O grande ensaio de G. K. Chesterton
sobre Voltaire e Frederico II1, lança luz sobre outra
das dimensões de algumas personalidades marcantes da História, sobretudo quando o que preside à sua relação é a real politik. Uma atitude que Chesterton compara à relação entre Herodes e Pilatos, que passaram de odiados a amigos na sequência da condenação de um inocente, por motivos puramente práticos: “É melhor que morra um só homem!”
3 Para uma avaliação mais completa dos diversos encontros de Frederico com Voltaire, antes e após Frederico ser rei, do ambiente em Sanssousi, da missão de espionagem de Voltaire, da idolatria da literatura francesa por toda a Europa, dos altos rendimentos de Voltaire e da sua vida faustosa, das suas falsificações e envolvimento em negócios sujos, do carácter sórdido destas personagens, do modo como Frederico disse a d'Alembert, dois anos após a morte de Voltaire, que todas as manhãs dizia "divino Voltaire Ora Pro Nobis", sugere-se a leitura do artigo :
4 Chesterton, O Mistério dos Místicos, Daily News, 30.08.1901.
das dimensões de algumas personalidades marcantes da História, sobretudo quando o que preside à sua relação é a real politik. Uma atitude que Chesterton compara à relação entre Herodes e Pilatos, que passaram de odiados a amigos na sequência da condenação de um inocente, por motivos puramente práticos: “É melhor que morra um só homem!”
Para Chesterton, o encontro do Sr. Arouet,
mais conhecido como Voltaire, com Frederico II, marca o início do moderno
cepticismo da mesma forma que o “encontro” entre Herodes e Pilatos marca o
início do cristianismo. Uma começou com uma estranha amizade que acabou em
desavença; a outra com uma desavença que acabou numa estranha amizade. Chesterton
chamou a isto as amizades perversas da História: “Às vezes parece-me que a
História se encontra dominada por estas amizades perversas.”
O tipo de amizade que une dois egoístas, que por razões puramente de conveniência se decidem aliar, termina sempre do mesmo modo. Por algum tempo, a noção de mútua vantagem indu-los a suportarem-se, mas mais cedo ou mais tarde a natureza de cada um deles exterioriza-se e a amizade termina.
Chesterton descreve esta monstruosa
combinação, como o cíclope Polyphemus, depois de Ulisses o ter cegado na
caverna (Virgílio, Eneida): monstrum,
horrendum, informe, ingens, cui lumen ademptum (um monstro horrível,
disforme, imenso, desprovido da luz e de visão). Como uma amizade destas se
funda na conveniência e não no amor, o que dela resulta não é nada de bom, não
é uma coisa una, mas dois males conflituantes; uma dialética. Com Voltaire, os
latinos aprenderam o cepticismo raivoso; com Frederico, os alemães aprenderam o
orgulho furioso. O facto de ambos serem cosmopolitas e não patriotas (Voltaire
ridicularizou a padroeira de França e Frederico falava francês em vez de alemão
na sua corte – aliás, desdenhava da literatura alemã), fez com que não apenas
não amassem o respectivo país, mas com que desdenhassem do homem e do cosmos.
O tipo de amizade que une dois egoístas, que por razões puramente de conveniência se decidem aliar, termina sempre do mesmo modo. Por algum tempo, a noção de mútua vantagem indu-los a suportarem-se, mas mais cedo ou mais tarde a natureza de cada um deles exterioriza-se e a amizade termina.
Apesar de Voltaire infantilizar os
pobres (como Locke), sem os respeitar, falando da crueldade para com os pobres
como se fala da crueldade para com os animais, Chesterton acreditava que
Voltaire era melhor pessoa do que Frederico:
“Nenhum deles jamais amou muito alguma
coisa. Voltaire era o mais humano dos dois; mas Frederico por vezes também
falava do humanismo cínico que era a marca da sua época hipócrita. Voltaire,
mesmo no âmago do seu brilhantismo, iniciou a atitude moderna que arruinou o
humanismo que sinceramente defendia. Iniciou o hábito horrível de tentar ajudar
os seres humanos por lhes chamar idiotas e não por os respeitar. Para ele, a
opressão dos pobres era uma espécie de crueldade para com os animais, perdendo
todo aquele sentido místico de que ferir a imagem de Deus é insultar o
embaixador de um rei. E, no entanto, acredito que Voltaire tinha coração,
enquanto que Frederico era mais implacável quando era mais humano.”
