Chesterton afirmava que o grande
desafio da filosofia era explicar como é que o homem se
sente simultaneamente
um estranho e à vontade neste mundo. Para o jovem Wittgenstein, o objectivo da
filosofia era a clareza conceptual ou intelectual. Aos 20 anos pensava ter
resolvido todos os problemas da filosofia ao definir a forma lógica da
linguagem. Ao afirmar que o método correcto da filosofia seria o de calar tudo
o que extravasasse as proposições da ciência natural, Wittgenstein indicava à
filosofia um canto que nada tem que ver com a filosofia. Mas não poderia chegar
a outra conclusão utilizando o método da zeitgeist
moderna, i. e., reduzir toda a realidade à dimensão da evidência científica.
Chamamos
hoje a esta atitude epistemológica, cientismo, e ela possui a mola da negação; do
cartesianismo à filosofia inglesa de Hume e culminando na filosofia alemã. De
forma simplista, exclui aberta ou tacitamente a existência de Deus e da alma
humana. No entanto, Wittgenstein ao afirmar que o sentido do mundo estava fora
das proposições da ciência natural, admite que as suas proposições careciam de
sentido (mais do que a tradução corrente de serem bizarras ou espúrias). O seu
método forneceria então uma escada para a clareza intelectual: definir o que
pode ser dito e o que não pode ser refutado usando as proposições da ciência – um claro ataque ao cientismo que Moore
compreendeu e que Russell nunca entendeu.
Para o segundo Wittgenstein, o
objectivo da filosofia é o de que a inteligência não se deixe submeter pela
linguagem. Este é o Wittgenstein que Russell consideraria “irreconhecível”. “A
guerra salvou-me a vida”, diria Wittgenstein. O economista J. M. Keynes diria a
sua mulher quando Wittgenstein voltou para Cambridge em 1929: “Deus chegou.
Encontrei-me com ele no comboio das 5.15h.”1 A forma lógica da
linguagem e as verdades inefáveis dão lugar às formas de entendimento: o
teórico ou científico (teste de hipóteses ou teorias com base nos dados da
observação) e o não teórico que consiste em “ver conexões” (o tipo de
entendimento que usamos quando dizemos que compreendemos um poema, uma peça
musical, uma pessoa ou uma frase). Não basta a esta forma de conhecimento ligar
uma palavra com cada um dos objectos que ela denomina; é necessário relacionar
as palavras na frase de acordo com a cultura a que se pertence e aos chamados
“jogos da linguagem”, que também poderiam ser denominados como a linguagem
dentro de um contexto (cultural, ético, religioso, artístico, filosófico,
religioso, profissional, etc.).
Um exemplo destas duas diferentes
formas de conhecimento é o que acontece quando uma criança está no processo de
aprendizagem da sua língua nativa. Quando ela a usa de forma relativamente
expedita, nós não dizemos que ela desenvolveu uma teoria sobre a linguagem, mas
sim que ela usa a linguagem. Sabemos que ela compreende e usa a
linguagem de forma conveniente quando ela tem um comportamento apropriado a
quem reconhece uma frase de outrem (por exemplo, agir em resposta a uma ordem
verbal). O mesmo pode ser dito relativamente à música. Nós classificamos uma
música, usando expressões que são reconhecidas dentro do nosso contexto
cultural.
Entender uma peça musical não é fazer
um estudo de acústica ou de física de ondas sonoras. Nenhum destes estudos nos
fazem compreender uma peça de Mozart, tal como o estudo do BOLD (blood oxygen
level dependent contrast imaging) na ressonância magnética funcional ou de uma
qualquer tubulina no neurónio não fazem com que nos compreendamos melhor ou que
avaliemos melhor os outros.
Então se a compreensão de uma pessoa
não pode ser obtida com o tipo de generalizações usadas pela ciência, como pode
ser obtida? Ou não pode ser obtida de todo? Refiro-me à capacidade de discernir
se uma pessoa realmente sente e pensa aquilo que está a dizer, se as emoções
que expressa são autênticas ou são fingidas. Existe a possibilidade de uma
avaliação correcta acerca do carácter genuíno ou fingido da expressão de
sentimentos?
Wittgenstein afirma que sim.
No entanto, a evidência para tais
julgamentos é “imponderável”. A evidência imponderável envolve “subtilezas do
olhar, gestos, alterações de tonalidade. Consigo distinguir um olhar de afeição
embora não o consiga definir muito bem…Se fosse um pintor de talento poderia
representar convenientemente um olhar autêntico e um olhar fingido, numa tela.”
