"Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção, - o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral. A saúde da alma é a ocupação mais digna do médico. (...) A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas..."
Machado de Assis, O Alienista
Nesta crítica pretende-se expor o
sofisma hegeliano, a sua desancoragem da realidade
concreta. O caminho que a mente toma quando entregue a si própria. Existe algo no idealismo alemão que lembra a esquizofrenia: a pobreza afectiva, o brilhantismo intelectual (pelo menos nas fases iniciais), uma lógica muito própria, o ensimesmamento, que termina em sofisma ou idiotia, como o próprio Hegel referiu sobre Kant.
concreta. O caminho que a mente toma quando entregue a si própria. Existe algo no idealismo alemão que lembra a esquizofrenia: a pobreza afectiva, o brilhantismo intelectual (pelo menos nas fases iniciais), uma lógica muito própria, o ensimesmamento, que termina em sofisma ou idiotia, como o próprio Hegel referiu sobre Kant.
– O retorno a si
- de Deus: se Deus tem que se “tornar” Deus ou “mais
Deus”, tomando consciência de si por uma necessidade
de descer ao concreto, isso significa que Hegel já não está a falar de Deus,
por definição, mas de “um outro”. Eu posso acreditar que o António Campos não existe,
o que não posso dizer é que o António Campos que eu não conheço, é menos António, sendo porventura
mais Joaquim. É muito interessante constatar que sendo Hegel oriundo da
Reforma, que proíbe toda e qualquer representação de Deus, ele está, nada mais
nada menos, a elaborar uma representação de Deus. O Deus de Hegel não é Deus, é
uma representação elaborada por Hegel, um mito saído da cabeça de Hegel. É
completamente contraditório, tal como o seu próprio pensamento. O Deus de Hegel precisa do universo como o homem precisa de um corpo, precisa de aperfeiçoar o mundo para se aperfeiçoar a si mesmo, não é eterno e imutável.
Em Is 45, 1, 4-6, afirma-se “Eu sou o Senhor e não há outro; fora de mim não há Deus.” Hegel inventa um ídolo, representa Deus. As imagens de Deus como ancião, como representado no livro de Daniel, Dan 7, 9-11, e no Apocalipse de S. João, são muito menos idolátricas, consideradas do ponto de vista de quem não admite representações.
Em Is 45, 1, 4-6, afirma-se “Eu sou o Senhor e não há outro; fora de mim não há Deus.” Hegel inventa um ídolo, representa Deus. As imagens de Deus como ancião, como representado no livro de Daniel, Dan 7, 9-11, e no Apocalipse de S. João, são muito menos idolátricas, consideradas do ponto de vista de quem não admite representações.
- do Homem: sem dúvida que nenhum homem nasce
acabado e que o sentido da vida reside no aperfeiçoamento e no conhecimento,
não apenas na arte, na ciência ou na filosofia, mas também na verdade e no bem.
Mas é lícito dizer que o homem apenas aprende a constatar o que já era? O homem
não toma apenas consciência do que já era, o homem avança no véu do futuro para
aquilo que se torna. Aprender não é meramente recordar, a reminiscência, como dizia Platão. Aprender não é déjà vu. Aprender é maravilhar-se, é
acender a luz, é emocionar-se. Como posso dizer que apenas é recordar o que
aprendi quando o meu filho esteve muito doente se antes eu não tinha filho?
Como posso estar meramente a recordar quando tomo conhecimento com a morte do
meu pai se nunca antes o meu pai tinha morrido? É absurdo.
– Um homem não se banha duas
vezes na água de um rio
Nem o mesmo homem, nem a mesma água.
Tomemos o exemplo de uma vela que acendemos numa noite de Natal. Passada uma
hora, a vela pode ter metade do tamanho e ter algumas alterações na sua forma.
Será lícito dizer que não se trata da mesma vela? O homem de ontem é
absolutamente contínuo com o homem de hoje. Num mesmo homem coincidem o velho, o adulto, o rapaz e a criança. Nenhum deles é menos humano. Nenhum
deles deixa de ser o mesmo homem. A
água do rio evidentemente nunca será exactamente a mesma. Mas será que a água
como substância não mantém basicamente as mesmas propriedades gerais para que
possa continuar a ser considerada como água? Em que difere substancialmente a
água do rio de ontem da água do rio de hoje? O que difere no odor da rosa deste
ano com a rosa que cheirei na primavera passada? Será que passou a cheirar a
jasmim?