Chesterton sublinha o ateísmo ou deísmo
de ambos os personagens e acusa-os de trair os ideais democráticos promovendo a
tirania (Frederico) e o secretismo (Voltaire e Frederico):
“Estes dois cépticos concordavam em que
não existia Deus nenhum, ou a existir um Deus, ele preocupar-se-ia tanto com os
seres humanos como com os ácaros do queijo. Nesta base concordaram, nesta base
discordaram: «Provarei que o escárnio de
um céptico pode construir uma república de uma revolução que por toda a parte
derrubará o trono e o altar». E Frederico respondeu: «E eu mostrarei que um
cepticismo desdenhoso pode ser usado para resistir à Reforma, para ser o
suporte da pior das tiranias, para o mais brutal despotismo de um senhor sobre
os seus escravos». Despediram-se e, desde então, encontram-se separados por
dois séculos de guerra.”
“A promessa de Voltaire de produzir uma
revolta que levantasse as multidões para derrubar os tronos não foi a evolução
final do cepticismo. O efeito final naquilo a que chamamos democracia foi o
desaparecimento das multidões. Podemos dizer que havia multidões no início da
Revolução e nenhuma no seu final. Que a influência de Voltaire não se quedou
pela regra das multidões, mas pela regra das sociedades secretas. Falsificou os
políticos em todo o mundo latino, de que a recente contra-revolução italiana
(Mussolini) é um exemplo. Voltaire produziu um tipo de político profissional,
pomposo e hipócrita, o qual ele seria o primeiro a satirizar.”
“Frederico que não adorava nada
tornou-se um Deus para ser cegamente adorado; ele que não gostava
particularmente da Alemanha tornou-se o grito de guerra daqueles que vêem a
Alemanha acima de tudo (o hino alemão é Deutschland
über alles). A raiz de ambas as perversidades emana do mesmo tipo de
irresponsabilidade ateia: nada impediu o céptico de transformar a democracia em
secretismo; nada o impediu de interpretar a liberdade como uma licença para a
tirania.”
Chesterton termina dizendo que no seio
do protestantismo sempre se duvidou de Voltaire, mas que Frederico foi muitas
vezes visto, pelo menos em Inglaterra, como um herói protestante: “Podemos ser
ensinados pelo general Göring, pelo menos até aprendermos que nada é mais
anárquico do que a disciplina separada da autoridade, i.e., do direito.”
Para Chesterton, desta dialética quase
resultou a morte da fé, mas o vaticínio de Voltaire não se confirmou: não só a
fé sobreviveu à sua morte, como o seu ateísmo não prevaleceu até ao fim. Face
ao nacional-socialismo emergente na Alemanha (este ensaio As I Was Saying foi escrito no ano da morte de Chesterton, 1936),
Chesterton responsabiliza mais Frederico do que Voltaire como o maior anarca
dos dois (na verdade, a muralha de Berlim foi mandada construir não para
defender a cidade, mas para evitar a deserção dos cidadãos em idade militar,
transformando Berlim numa prisão).
As palavras de Brecht usadas
correntemente para exaltar a paixão marxista pela “libertação” dos povos, todos
apontam as águas caudalosas de um rio mas raros são os que reparam nas margens
que o apertam, são elas próprias ilustrativas do carácter alemão, desde
que a obediência foi elevada ao altar para que o homem sirva o despotismo. Aliás,
inclinação possuída pelo próprio Brecht: “Brecht nunca se sentiu
verdadeiramente atraído pelo movimento dos trabalhadores – o qual nunca lhe foi
próximo ou familiar – mas por uma necessidade profunda de autoridade, de uma
submissão total a um poder absoluto, à igreja imutável e hierárquica do novo
Estado Bizantino, baseada na infalibilidade do chefe.”2
Para quem crê que Chesterton julga
Frederico com dureza, nada melhor do que ler o poema do próprio Voltaire, A Lei
Natural, dedicado a Frederico, o Grande, após a sua prisão em
Frankfurt:
"De contradições, uma pilha
monstruosa,
Chamando aos homens irmãos, esmagando-os
sem piedade;
Com ar humano, um bruto misantrópico;
Quase sempre impulsivo, por vezes muito
deslambido;
Fraco na sua cólera, modesto no seu orgulho;
Ansiando pela virtude, é a luxúria
personificada;
Estadista e escritor, de um povo
esquivo;
O meu mecenas, aluno, e também
perseguidor."
