"Aqui jaz Luís de Camões, príncipe
dos poetas do seu tempo. Viveu pobre e miseravelmente, e assim morreu."
Naquela tarde de 1572, Camões lê
longamente Os Lusíadas para el-Rei D. Sebastião. O entusiasmo de uma alma
juvenil num corpo ancião contrastava com o enfado de uma alma pueril num corpo
adolescente. Dois homens, cujo mérito era o reverso dos respectivos papéis.
Farto de tanta corrupção num país que recentemente passara da extrema
abundância à bancarrota, Camões confiava naquele jovem como farol de um novo
tempo e entendimento. A pensão atribuída ao poeta miserável viria a descontínuo
e vê-lo-ia morrer na maior miséria. É um quadro alegórico que grandes figuras
vejam os seus restos mortais desaparecidos. É uma justiça divina que eles sejam
figurados por um qualquer homem comum. E é uma ironia que
o comum dos homens ignore a realidade. O génio representado por um homem sem nome.
Ao considerar um escritor, é necessário
conhecer não apenas a sua arte mas também a sua filosofia; só desse modo se
ensaia a sua psicologia; só desse modo se confere a sua mensagem, a sua autenticidade.
É esta autenticidade que parece faltar a muitos escritores modernos, o que os
remete para a mera arte, para o representar, para o “fingimento”.
A espantosa modernidade de Camões
reside no seu todo complexo. Camões não fez heterónimos; como a maioria dos
homens, era, ele mesmo, heterononímico. Os seus heterónimos não possuíam anima, eram estados de espírito. Um
heterónimo não era uma máscara, não era play
acting, não era uma mera estética. O velho do Restelo não era um mero
heterónimo; era a advertência contra o caminho onde a abundâcia e a fama podem
conduzir, como a advertência de Deus ao seu povo prestes a entrar na Terra Prometida
(Dt 8, 7-19), contra a húbris, como personificado em Faetonte ou em Ícaro. Ele
não é apenas a visão do passado, como é ensinado nas nossas escolas; ele é a
insegurança de quem parte, o perigo do despovoamento do interior e os perigos
da prosperidade, com o seu cortejo de desigualdade e de corrupção. O seu mundo
já era o nosso; um misto de transição entre o legado antigo e o mundo moderno.
O apogeu, a decadência e a bancarrota, a corrupção e o deboche, estavam
presentes no seu mundo. Camões senta-se com Aristóteles, Virgílio e Homero, com
Dante e com Shakespeare; não apenas porque conheça uns ou antecipe outro, mas
porque ele é “outro” entre pares. Como Dante, Camões critica os erros da
Igreja, não critica a Igreja.1
Como Shakespeare possui um definido conceito moral.2
Em Camões o amor pelos clássicos não
existe para lhes copiar a fé.3
Para Camões a distinção entre religião mitológica e alegórica é clara. Cristo
é, como viria a ser para Dostoiévski, tudo o que de melhor há ou pode haver.4 Não confia nas elites mas
nos homens comuns.5 No
seu tempo critica ferozmente os desvios doutrinais da Alemanha e da
Inglaterra, uns motivados pelo orgulho, outros pelo utilitarismo. Critica o
narcisismo da França, o desvario da Itália e os erros da Igreja em Roma.6 Distingue claramente o
mundo exterior como objectivo e o mundo interior como subjectivo.7 Quando pensava a realidade,
pensava numa face e não num mecanismo. Camões
é o mais velho de nós, fala do seu tempo para o nosso tempo. A mulher ocupa uma
centralidade na sua obra, personificada na mulher comum que “descalça vai para
a fonte”, na Vénus protetora dos portugueses, na Madre de Deus, personificação
da Igreja.