– A consciência de si como conflito ou violência sobre o outro
A primeira identificação com o “externo”
é com o seu próprio corpo – a criança chupa o dedo, a criança tem fome e ouve o
seu choro, a criança tem cólicas – e com a sua mãe – o rosto da mãe é constitutivo. O primeiro e mais importante meio onde se dá a identificação, a família, é em geral um ambiente de cooperação, simbiose e reconhecimento mútuo, não de competição. Conhecer-se a si mesmo certamente não significa tomar posse do outro, englobá-lo.
- O “conhecer-se a si próprio”
A civilização ocidental tem uma tradição mais marcada sobre o conhecimento do “outro” e não de si próprio. Essa é a marca do Oriente. Desde os gregos que existe
a maldição de Narciso. Ninguém se conhece devidamente sem levar em conta as
opiniões dos outros, embora elas mesmas falíveis. Se conhecer-se a si mesmo significar comparar-se com outro ou
com qualquer teoria psicológica ou comportamental elaborada por outrem, a
comparação será sempre subjectiva e dependente do “espírito da época”. Nesse
aspecto, Hegel estava completamente certo, cada época tem o seu espírito e olha
com sobranceria para as épocas que a precederam.
- A Natureza Intuitiva do Referencial Absoluto
É impossível alguém ter consciência de
si sem um referencial absoluto: a verdade ou uma ética com conteúdo. Uma
verdade relativa ou uma ética meramente formal nunca assegurarão a consciência
de si. Se não soubermos claramente o que é bem e mal, como nos veremos? E mesmo
se pudéssemos acreditar na verdade, jamais teríamos plena consciência de nós.
Conhecer-se a si próprio é como correr atrás da própria sombra. Tentar
conhecer-se sem uma ancoragem no absoluto ou sem um referencial externo é como
uma sessão espírita: ninguém sabe verdadeiramente a origem do que ali se passa.
A opinião dos outros, mesmo dos que não gostam de nós e dos nossos inimigos, será sempre de levar em consideração.
Se eu for objecto do meu próprio
sujeito, então sujeito e objecto encontram-se dentro de mim, ensimesmados. Não
existe alteridade, eu e o objecto do meu conhecimento, porque ambos estão
dentro de mim. O conhecimento obtido desta forma nunca será um conhecimento
objectivo; nunca será conhecimento, será mera
opinião. Ou eu penso, como Hegel, que todo o universo se encontra dentro de
mim, ou então devo reconhecer que não é possível conhecer-me de forma
objectiva com base apenas nos meus
próprios recursos. Imbuído dessa atitude, qualquer tentativa de obter o
conhecimento de si está destinada ao fracasso. O indivíduo viverá na ilusão
hipnótica do encantamento. Ao tentar conhecer-me apenas a partir de mim mesmo eu
não estou a ser racional, estou a ser idiota.
– Deus nunca nos disse para
nos conhecermos a nós próprios, mas para amarmos os outros
Primeiro amar os outros como nos amamos
a nós, i.e., dar graças por sermos o que somos e amar os outros como eles são.
Mas depois reforçou: amai-vos como Eu vos amei. Isto significa o paralítico de Cafarnaum, o filho pródigo, o cego
e o leproso, a assistência do samaritano
ao seu inimigo espancado. Significa pensar nos outros mais do que nós, negar-se
a si mesmo, servir. Esta misericórdia, este amor sem limites é tipicamente
ocidental. Foi este tipo de atitude de ver “no outro” a si mesmo, de ver nos
homens o milhão das máscaras de Deus, que permitiu aos americanos matar a fome
a tantos alemães no final da II Guerra Mundial. E foi precisamente a ausência
desse reconhecimento que permitiu o holocausto, a carnificina entre americanos
e japoneses no Pacífico, as guerras genocidas na Bósnia ou no Ruanda. Quando vale mais reinar no Inferno do que servir no Céu, como dizia Milton, nós observamos esta orgia homicida na Terra.
- A incompletude
Se o espírito tem a mesma fonte e
sempre retorna, porque não veio ele ainda completar o Requiem de Mozart ou as obras de Lizst, a Suma Teológica de São Tomás ou os trabalhos de Mark Twain, a Adoração dos Magos de Leonardo da Vinci
ou o quadro O Tratado de Paris de
Benjamin West, a Sinfonia nº 8 em B menor
de Schubert ou O Mistério de Edwin Drood
de Charles Dickens?
