A dialética hegeliana como sistema, pode ser criticada quanto ao conteúdo e quanto à forma.
Quanto
Quanto à forma, a dialética assenta num
raciocínio que aparentemente avança em triangulações sucessivas de
contraditórios que não descarta, mas cujo avanço e forma são apenas aparentes,
uma vez que o avanço consiste num retorno ou reconhecimento, nunca numa renovação, e a forma consiste
num círculo.
O Erro de Pilatos
Talvez uma das mais importantes
demonstrações da necessidade da dialética no sentido socrático, i.e., o
apuramento ou clarificação conceptual, esteja inscrito numa histórica
interpelação:
“Quid
est Veritas (O que é a verdade)?”, a questão contraditória em si mesma. A
verdade, verĭtāte, por definição,
significa a realidade, a conformidade das coisas com aquilo que a mente pensa
delas, o conhecimento certo e inquestionável. Conformidade entre o pensamento (ou
a sua expressão) e o objecto do pensamento. Pressupõe que a realidade existe,
que a existência é o tiro de saída do universo. Que a vida existe, que não é
mera ilusão. Se admitirmos que não existe possibilidade de encontrar a verdade
nas coisas, se a realidade for imperceptível ou incomunicável, não existe
diálogo, porque as palavras nada significam. A pergunta de Pilatos esconde uma
afirmação e uma crença, tão actual no seu tempo cosmopolita e civilizado como
no nosso: “A verdade não existe. Esta é a verdade!” Contraditório…voltamos a
Hegel1.
Deve dizer-se que Hegel nunca pretendeu
conduzir alguém à clareza conceptual, justamente porque ele próprio via
virtudes na obscuridade. Além disso jamais se poderá considerar que pela junção
de opostos, por exemplo a verdade e a falsidade, se possa clarificar seja o que
for. Colocar sujo no limpo jamais poderá originar brancura. A lei da não
contradição é um princípio basilar do pensamento racional2. Não se
pode dizer que Hegel fosse irracional, portanto o que se pode concluir é que
Hegel ao falar de lógica está na verdade a falar de ontologia, i.e., do
desenvolvimento natural e cultural que faz as coisas serem o que são… até o
pensamento filosófico. Todavia, parece encontrar-se na filosofia de Hegel muito
daquilo a que hoje se chama “wishful thinking”.
O erro assume duas versões básicas:
– O conhecimento da verdade, mas a
comunicação de algo não conforme com ela, a mentira. É a ocultação. Os sofistas
actuais esconderam a mentira debaixo de um neologismo: “inverdade”. Estas
coisas acontecem quando se é ignorante ou presunçoso e não se tem vergonha na
cara.
– O conhecimento de algo que não é
conforme à realidade das coisas, que é questionável, mas que o indivíduo crê firmemente ou deseja fervorosamente tratar-se
da realidade e comunica-o como tal. É um engano nos sentidos ou na mente (no
processo de pensamento) que conduz a erro de percepção da realidade. É a ilusão.
– Se, como afirmava Hegel, a verdade e a
mentira são momentos e não afirmações de certeza, como acreditar que as
afirmações de Hegel são a verdade?
Trata-se de uma impossibilidade, do mero acreditado, como dizia o próprio Hegel,
de um não conhecimento. À “luz” de Hegel, é igualmente válido afirmar que Hegel
foi um grande filósofo, como afirmar que foi um psicopata, um charlatão, um
mentiroso, um dogmático, ou que nem sequer existiu. A menos que concluamos que
para Hegel, como princípio de delimitação da acção, não exista uma moral prévia,
mas um modo de se fazer aquilo que se quer fazer (os meus objectivos ditam a
minha moral). Hegel nunca se livrará do rótulo totalitário; a sua árvore produziu o fruto dogmático, socialista e nacional-socialista.