Quando com nove anos fiz a composição da
4ª classe para o meu grande herói, já me fascinava o paradoxo de os melhores
dos homens possuírem uma biografia incerta. Mas estava longe, na ternura da
minha ingenuidade, de ver o “cavaleiro andante” compondo poemas para as suas
Dulcineias, vivendo “breves eternidades” com o “Mondego a correr nas suas veias”.8
Os marxistas erraram completamente o foco na crítica de classe à sua fidalguia. Este era um homem para quem a palavra camarada não era apenas um ideal; era uma forma de vida. Impulsivo e brigão, consegue-se-lhe adivinhar traços do último cavalheirismo: a capacidade de não dar a última estocada no adversário caído, ou de deixar a última réplica ao adversário sem argumentos. Ele nunca sofreu desse pedantismo mesquinho de pretender ser "um educador da humanidade". Seria o primeiro a reconhecer que não conseguiu educar-se a si próprio. Foi a vida que o corrigiu. Ele pode dizer com Dostoiévski: "Deus açoitou-me toda a vida!"
Depois de Ceuta, começaria a sua mais autêntica experiência de vida. Preso, deportado, amante, pecador confesso, pobre, desvalido. Deixou-nos preciosos registos da sua experiência mundana, muitos deles plenos de sensualidade9 e de sentido de humor.10
Depois de Ceuta, começaria a sua mais autêntica experiência de vida. Preso, deportado, amante, pecador confesso, pobre, desvalido. Deixou-nos preciosos registos da sua experiência mundana, muitos deles plenos de sensualidade9 e de sentido de humor.10
“Morro, mas morro com a Pátria.” Este
homem comum, miserável, a quem tantos roubaram ou copiaram poemas, não foi um
homem vulgar. Porque o próprio desejo de ser distinguido é um desejo vulgar.
Deixou-nos os mais maravilhosos oxímoros da literatura portuguesa.11
Fica-se com a impressão que quem lê
Camões vê a sua alma, como fazia o stárets Zóssima nos Irmãos Karamasov. A sua
ortodoxia era definida, embora se confessasse pecador; não era um fariseu, nem
um elitista, nem um gnóstico, nem um fingidor; foi autêntico. As suas palavras
tinham um sentido alegórico. Morria com a Pátria para com ela ressuscitar.12
Com ele deixo as palavras de
Chesterton, como quem depõe uma rosa:
"Um patriota não é apenas aquele
disposto a morrer pela Pátria; é aquele que se dispõe a morrer com a
Pátria."13
António Campos
Nota: Dedico este texto à professora
Amélia Pinto Pais, autora do livro “Os Lusíadas em Prosa” prefaciado por David
Mourão Ferreira. Teve a amabilidade de o oferecer aos meus filhos sem
sequer os conhecer; já não se conta entre os vivos. Com esta nota, desejo
do mais fundo de mim agradecer aos meus professores que fizeram de mim o homem
que sou. Na figura dela, desejo estender o meu agradecimento a todos os professores que diariamente
se dedicam sinceramente a fazer dos seus alunos melhores pessoas e melhores
alunos, tantas vezes com grande esforço e paciência. Do valor do seu trabalho
resultará o valor de toda a nação.
1Umas
dizem que jejuam a pão e água, outras que não comem cousa que padeça morte. E
destas há algumas de estofo que fazem ir uma nau à Índia em três dias: grandes
capelos e hábitos de sarja, contas na mão e o cu ladrão, e haja eu perdão,
porque debaixo lhe achareis mantéus debruados, gravins lavrados, jubões de
holanda, alvos e justos.
2Esparsa: Ao
Desconcerto do Mundo:
Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais m' espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamento.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
Assi que, só para mim
anda o mundo concertado.
3Canto X, Lusíadas:
Aqui, só verdadeiros, gloriosos
Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só para fazer versos deleitosos
Servimos; e , se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso.
4Efeitos mil
revolve o pensamento
e não sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que é mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.
Doctos varões darão razões subidas,
mas são experiências mais provadas,
e por isso é milhor ter muito visto.
Cousas há i que passam sem cridas
e cousas cridas há sem ser passadas,
mas o milhor de tudo é crer em Cristo
5Canto III
"Do justo e duro Pedro nasce o brando,
(Vede da natureza o desconcerto!)
Remisso, e sem cuidado algum, Fernando,
Que todo o Reino pôs em muito aperto:
Que, vindo o Castelhano devastando
As terras sem defesa, esteve perto
De destruir-se o Reino totalmente;
Que um fraco Rei f az fraca a forte gente
Canto VII
Vós, portugueses, poucos quanto fortes,
Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós, que, à custa de vossas várias mortes,
A lei da vida eterna dilatais:
Assi do céu deitadas são as sortes
Que vós, por muito poucos que sejais,
Muito façais na Santa Cristandade,
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!