Não deverão existir poucas pessoas
ocupadas, com sentido do dever, com “a dialética da acção”, que não sintam que
sempre lhes falta um pouco de tempo, que o que realizam tem sempre algo de
incompletude. É o tempinho de estudo que falta nos últimos dias antes do exame,
é o tempo que falta para dedicar mais aos pais e aos filhos, é aquilo que ficou
por fazer. Esta incompletude, e não a completude, é intrínseca à natureza do mundo
e do homem, à própria vida.
O conhecimento que é comum a todos
os homens é realmente bastante diminuto. Pensemos que conhecimentos são
partilhados por todos os portugueses sem excepção: o mínimo denominador comum é
de facto reduzido. Podemos pensar que muitos
conhecimentos unem os médicos entre si, mas depois ficamos horrorizados se para
tratar um tumor na mama nos enviarem um ortopedista.
Se um homem não é perfeito a sua
tentação para o despotismo conterá sempre alguma forma de erro e de corrupção.
Pode culminar na blasfémia de se considerar um “enviado de Deus”.
Se o homem não é perfeito a sua
tentação da perfeição envolverá sempre um toque de loucura. A consideração de
que o homem se pode completar, ou possuir uma visão completa de si próprio, produz loucos dentro de pequenos círculos.
O homem deve aspirar ao que é
divino para completar a sua humanidade, mas blasfema quando tenta ele mesmo ser
divino. Esta incompletude do homem remete para a existência de Deus.
– O Carácter Perene da Matemática, da Razão, da Consciência
Se tudo muda excepto a própria mudança,
porque não mudam as constantes matemáticas e os teoremas? Não
mudam pela simples razão de que estão fora do tempo. E quanto à razão humana,
porque não muda constantemente tornando-se inconfiável ou ininterpretável?
Porque embora o homem se encontre dentro de um tempo determinado, a razão
humana, quanto ao seu processo de funcionamento, está fora do tempo; são as
premissas de que parte que espelham o seu tempo. A natureza do homem é sempre a
mesma, a sua condição é que muda.
A mudança, o tempo, não é pois o absoluto. Ele nem sequer é absoluto no sentido físico pois varia com a
velocidade da luz. Ao constatarmos que existem coisas que não sofrem a
influência do tempo, intuímos que existe uma realidade fora do tempo e da
mudança. Quando alguém se vê ao espelho e se apercebe de como está tão velho,
essa surpresa, essa perplexidade, essa estranheza, não exprimem idiotia. Essa
estranheza remete para uma consciência que está fora do tempo e que se
surpreende com as modificações que o tempo imprime numa parte de si,
precisamente a sua parte material que está dentro do tempo.
– Na Fenomenologia Hegel
diz que não existe sensibilidade primária não conceptual e que a consciência de
si só se encontra quando temos consciência de um outro
Ambas as premissas são falsas:
1 – Os conceitos obtêm-se por
comparação entre propriedades sensíveis e não o inverso. É por uma criança ver
quem lhe dá carinho, toque, aconchego e comida, que liga a percepção sensível
dessa face, que se repete dia após dia, a um conceito que aprende mais tarde: a
mãe. É por uma criança ver a cor do tomate, do sangue, do morango, que a
associa mais tarde ao conceito do vermelho. O conceito resulta obviamente da
percepção sensível. Um cego de nascença não tem
nenhuma condição de descrever ou imaginar visualmente a cor vermelha, que
resulta da sensação de uma célula específica presente na retina de pessoas
normais, que é excitada pela luz de 625-740 nm, o cone “vermelho”. Tal como um
surdo de nascença não pode explicar a diferença entre uma sinfonia e uma peça
de jazz. Elaboramos conceitos por comparação a partir das sensações e só
desenvolvemos as áreas cerebrais correspondentes após a recepção dos estímulos
eléctricos provenientes dos neurónios sensoriais. Em Gen 2, 19-20, Deus faz passar os animais perante o homem para que ele lhes atribua nomes. Isto é absolutamente correcto: primeiro vemos, depois conhecemos. É assim a realidade. Tudo começa com a sensibilidade primária.
2 – É falso que se tenha primeiro
consciência do outro e só depois consciência de si. Vamos para esta prova usar
o trabalho do Professor Abel Salazar (1889-1946) que corrigiu muito
oportunamente Descartes: é a consciência do pensar e não o próprio pensar que
nos poderá fornecer uma prova da nossa existência. “Eu sei que eu penso” e não
apenas “Eu penso”. Este eu sei remete
a consciência para uma dimensão misteriosa. Para Abel Salazar a consciência é
responsável pela unidade da nossa personalidade e é impossível de analisar
porque só é apreendida pelo próprio e é faculdade primordial que não deriva de
nenhuma outra mas para onde todas as outras tendem. Foi a neuro-traumatologia e
a neuro-fisiologia modernas que nos forneceram pistas adicionais, nomeadamente
com António Damásio (O Sentimento de Si
e O Livro da Consciência).
