Um dos dez tipos de José Ramón Ayllón apareceu-me
um destes dias em sonhos, o Prof. Doutor Clive Staples Lewis (1898-1963). Lewis, professor de filosofia e literatura em Oxford desde 1925, era ateu, porque via a história humana como uma
sucessão de crimes, guerras, doenças e
sofrimento.
Disse-me Lewis:
- António, tu afirmas continuamente que tudo isto que
observamos no universo é obra de um espírito omnipotente e misericordioso, mas
eu vejo-me obrigado a responder-te que todos os testemunhos apontam na direcção
contrária.
- Professor, eu identifiquei num dos seus livros o
seguinte problema: "Como é possível que um universo tão mau seja atribuído pelos
humanos à acção de um sábio e poderoso criador?" Pode ser que os homens sejam
idiotas, mas é difícil que da sua estupidez possam inferir o branco a partir do
negro.
- Para um cobarde como eu, o universo do
materialista apresenta uma responsabilidade limitada. Nenhum desastre infinito
nos pode apanhar porque a morte põe um ponto final a tudo.
- Mas professor, Sócrates dizia (e eu sei que
aprecia os clássicos): “Se a morte acabasse com tudo, isso seria uma vantagem
para os maus”.
- António, os escritores deixam-me perplexo. Todos
aqueles que não têm a doença da religião, como Shaw, Wells, Mill, Voltaire,
para os quais a minha afinidade deveria ser total, são pouco profundos e
demasiado simples. Neles, o dramatismo e a densidade da vida encontram-se
ausentes. Por outro lado, os mais religiosos, como Platão, Ésquilo, Virgílio,
são aqueles que me alimentam verdadeiramente.
- Mas eu sei que a afirmação de Lucrécio exerceu
grande influência sobre o professor. Refiro-me à afirmação “Se Deus tivesse
criado o mundo, não seria um mundo tão frágil e imperfeito como o que vemos”.
- Sim, eu escrevi um livro em 1940 sobre isso.
Chama-se O Problema da Dor. Se Deus é
tão bom e omnipotente não podia impedir o mal e fazer triunfar o bem e a
felicidade entre os homens?
- Parece-me uma questão razoável…
- Meu caro António, um mundo em que um bastão de
basebol, quando empregue como uma arma, se transforme automaticamente numa folha
de papel ou em que o ar impeça a propagação das ondas sonoras que compõem as palavras
que formam as mentiras ou insultos, nega o livre arbítrio à criatura humana,
anula a liberdade humana. Mais: a matéria cerebral do homem que concebesse maus
pensamentos, uma vez que é o pensamento que dirige a acção, teria forçosamente
que se alterar. Ou seja, a matéria próxima de um homem mau, na verdade de todos
os homens, estaria submetida a constantes modificações imprevisíveis. Isto
significa que eliminar o sofrimento que decorre da existência de vontades
livres, implica eliminar a própria vida.
- Parece-me detectar uma alteração subtil nas suas
convicções. Chesterton teve alguma coisa a ver com isso?
- Sim. Em 1918, adoeci na frente de batalha durante
a Grande Guerra. Fui enviado para o hospital de Le Tréport. Foi lá que li pela
primeira vez um ensaio de Chesterton. Mal sabia onde me estava a meter.
- Alguma vez encontrou Chesterton, uma vez que ele
só faleceu em 1936?
- Não. Mas o argumento de Chesterton, retirado de O Homem Eterno, de que Cristo é um
demónio, um mentiroso ou um louco, a menos que seja Quem diz ser, levou-me a
escrever Cristianismo Puro e Simples.
Compreendi que Cristo jamais poderia ser meramente um grande professor ou um
grande profeta, como muitos alegam que ele foi. Um grande professor ou um
grande profeta jamais faz a afirmação idiota de que é Deus. Aliás há um Papa
que veio depois de mim que referirá num livro chamado Introdução ao Cristianismo, que Buda apontou um caminho, para o
Nada, enquanto que Cristo disse que Ele é o caminho, para Tudo; um propõe a via
da anulação, o outro propõe um encontro.
