecem à procura de qualquer coisa e sentimos que nunca vão encontrar. Em 1926, após ter lido O Homem Eterno, um amigo meu ateu, académico, veio a minha casa dizer que as provas da historicidade dos evangelhos são surpreendentemente boas. A raposa foi expulsa do bosque hegeliano e corria pela charneca, a céu aberto, com todos os sofrimentos deste mundo, suja e cansada, com todos os cães atrás de si. A matilha não se calava: Chesterton, Platão, Dante, McDonald, Herbert, Tolkien, Dyson, eram os piores.

- E…

- António, tens de me imaginar sozinho, naquele compartimento do Magdalen College, noite após noite, a sentir a aproximação inexorável Daquele com quem não me queria encontrar.

-Estou a ver, professor. Quem diria? E quanto tempo durou isso?

- Na festa da Santíssima Trindade de 1929, cedi. Admiti que Deus era Deus e, de joelhos, rezei. Até aí supus que o centro da realidade seria um lugar, a partir daí percebi que era uma Pessoa.



- Entende então a fé como um encontro entre duas pessoas, a criatura e o Criador? Como pode estar certo, se não tem uma prova?

- Meu caro, exijo de um amigo que confie em mim, mesmo que para isso não tenha uma prova irrefutável. Se ele pede essa prova, é evidente que não confia em mim. Deus pede-nos essa generosidade; a magnanimidade de acreditarmos numa possibilidade razoável.

- Mas, e se cremos e, no final não é verdade?

- O erro seria então mais interessante do que a realidade. Como poderia um universo mecânico e idiota ter produzido criaturas cujos sonhos são muito melhores, mais vigorosos e subtis do que ele próprio?

- Ainda subsistem duas questões: porque Deus não nos dá uma assinatura inequívoca e qual o significado da dor?

- Sobre a assinatura, creio que muitos já escreveram sobre isso. Até você já o fez e creio que o voltará a fazer a propósito destes dez ateus que se converteram. Quanto ao problema da dor…sabe,… a dor, a injustiça e o erro são três tipos de males com uma diferença: a injustiça e o erro podem ser ignorados pelo que vive com eles; a dor não. É um mal desmascarado, inequívoco. Deus fala-nos por meio da consciência e grita-nos por meio das nossas dores. As dores são os megafones para acordar um mundo surdo.

- É uma perspectiva interessante e decerto original…

- Não tenho a certeza nem a preocupação de que seja original, mas sim a de que seja verdade. António, um homem injusto a quem a vida sorri não sente a necessidade de mudar de comportamento; pelo contrário, o sofrimento desfaz a ilusão de que tudo anda bem. A dor pode conduzir a uma obstinada revolta, mas também pode ser a oportunidade única para o malvado se corrigir. A dor rasga o véu da aparência e iça a bandeira da verdade no cimo do castelo da alma rebelde.

- Lembro-me ler algures a sua afirmação de que existe uma diferença entre os factos que ocorrem e as leis da natureza. Não compreendi muito bem…

- Sabe, podemos acrescentar cinco dólares a outros cinco e teremos dez dólares. Mas não existe nenhum meio que faça com que a aritmética coloque um novo dólar dentro do nosso bolso. As leis explicam todas as coisas, menos a origem das coisas, o que é, cá para nós, uma imensa excepção. Tenho uma pergunta para si: quando, no Hamlet, se parte o ramo e a Ofélia cai ao rio e se afoga, isso acontece porque se parte o ramo ou porque Shakespeare quer que Ofélia morra nessa cena?

- Parece-me que foi Shakespeare quem se lembrou do ramo…

- Podemos escolher a alternativa que mais nos agradar. No entanto, a alternativa não é real uma vez que Shakespeare é o autor da obra inteira.


Subitamente acordo. São 4.30h. Nesta noite, como em tantas outras, devido à apneia, o primeiro sono dura 3 horas. Como sempre, procuro tomar a barca do segundo sono, mais 2 horas e meia. Hoje, estou mais confortado. Já me tinha acontecido sonhar com escritores, com anjos e com o próprio demónio, mas nunca me tinha acontecido sonhar com um escritor que é simultaneamente um anjo e que escreveu, ele mesmo, ao próprio demónio, sob forma de aprendiz, ou médico…da alma humana.


António Campos

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