6Canto VII
Vêdelos alemães, soberbo gado,
Que tão largos campos se apascenta;
Do sucessor de Pedro rebelado,
Novo pastor e nova seita inventa
(Henrique VIII – Defensor da Fé, depois heresiarca
e Francisco I de França que se aliou aos muçulmanos contra Carlos V)
Guarda-lhe, por entanto, um falso rei
A cidade Hierosólima terrestre,
Enquanto ele não guarda a santa lei
Da cidade Hierosólima celeste.
Por ti, Galo indigno, que direi?
Que o nome “cristianíssimo” quiseste,
Não para defendê-lo nem guardá-lo,
Mas para ser contra ele e derrubá-lo!
Pois o que direi daqueles que em delícias,
Que o vil ócio no mundo traz consigo,
Gastam as vidas, logram as divícias,
Esquecidos de seu valor antigo?
Nascem da tirania inimicícias,
Que o povo forte tem, de si inimigo.
Castigo, Itália, falo, já submersa
Em vícios mil, e de ti mesmo adversa
7Tanto de meu
estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, justamente choro e rio,
O mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto, um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.
Se me pergunta alguém por que assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.
8Tempo Que não Passa,
Manuel Alegre
De Coimbra fica o sonho e fica a graça
Antero de revolta e capa à solta
De Coimbra fica o tempo que não passa
Neste passar do tempo que não volta
De Coimbra fica um rio e uma saudade
Cavaleiros andantes, Dulcineias
De Coimbra fica a breve eternidade
E o Mondego a correr nas nossas veias.
9Os Lusíadas, Canto
II
Os crespos fios d'ouro se esparziam
Pelo colo, que a neve escurecia;
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava, e não se via;
Da alva petrina flamas lhe saíam,
Onde o Menino as almas acendia;
Pelas lisas colunas lhe trepavam
Desejos, que como hera se enrolavam.
—Os Lusíadas, Canto IX
Ó que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã, e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
10As «damas de
aluguer» são capazes de cantar e dançar tão bem quanto os artistas que «El‑Rei mandou chamar» para a Corte.
Camões compara a «carne de salmoura» das
prostitutas de Goa que se “lhes faleis alguns amores de Petrarca ou de Boscán,
respondem-vos numa língua meada de ervilhaca, que trava na garganta do
entendimento, a qual vos lança água na fervura da maior quentura do mundo»; com
as irresistíveis «falsidades» das suas literariamente sofisticadas congéneres
lisboetas, «que chiam como pucarinho novo com água», e promete ir recebê-las
pessoalmente, como um Patriarca, de procissão e pálio, «se não recearem sofrer
seis meses de má vida por esse mar».
11Amor é um fogo que
arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se e contente;
É um cuidar que ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
12A grande
experiência é grão perigo;
mas o que a Deus é justo e evidente
parece injusto aos homens e profundo.
... dedicai, se quereis, ao desconcertos
novas honras e cegos sacrifícios;
que, por castigo igual de antigos vícios,
quer Deus que andem as cousas por acerto.
Um ser infinito, incompreensível;
uma verdade que nas cousas anda,
que mora no visível e no invisível;
essa Potência, enfim, que tudo manda...
Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
qualquer alma farão segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
têm do confuso mundo o regimento.
Efeitos mil revolve o pensamento
e não sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que é mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.
Doctos varões darão razões subidas,
mas são experiências mais provadas,
e por isso é milhor ter muito visto.
Cousas há i que passam sem cridas
e cousas cridas há sem ser passadas,
mas o milhor de tudo é crer em Cristo.
13Chesterton, A Nova
Jerusalém.
A miséria da vida de Camões parece um mistério pelo contraste diante de sua grandeza de alma. E mostra que pobreza não é justificativa para ter pouco conhecimento.
ResponderEliminarNão podia estar mais de acordo.
ResponderEliminarhttps://24.sapo.pt/atualidade/artigos/tolentino-mendonca-e-como-mais-um-entre-os-10-milhoes-de-portugueses-que-hoje-me-dirijo-as-mulheres-e-aos-homens-do-meu-pais
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