Uma matéria instrumental
Resulta bastante evidente que a dialética como sistema hegeliano já estava presente na Fenomenologia, escrita 6 anos antes do primeiro dos três livros da Dialética. Também é evidente a sua estrutura gnóstica ou cabalística: raciocínio triádico circular ou helicoidal, exposto em três livros, cada um com três secções, cada secção com três capítulos. Mas o mais importante aspecto é que o sistema de Hegel resulta na compartimentação do infinito como finito, do espírito como matéria, pois nada há de abstracto que não seja concreto. Hegel nega a natureza distinta entre o espírito e a matéria, vendo esta apenas como “materialização” do espírito, sem existência autónoma. Ao confundir propositadamente mente com espírito, usando-os indistintamente, Hegel apaga a própria possibilidade de caracterizar as premissas. A existência individual de cada homem é uma mera ilusão ou uma abstracção. A ideia de Shelling (e de Kant) da impossibilidade de definir precisamente o infinito, foi denominada por Hegel como “a noite escura de Schelling onde todas as vacas são negras”, o que motivaria a ruptura entre os dois homens.
Matéria finita vs Espírito infinito
Nós sabemos que a matéria é finita. A
massa total do universo é da ordem de 2x1052 a 1054 Kg.
Equivalê-la ao espírito é sem dúvida um materialismo. Não é portanto de
surpreender a remoção do conteúdo lectivo de Hegel da Universidade de Berlim logo
após a sua morte, sob a acusação de panlogicismo,
i.e., ateísmo. Nem é de surpreender que ainda hoje os seus seguidores oscilem
entre uma metafísica panteísta e um materialismo pós-kantiano ateu tout court. Aliás, o próprio Hegel
parece ter evoluído de uma concepção mais panteísta na fase mais precoce da sua
vida, i.e., a Fenomenologia, para uma
concepção mais ateísta, i.e., a Dialética
e a Filosofia do Direito. A sua
última vontade, ser sepultado ao lado de Fichte, expulso da Universidade de
Berlim por ateísmo, é simbólica.
A Natureza do Pensamento Racional
– Junção de Contraditórios: Ao constituir
a síntese e afirmar a dupla negação como a junção de contraditórios, Hegel
nunca conseguiu o respeito dos matemáticos. Em lógica uma dupla negação
equivale à afirmação inicial (não é falso = verdadeiro). Ao negar a antítese,
Hegel deveria regressar à tese inicial e analisar o erro cometido. Em lógica
existe um princípio que se chama o princípio do terceiro excluído: Uma
afirmação ou é falsa ou verdadeira,
nunca pode ser simultaneamente verdadeira
e falsa tal como também não pode ser nem
falsa nem verdadeira. De outro modo, todo e qualquer código de linguagem
deixa de expressar a realidade e passa a conduzir ao absurdo. Se a verdade e a
falsidade se podem reunir numa síntese, como se pode saber onde está o
conhecimento ou a mera opinião? O princípio da não contradição é o núcleo
basilar do pensamento racional.
Foi Kant, quem ao tratar das suas
antinomias, afirmou que a uma tese que não resultasse de conhecimento sintético a priori, i.e., científico, se
poderia opor sempre uma antítese (no conhecimento religioso a um acredito pode sempre opor-se um não acredito). No entanto, embora
admitisse poder um dia encontrar-se uma síntese para esta antinomia, jamais foi
ao ponto de dizer que a síntese incluiria contraditórios mutuamente exclusivos.
A Dialética como instrumento para o apuramento conceptual
– No processo de conhecimento científico,
ou de indução, a contradição não pode ser permitida, porque derruba o edifício
construído e deve conduzir à sua reformulação – o achado de um único cisne negro
derruba a máxima de que todos os cisnes são brancos. Se não eliminarmos as
contradições, o progresso detém-se, não progride. Esse parece ter sido o
objectivo de Hegel. Ao afirmar que as contradições não só são inevitáveis, como
permitidas e altamente desejáveis, Hegel pretendeu acabar com a ciência e com a
contra-argumentação racional. Ao tornar a crítica impossível ele ergue a sua
filosofia ao nível do dogmatismo.