Imponderável, contudo, não significa
espúrio. Wittgenstein dá o exemplo do stáretz
Zóssima em Os Irmãos Karamasov, capaz
de reconhecer com um único olhar na face de quem o procura o motivo da sua
vinda, o que quer que atormenta a sua consciência, porque, segundo Dostoiévski,
ele durante anos tinha contactado com uma pléiade de desgraças, segredos,
confissões, que o dotavam dessa capacidade de conhecer a alma humana. “Sim,
realmente existem pessoas assim; pessoas que conseguem observar directamente a
alma dos outros e avisá-los”, disse Wittgenstein a Maurice Drury. “Um processo
interno dependente de factores externos” é uma das passagens mais citadas de Investigações Filosóficas e lembra muito
In Aid of a Grammar of Assent de
Newman.2
Newman explica que a dúvida, a
dedução e a premissa são actos mentais que correspondem a modos como
nos relacionamos com as proposições: “Uma questão é a expressão da dúvida, a
conclusão é a expressão de um acto dedutivo, a premissa é a expressão de uma
acto de concordância ou adesão.”
A adesão é aceitar incondicionalmente o
valor lógico de uma determinada proposição. A premissa “Jesus é o Senhor”
difere no fundamental das proposições “eu sei que Jesus é o Senhor” ou “eu
cheguei à conclusão que Jesus é o Senhor”. Então, uma gramática de premissas
consiste em estabelecer de que modo nós podemos aderir razoavelmente, sem
faltar à verdade e com confiança, à proposição “Jesus é o Senhor”.
Deste modo, as proposições podem assumir
uma forma interrogativa, condicional ou categórica. “Não ter dúvida” sobre uma
tese ou proposição implica ou deduzi-la ou aderir a ela (assumir o seu valor
lógico a priori). A premissa é
incondicional, enquanto que a dedução não é, pois deriva da assumpção de outras
premissas. No entanto, no mundo moderno a dúvida é uma premissa, uma vez que
duvidar do valor de uma proposição geralmente significa tomá-la como errada.
Se quisermos avaliar se a proposição “A
é C” é verdadeira ou falsa, teremos que saber algo sobre A e sobre C. A
propriedade transitiva permite dizer que se A é B e B é C, então A é C; é o
silogismo e resulta da dedução. Este processo é completamente diferente de
simplesmente afirmar que A é C. Deduzir que A é C não requere a apreensão de A
ou de C, uma vez que a conclusão resulta de um processo lógico, ou de uma
relação formal dos termos, não do seu conteúdo concreto. No entanto, a
aceitação da premissa A é C implica que a mente aceite a proposição, sem ter
consciência das razões pelas quais tal aceitação se processa – é inconsciente
(adesão ou consentimento simples) - ou procurando saber deliberadamente que
razões sustentam a proposição – é consciente e deliberada (adesão complexa).
Para Locke, a certeza resulta apenas de
probabilidade, que ao tornar-se muito alta é tratada, do ponto de vista prático,
como certeza.
Mas para Newman este critério não é
aceitável por duas razões. Por um lado, a nossa vida quotidiana baseia-se em
premissas que tomamos como adquiridas e não em meras probabilidades de que
estejamos certos. Por outro lado, é a própria noção de probabilidade, que no
entender de Locke seria o suporte da certeza, que em verdade, conduz ao
desmoronar da certeza, na medida em que tudo se torna relativo, tudo é mera
probabilidade; a probabilidade torna-se a única certeza. O perigo da doutrina
da probabilidade é a destruição da certeza, ao considerar todas as conclusões
como duvidosas, reduzindo a verdade à mera opinião.
A razão nunca nos obriga à certeza, excepto em face da
prova irrefutável. Mas tal prova nunca pode ser fornecida
pela lógica das palavras, pela simples razão de que a certeza é um processo
mental, tal como a dedução que a ela poderia conduzir. Existe algum critério
que possa medir o rigor de uma dedução, de tal forma que nos possamos sentir
seguros quanto à certeza da proposição deduzida, sempre que a nossa garantia
não possua uma natureza científica?
A resposta para isso é uma atitude
comum que é mais complexa do que o mero silogismo: o sentido ilativo. O sentido
ilactivo ilustra o modo como funciona a mente humana. É a sabedoria prática ou phronesis de Aristóteles. A mente reconhece o modo como
diferentes probabilidades convergem para uma conclusão inevitável.
A nossa mente funciona sempre perante
os factos do mundo como se a sua certeza fosse sólida, sem nenhuma teoria do
conhecimento, considerando ser aceitável possuir a certeza, mesmo perante uma
dúvida razoável. O sentido ilativo avalia quais as probabilidades que podem ser
tomadas no seu conjunto como sinal da certeza, embora isoladamente não sirvam
como tal. O sentido ilativo preenche o espaço entre a premissa e a certeza, o
espaço das probabilidades.
Por oposição, a certeza afirmada como
mera função de probabilidade remete tudo o que for menos de 100% certo para o
campo das probabilidades e tudo o que for 100% certo necessariamente terá que ser
suportado por alguma evidência empírica. O primeiro Wittgenstein ao reduzir a
certeza aos factos do mundo estava precisamente a seguir esta doutrina da
certeza baseada em probabilidades. Embora Locke pretendesse proteger a verdade
da dúvida, apenas conseguiu incorporar a dúvida na própria articulação da
verdade.