Estes dois homens eram homens de alta
cultura e percepção era coisa que não lhes faltava.3 O que lhes faltou foi ouvir
e aceitar o testemunho de uma fé sobrenatural que não permeabiliza o orgulho. A
sua cultura resultou em orgulho e desprezo, tentando destruir aquela
civilização no seio da qual eles próprios se formaram:
“É muito estranho que homens que
consideram que todas as mitologias são apenas símbolos se dediquem ao culto de
deuses esquecidos e dos templos caídos da Babilónia e do Antigo Egipto, os mais
remotos, decadentes e vazios de significado. É incrível como homens que
reconhecem que todas as coisas fazem parte da divindade se dediquem a atacar ou
a ignorar coisas que milhões de pessoas da sua própria civilização e do seu próprio
sangue afirmaram ser divinas.”4
Chesterton combateu toda a sua vida
precisamente contra esta insensibilidade para com os outros que resulta da
falta de humildade. Este “deserto de ingratidão” nunca dá bom fruto, porque
nunca conduz os seus próprios possuidores a qualquer tipo de felicidade, porque
nunca os predispõe à partilha e porque do seu hedonismo e desprezo só resulta
sofrimento:
“O misticismo cristão distingue-se dos
outros misticismos porque tende a ser democrático enquanto que os outros são
aristocráticos. O neófito moderno encontra-se possuído pela ideia de que se
ergue no mundo espiritual. É uma ambição digna de um merceeiro que quer ser
baronete. No mundo espiritual um homem tem que se humilhar para ser exaltado. Existe
muito deste snobismo místico sobre preparação, purificação e iniciação. Trata-se
de furtar um caminho a outros para obter a posse da verdade, não porque seja óbvia,
mas por ser secreta.
O facto de tantos estudantes modernos
do transcendente possuírem o desejo de pertencer a uma aristocracia espiritual,
de se sentar em tronos pelos quais há que competir, tal como com os lugares de
um governo, é uma prova simples e suficiente de que não possuem em si mesmos
sequer os rudimentos da espiritualidade. O misticismo cristão obedece ao princípio
de que a vida moral não é um puzzle egoísta no qual o diabo geralmente apanha a
pessoa mais confiante em si própria.
A verdadeira chave do misticismo cristão
não é tanto a entrega, que é dolorosa e complexa, mas mais o esquecer-se de si,
tal como o experimentamos em presença de um nascer do sol ou de o rosto de uma
criança, o qual é para nós tão natural como cantar a um passarinho.”4
António Campos
1 Texto
baseado no livro de Chesterton As I Was
Saying de 1936, capítulo IX.
2 Herbert Lüthy, Du Pauvre Bertold Brecht, 1953.
3 Para uma avaliação mais completa dos diversos encontros de Frederico com Voltaire, antes e após Frederico ser rei, do ambiente em Sanssousi, da missão de espionagem de Voltaire, da idolatria da literatura francesa por toda a Europa, dos altos rendimentos de Voltaire e da sua vida faustosa, das suas falsificações e envolvimento em negócios sujos, do carácter sórdido destas personagens, do modo como Frederico disse a d'Alembert, dois anos após a morte de Voltaire, que todas as manhãs dizia "divino Voltaire Ora Pro Nobis", sugere-se a leitura do artigo :
http://books.eserver.org/nonfiction/strachey/voltaire-and-frederick.html
4 Chesterton, O Mistério dos Místicos, Daily News, 30.08.1901.
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