No Princípio Era o Verbo3
Um monte de tijolos, cimento, madeira e
tinta não é uma casa. O que faz as casas diferentes não é o total de tijolos,
telhas, madeira e tintas de cada uma. A explosão original não foi a origem real
do universo. O universo obedeceu ab
initio às leis da física e da matemática. Essa ordem racional precedeu-o,
da mesma forma que a concepção do arquitecto precede a casa.
Opostos e Complementares
– Contrários e complementares: o
interno e o externo não são contrários, são complementares. Os complementares
não se anulam, ambos constituem uma realidade. O meu casaco para ser casaco tem
necessariamente que ter um interno e um externo que em nada se antagonizam. O
mesmo posso dizer do meu próprio corpo ou de um homem e de uma mulher.
– O ser e o não-ser: nesta primeira
premissa da dialética esconde-se um dos maiores colapsos da filosofia de Hegel.
Em primeiro lugar, tudo o que existe é. Pode transformar-se, mas nunca se
perde. De Lavoisier recebemos a máxima da química moderna: na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Entre
os seres vivos, inclusive, esta qualidade de estar vivo só se adquire por
transmissão, não vem do nada, o que é absurdo.
A morte como não ser: Na morte, aquilo
que era ainda é, apenas se transformou. Desse ponto de vista morrer é
complementar e não o contrário de nascer. O contrário de nascer será
não-nascer, o aborto, a interrupção do ciclo. Mas até o aborto é. Quer
Parménides na filosofia quer Lavoisier na ciência, expressaram que para algo se
tornar, ou seja, se transformar, teria que provir de uma substância prévia,
nunca do nada!
– O Tudo e o nada: O que é tudo? Como
sabemos os filósofos estão longe de concordar quanto à plena caracterização da
realidade. Será “tudo” apenas a quantidade física de matéria e energia contida
no Big Bang? O nada existe do mesmo
modo na lógica e no mundo concreto? O nada matemático existe, sabemo-lo: 0, {
}. Mas o nada físico existe? Existe algo que nada contenha? No vazio espacial
não se aplicam as dimensões do espaço, não decorre o tempo, não é atravessado
por radiação cósmica? O nada físico não existe!
Os opostos perfeitos não existem no
universo físico, apenas no matemático e no lógico. Precisamente naquele que
está fora do tempo, do devir. Portanto não existe nenhuma dialética de opostos
no mundo real; fora da lógica abstracta não existe dualismo perfeito, apenas
aproximado.
Demos alguns exemplos: é perfeitamente
consensual que +3 é o oposto ou simétrico de -3 e que verdade é o oposto de
mentira, como falso o é de verdadeiro.
Mas no mundo da realidade física não é
assim. Por exemplo, o cloro reage com o sódio para originar cloreto de sódio.
No ADN, citosina e guanina interagem ligando-se entre si tal como a adenina com
a timina. Mas sódio e cloro, citosina e guanina, adenina e timina, não são
contrários mas complementares. O que caracteriza complementares é que da sua
interacção surge algo de novo, tal como de um homem e de uma mulher se renova o
mundo.
A água parece o oposto do fogo. No
entanto, algo da sua natureza é idêntico. A água contém energia em si mesma e
originou-se dessa primeira energia original do Big Bang.
O feio parece o contrário do belo, mas
inúmeras vezes a aparência do belo esconde o feio. Podemos pensar nos oficiais
SS, com os seus graus de PhD e os
seus olhos azuis, em comparação com os desdentados e esqueléticos judeus. Essa
penumbra é ela mesma instrumento de sedução e fonte de equívoco.