Desde meados do séc. XX que se sabe que
o cérebro elabora “imagens” dos objectos apreendidos pelos órgãos dos sentidos.
A consciência de si é então a primeira das aquisições da consciência,
formando-se desde tenra idade. E contrariamente ao que afirmava Hegel, não num
ambiente de competição e conflito, mas geralmente num ambiente de conforto e
acolhimento. Hegel apenas parece ter especulado, ou seja imaginado, a partir da
vida de adultos e talvez da sua própria vida em meio universitário altamente
competitivo.
O nível mais elementar de consciência,
o proto-Eu, deve-se às imagens
cerebrais elaboradas a partir de estímulos oriundos de dentro do nosso próprio
corpo – a sensibilidade proprioceptiva. Na criança até aos dois anos de idade a
maior parte das imagens cerebrais construídas dizem respeito ao próprio corpo,
porque apenas os neurónios do tronco cerebral e do hipotálamo se encontram
mielinizados.
O Eu-nuclear é
elaborado progressivamente a partir dos dois anos à medida que progride a
mielinização para as estruturas do cortéx, permitindo a elaboração de imagens
complexas do mundo exterior por parte do cortéx visual, auditivo e táctil. O Eu-nuclear é já a plena consciência. E a
prova de que a consciência de si não depende da consciência do outro
encontra-se em alguns epilépticos, no automatismo epiléptico, em que o
indivíduo tem perfeita consciência do meio que o rodeia mas ignora por completo
a sua própria existência. O doente carece do proto-Eu. E o nosso Eu-autobiográfico
fornece-nos por meio dos dados da memória a continuidade espácio-temporal.
– O Devir, ou O Tornar-se, como Absoluto
Kant atribui ao conhecimento apenas
aquilo que pode ser conhecido por nós, i.e., o verdadeiro, o bom e o belo, nas
suas três críticas, mas não o mundo real, “em si”. Hegel discorda afirmando que
atribuir a uma forma de conhecimento inadequada, i.e., sensação ou sentir, um
poder que se nega a uma forma mais determinada, i.e., a conceptual, é
inadequado. Mas o seu esquema conceptual assenta na dialética e a dialética
encontra-se dentro do tempo, é o
devir. E assim ela nunca poderá conduzir a nenhum conhecimento absoluto porque
ela tem que ser relativa como o tempo que a determina. Acresce que o próprio Hegel afirmou que a
filosofia espelha o seu tempo e o filósofo não pode saltar o tempo.
– O Presente abstracto
Para Hegel, o presente é completamente abstracto,
não existe. Porque o devir engloba passado, presente e futuro na mesma hélice.
A ideia não é completamente fantasiosa. De facto o presente físico é muito
difícil de definir, no sentido em que a partição de um momento de tempo é, em
princípio, infinita. Mas nós temos uma consciência psicológica do presente que
envolve algo do passado, um presente sempre a correr e uma pequena parte do
futuro imediato que decorre como acção. Esta jangada de presente é
indispensável para pensar e agir. Se eu me esquecesse do meu passado a cada
minuto era impossível saber quem sou, aqueles que conheço ou agir no mundo.
Será mais correcto dizer que nós temos uma percepção finita de
uma realidade infinita. Chesterton dizia que o homem não pode amar coisas mortais, ele só consegue amar coisas imortais por um instante. O nosso Eu-autobiográfico parece corroborar esta tese.
Neste sentido existe um aqui e um agora, Hegel não tinha razão. Se não
percebêssemos deste modo, i.e., em fragmentos finitos, jamais teríamos a noção
de continuidade ou de existência.
Finalmente falta apontar um ponto a
Hegel. Ele que tanto “bebeu” em Espinoza negligenciou o que Espinoza disse de
fundamental: as emoções e os sentimentos são essenciais aos processos
cognitivos. Não é preciso especulação para isto compreender, basta intuição e
senso comum. Qualquer aluno ou professor o pode testemunhar; a empatia é
fundamental no processo de aquisição de conhecimentos. Aliás, uma parte
essencial do relacionamento entre animais e entre o homem e o animal depende
deste conhecimento e reconhecimento afectivo. Ele parece mais amplo do que o
conhecimento meramente racional.
António Campos
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