- Começou o caminho com Chesterton…
- Sim, Chesterton tinha mais senso comum que
qualquer escritor contemporâneo. Todos parecem à procura de qualquer coisa e
sentimos que nunca vão encontrar. Em 1926, após ter lido O Homem Eterno, um amigo meu ateu, académico, veio a minha casa
dizer que as provas da historicidade dos evangelhos são surpreendentemente
boas. A raposa foi expulsa do bosque hegeliano e corria pela charneca, a céu
aberto, com todos os sofrimentos deste mundo, suja e cansada, com todos os cães
atrás de si. A matilha não se calava: Chesterton, Platão, Dante, McDonald,
Herbert, Tolkien, Dyson, eram os piores.
- E…
- António, tens de me imaginar sozinho, naquele
compartimento do Magdalen College, noite após noite, a sentir a aproximação
inexorável Daquele com quem não me queria encontrar.
-Estou a ver, professor. Quem diria? E quanto tempo
durou isso?
- Na festa da Santíssima Trindade de 1929, cedi.
Admiti que Deus era Deus e, de joelhos, rezei. Até aí supus que o centro da
realidade seria um lugar, a partir daí percebi que era uma Pessoa.
- Entende então a fé como um encontro entre duas
pessoas, a criatura e o Criador? Como pode estar certo, se não tem uma prova?
- Meu caro, exijo de um amigo que confie em mim,
mesmo que para isso não tenha uma prova irrefutável. Se ele pede essa prova, é
evidente que não confia em mim. Deus pede-nos essa generosidade; a
magnanimidade de acreditarmos numa possibilidade razoável.
- Mas, e se cremos e, no final não é verdade?
- O erro seria então mais interessante do que a
realidade. Como poderia um universo mecânico e idiota ter produzido criaturas
cujos sonhos são muito melhores, mais vigorosos e subtis do que ele próprio?
- Ainda subsistem duas questões: porque Deus não
nos dá uma assinatura inequívoca e qual o significado da dor?
- Sobre a assinatura, creio que muitos já
escreveram sobre isso. Até você já o fez e creio que o voltará a fazer a
propósito destes dez ateus que se converteram. Quanto ao problema da dor…sabe,…
a dor, a injustiça e o erro são três tipos de males com uma diferença: a
injustiça e o erro podem ser ignorados pelo que vive com eles; a dor não. É um
mal desmascarado, inequívoco. Deus fala-nos por meio da consciência e grita-nos
por meio das nossas dores. As dores são os megafones para acordar um mundo
surdo.
- É uma perspectiva interessante e decerto
original…
- Não tenho a certeza nem a preocupação de que seja
original, mas sim a de que seja verdade. António, um homem injusto a quem a vida
sorri não sente a necessidade de mudar de comportamento; pelo contrário, o
sofrimento desfaz a ilusão de que tudo anda bem. A dor pode conduzir a uma
obstinada revolta, mas também pode ser a oportunidade única para o malvado se
corrigir. A dor rasga o véu da aparência e iça a bandeira da verdade no cimo do
castelo da alma rebelde.
- Lembro-me ler algures a sua afirmação de que
existe uma diferença entre os factos que ocorrem e as leis da natureza. Não
compreendi muito bem…
- Sabe, podemos acrescentar cinco dólares a outros
cinco e teremos dez dólares. Mas não existe nenhum meio que faça com que a
aritmética coloque um novo dólar dentro do nosso bolso. As leis explicam todas
as coisas, menos a origem das coisas, o que é, cá para nós, uma imensa
excepção. Tenho uma pergunta para si: quando, no Hamlet, se parte o ramo e a
Ofélia cai ao rio e se afoga, isso acontece porque se parte o ramo ou porque
Shakespeare quer que Ofélia morra nessa cena?
- Parece-me que foi Shakespeare quem se lembrou do
ramo…
- Podemos escolher a alternativa que mais nos agradar.
No entanto, a alternativa não é real uma vez que Shakespeare é o autor da obra
inteira.
Subitamente acordo. São 4.30h. Nesta noite, como em
tantas outras, devido à apneia, o primeiro sono dura 3 horas. Como sempre,
procuro tomar a barca do segundo sono, mais 2 horas e meia. Hoje, estou mais
confortado. Já me tinha acontecido sonhar com escritores, com anjos e com o
próprio demónio, mas nunca me tinha acontecido sonhar com um escritor que é
simultaneamente um anjo e que escreveu, ele mesmo, ao próprio demónio, sob
forma de aprendiz, ou médico…da alma humana.
António Campos
Parabéns pelos belos textos que escreve António.
ResponderEliminarObrigado! Boa semana e bom ano.
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