A Chave do Universo: Da Oscilação entre Opostos ao Equilíbrio
Paradoxal
O segredo do universo não é tanto uma
oscilação entre opostos mas o equilíbrio paradoxal. Muitas vezes existe uma
terceira via que ela sim é antagónica com as duas apresentadas, ex: capitalismo
e socialismo versus doutrina social da Igreja ou distributismo. A dialética
hegeliana não é tanto uma dialética mas mais uma interacção. Mas nem sempre uma
síntese é possível e outras vezes mais do que uma síntese diferente é obtida;
por exemplo, os filhos e as respectivas diferenças. O contrário de nada não é
apenas tudo; alguma coisa também é contrário de nada.
Os bonitos por vezes são feios e os
feios bonitos. Pôncio Pilatos deveria estar mais belo do que Jesus Cristo no
tribunal romano. Os jovens revolucionários que queriam demolir a Notre Dame mais bonitos do que o
Corcunda, cuja história serviu para a salvar. Este paradoxo do belo e do feio,
do bom e do mau, encontra-se na literatura na descrição do grotesco, como
variabilidade natural, em oposição à perversidade, a deformação. O ditado português
afirma: “Quem feio ama bonito lhe parece.” Chesterton dizia: “A menos que
amemos o feio em toda a sua fealdade, nunca o transformaremos em bonito.”
António Campos
Notas:
(Nota 3 de Olavo de
Carvalho).
1
A pergunta certa seria onde ou qual a
origem da verdade. A verdade é a realidade sobre qualquer coisa. A
realidade das coisas remete à origem
última da realidade. Essa origem última da realidade não é o universo, nem
um local. A origem última da realidade é um intelecto, uma pessoa que lhe deu
origem. Desse modo a natureza da realidade expressa de algum modo a natureza
dessa pessoa: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Ao desancorarmos da
realidade última ou original, desancoramos da realidade próxima ou concreta, o
objecto do conhecimento, e da sua expressão clara, na arte e na linguagem.
Chesterton expressou bem esta ideia: “Sabíamos que ao colocar a fé em questão
acabaríamos por deitar a razão abaixo do seu trono. Ambas são processos
demonstrativos que não podem ser demonstrados.”
2 Na
Cruz Azul diz Flambeau: Estes infiéis modernos apelam à razão, mas quem pode
olhar para essa miríade de mundos e não imaginar que podem existir universos
maravilhosos acima de nós onde a razão seja completamente irracional?”
Após a sua captura, o Padre Brown
explica: “ Ele atacou a razão…E isso é má teologia.”
3 A origem do cosmos e a da realidade
são completamente diferentes. Antes da construção do cosmos a realidade já estava
determinada racionalmente, a lógico-matemática, independe do tempo e é eterna –
é a estrutura da eternidade. Antes do início do universo já 2+2=4. O universo
físico não é a origem das coisas. Nada existe no cosmos que não esteja incluído
na estrutura da possibilidade que é organizada internamente pela lógica-matemática;
não aleatória mas racionalmente – o universo é uma realização racional,
compreensível e dedutível. A ciência é uma mera perseguição ao que já foi
realizado – a ciência segue as pegadas de um universo que já está todo lá.
Existe uma estrutura racional que contém todas as possibilidades que se
manifestaram no tempo e não é determinada por elas – tudo está contido na
estrutura da possibilidade. O desenvolvimento estocástico é absurdo. A razão
pré-existe à realidade física, o logos pré-existe ao universo, no princípio era
o verbo.
Qual a origem da estrutura da
realidade? Não da realidade manifesta que depende da anterior, mas da
realidade, porque a lógica matemática precede a realidade física. A razão
precede o universo. A sucessão temporal não possui a inexorabilidade da lógica
matemática. A natureza física está dentro da lógica matemática mas não a
reproduz inteiramente. As discussões sobre a origem do cosmos actuais nunca
levam em conta o facto de que a ordem lógica matemática precede a origem
física. O cepticismo actual é um materialismo pueril.
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