Para Newman existem duas atitudes a priori que são erradas: negar a
possibilidade da certeza, reduzindo-a a graus de probabilidade, ou afirmar a
certeza por exaltar a nossa capacidade de conhecer. Contra ambas, Newman apela
“à voz do senso comum” que justifica a adesão da mente à verdade por meio da
assumpção de que, mesmo perante a falta de evidência indestrutível, a certeza
pode ser sentida.
Se adoptássemos como definição de
certeza a teoria lockiana das probabilidades, toda a fé seria destruída, porque
uma oração correria do seguinte modo: “Meu Deus, se tu existires, salva a minha
alma, se eu tiver alma”. Dificilmente alguém poderá orar deste modo esperando
ser atendido, pois não se espera de alguém a quem não se reconhece sequer a existência,
uma ação a que não se reconhece o objecto.
O cepticismo torna-se um estado da
mente que envolve um sistema doutrinal que lhe é próprio, a dúvida universal,
que apenas pode ser resolvida pelo cientismo, as proposições da ciência natural.
No entanto, nós lidamos no nosso
quotidiano com convicções que não admitem a dúvida e em que duvidar delas seria
completamente ridículo. Para um português, afirmar que Portugal possui uma
costa marítima e que partilha uma fronteira com a Espanha não necessita de
verificação empírica por uma imagem aérea ou por meio de uma viagem de contorno.
Tudo em Portugal implica essas premissas: a sua história, o nome de certas terras, as suas trocas
comerciais, os acontecimentos do dia a dia, o sistema comercial e social, as
relações políticas. Portanto, nós não dizemos “eu sei que Portugal tem
uma fronteira marítima e uma fronteira com a Espanha”, mas simplesmente
“Portugal tem uma fronteira marítima e uma fronteira com a Espanha”. Essas duas
premissas não carecem de verificação empírica; são parte da nossa vida. Mesmo
quem nunca viu o mar (hoje em dia raro, mas outrora relativamente frequente)
sabe que Portugal é uma nação marítima, faz parte da sua idiossincrasia.
Wittgenstein muda a sua posição em On Certainty:3 “Em todo o sistema dos nossos jogos de linguagem,
essas assumpções são fundacionais. A assumpção forma a base da acção, e, por
consequência, do pensamento. Temos que tomar conhecimento de que mesmo que
alguém não use os termos “eu sei”, a sua conduta o pressupõe.
E aqui reside, segundo Newman e
Wittgenstein, o erro do céptico: o conhecimento concebido como meramente
empírico e provável não é, nem pode ser, a base moral da nossa vida. Era a isso
que Wittgenstein se referia quando admitia que o sentido do mundo estava fora
das proposições da ciência natural e a que Newman se refere ao dizer que ao
darmos valor ao “sentir comum dos homens”, o crente pode possuir fé, não porque
lhe falte a razão, mas porque a fé pode ser inteiramente razoável, mesmo que a
demonstração lógica não esteja disponível.4
Ao pensar ter descoberto o fundamento
da certeza no âmbito da probabilidade, o céptico pensa estar a afirmar uma
solução que o não é e pensa ter descoberto algo novo, quando não descobriu
nada. O crente sabe muito bem que não se pode alcançar uma certeza “sólida,
inegável, absoluta e imutável” neste mundo; mas também sabe que o cepticismo
não é o modo como funciona a vida humana.
Para Newman, se tudo fosse uma questão
de graus de opinião, como se explicaria o sofrimento dos mártires? Ele só se
compreende porque a Igreja Católica e o cepticismo assentam em dois dogmas de
natureza diferente; a primeira por premissa, o segundo pela dúvida: “Muitos
homens morrem por um dogma, nenhum por uma dedução. A dedução é uma opinião de
que estamos seguros e sempre se disse que se afirmamos que estamos seguros é
porque temos o hábito de duvidar; não é algo que é. Dizer que uma coisa tem que
ser, é admitir que possa não ser. Ninguém morre por conjecturas; as pessoas
morrem por coisas reais."
Chesterton viu claramente este perigo
ao afirmar: “O mundo moderno não distinguirá entre questões de opinião e
questões de princípio; e acabará por tratar a ambos como meras questões de
gosto.”5
Antonio Campos
1 John Heaton and Judy Groves. Wittgenstein for Beginners. Penguin Books,
London. ISBN 1 874166 17 X.
2 Aidan
Nichols, A Grammar of Consent. T.& T.Clark Ltd, 1991. ISBN:
978-0-268-01026-3.
3 Wittgenstein, On Certainty. Basil Blackwell,1969. ISBN: 0631120009.
4 Ralph Wood, John Henry Newman, the Illative Sense, and the Threat of
Skepticism, 2011.
5 Chesterton, The New Witness, 1919.
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