domingo, 24 de março de 2013

Chesterton e o Estado - Parte I



“Uma vez abolido Deus, o Estado torna-se o deus”, Chesterton, Christendom in Dublin, 1932.


Uma das dimensões dos homens do nosso tempo, a política, só pode ser compreendida mediante o conhecimento do conceito de Estado. A sua personificação mais conhecida é a obra “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel, escrito em 1513. As ideias do livro, embora nunca o mencionando explicitamente - o que se tornou um hábito na política – estão na origem do famoso aforismo “os meios justificam os fins”. Voltaire diria mais tarde na sua carta a Thériot: “É necessário mentir como um demónio, não timidamente, nem só temporariamente, mas sempre, e com audácia!” 

Maquiavel diz que é preciso ser dissimulado, mas não deixar transparecer essa dissimulação. Não é necessário possuir as qualidades, mas é preciso parecer. Parecer ser piedoso, fiel, humano, íntegro e religioso. No entanto, agir sempre conforme as circunstâncias e não adoptar um comportamento ético definido. Defende o primado da justiça sobre a misericórdia: “A morte de um bandido só faz mal a ele mesmo, enquanto a sua prisão ou perdão faz mal a toda a comunidade”. O Príncipe deve ser cruel com as pessoas, mas parcimonioso com a propriedade. Tira partido do lado mais sombrio da natureza humana: “As pessoas esquecem mais facilmente a morte do pai do que a perda da herança.” Tem uma visão prática e fria do exercício do poder: “A um príncipe convém mais ser temido do que ser amado.” Erasmo de Roterdão, um sacerdote católico que colocava em dúvida a Santíssima Trindade, amigo de Lutero e de Thomas More, publicaria Institutio Principis Christiani em 1516, Thomas More publicaria a Utopia também em 1516 e Lutero faria a publicação das suas 95 teses em Wittenberg em 1517. O ambiente era intelectualmente adverso e atacava os princípios mais firmes da Igreja, sobretudo vindo do seu próprio interior, dos seus sacerdotes e teólogos.

A concepção moderna do Estado é em grande medida neoclássica (César ou Presidente, Senado ou Parlamento, e Exército com Serviços Secretos). Até as colunas de Corinto à entrada das instituições públicas são marca simbólica da civilização pagã. Já para não mencionar o nome de deuses pagãos dado aos planetas, aos foguetes da NASA, a programas desenvolvidos no âmbito do Estado ou a sistemas informáticos, e os jogos olímpicos.

O princípio da separação de poderes saído da Revolução Francesa - legislativo, executivo e judicial – um princípio louvável, enferma de vícios fundamentais: a nomeação de muitos dos altos titulares de cargos do poder judicial é efectuada por votação de membros do poder executivo ou legislativo. O chefe do partido é simultaneamente o chefe do governo, o que limita a liberdade dos deputados e diminui a independência do poder legislativo. Os líderes do partido são eleitos internamente por uma minoria de membros do partido. À população geral só é dado escolher entre líderes de diversos partidos previamente determinados, o que transforma as eleições num plebiscito. Para piorar o cenário, as listas de deputados concorrentes às eleições são determinadas pelo partido, o que premeia os membros que se “portam bem”.

Mas ainda existem três poderes que actuam na sombra. As sociedades secretas, os plutocratas e os “mass media”, que se encontram em grande medida interpenetrados. Sem dinheiro não há visibilidade nem posse dos media, sem media não se ganham as eleições internas nem as gerais, não se modula a opinião pública. As sociedades secretas são essencialmente centros de influência e poder ao mais alto nível e, pela sua natureza secreta, alguma coisa escondem. Portanto, não surpreende que certas pessoas com crimes graves não recebam a punição devida e sejam reabilitadas nos media, enquanto que outras, por crimes bem menores, são rapidamente julgadas, condenadas e destituídas dos seus cargos. Por outro lado, os Estados com os direitos mais garantidos, possuem serviços secretos que fazem as maiores atrocidades, sob o véu da ocultação, do silêncio, do terror e da aniquilação.

Esta exposição simplista e genérica é importante para caracterizar o raciocínio de Chesterton.

 Na verdade Chesterton não gostava do partido conservador, os Tories, que achava defensor da acumulação da propriedade e dos privilégios da aristocracia – “o aristocrata não tem vergonha de viver à custa do Estado”-, mas apreciava a atitude conservadora para a tradição - “a tradição é dar poder de voto aos nossos antepassados e portanto alargar a democracia” - e para não modificar o que está bem – “é necessário repintar várias vezes uma parede de branco para que ela se conserve branca”- Ortodoxia, 1908. Quanto ao partido dos socialistas, o Labour, é conhecido o seu profundo antagonismo, pois “os socialistas negam ao pobre o direito a ser remediado, o direito à propriedade” e os socialistas centram a sua esperança apenas nesta vida e lançam a sua crença e moral nos braços do Estado. “Defendi a Instituição da Família contra a fantasia platónica do Estado”, Autobiografia, 1936. "O meu sentido de justiça, liberdade e igualdade é um pouco diferente do que é corrente hoje em dia. Eu defendo a liberdade das pequenas nações e das famílias pobres. Defendo os direitos do homem contra todas as formas de super-homem. Defendo a propriedade dos pobres. Eu não compreendia o que queria dizer liberdade até a ouvir chamar pelo seu outro nome, a dignidade humana", Autobiografia, 1936.

Critica também a ideia de que, se a maior parte dos homens não abraça o ideal socialista, é necessário um outro homem, iluminado, que compreenda este ideal. Tal como dizia Nietzsche e antes, Hegel e Marx, com o seu “übermensch”, cujo conceito conduziu a Auschwitz, a Hiroshima e ao Gulag. “Defendi os sagrados limites do homem contra aquilo que Shaw, Nietzsche e outros socialistas, consideraram os poderes ilimitados do super-homem. O homem foi feito mais sagrado que qualquer super-homem, porque os seus limites se tornaram sagrados como uma casa, por causa daquela gruta talhada na rocha onde Deus se fez menino", escreveu pouco antes da sua morte, em 1936. A propensão socialista para pertencer a sociedades secretas teosóficas como a de madame Blavatsky, a quem Chesterton chama bruxa em “Os disparates do mundo”, e a Fabian society também são motivo de crítica. Porque não são democráticas e porque procuram outro “Theos” incluindo no seu seio aqueles que apenas combatem Deus. Uma espécie de relação Lenine, socialista, com Bakunin, anarca, ambos inimigos de Deus. Inimigos entre si, ligados por um ódio comum à religião e à tradição.

Finalmente, Chesterton militou no partido liberal, mas rapidamente se desiludiu com a política, pois concluiu que quem manipula o curso de um partido, mesmo o partido liberal, é sempre a plutocracia, com o seu dinheiro e influência na edição dos jornais.
“Outro exemplo da ironia humana é que é mais fácil morrer na guerra do que dizer a verdade na política" Autobiografia, 1936.  
"Os políticos têm que ser progressistas. Têm que viver no futuro porque sabem que apenas fizeram asneiras no passado." Chesterton, Confessions and Denials, 1935.
“Os homens de quem as pessoas esperam que se ocupem do bem público estão demasiado ocupados para aceitarem o cargo. Mas o político está sempre à espreita. Ele é a pestilência do tempo moderno. O que deveríamos fazer era converter a política numa dimensão unicamente local. Manter os políticos suficientemente perto para os podermos esmurrar. Os aldeões que se juntam debaixo da maior árvore da aldeia bem que os podiam lá enforcar. É surpreendente como tão poucos políticos são enforcados.”, Chesterton, 1921, The Cleveland Press Interview.

António Campos

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