Talvez seja útil, antes de continuar, referir alguns dados da biografia “psicológica” de
Chesterton ou, por outras palavras, a história de uma metamorfose. Muitos consideram que Chesterton desenvolve um raciocínio metafísico análogo ao cristianismo, simplesmente porque ele é cristão ou porque desde o início teve afinidade com o cristianismo. Na verdade, esta afirmação é tão falsa como afirmar ele era uma espécie de cómico da escrita onde tinha oportunidade de aplicar o seu sentido de humor. Na verdade, são as biografias “cronológicas” que nos indicam um Chesterton que desde o início teve simpatia com o cristianismo e até com o catolicismo, embora imerso num oceano de dúvidas.
O que sabemos de Chesterton até aos 18
anos, em 1892, altura em que partiu para a escola de arte, encontra-se em
documentos dessa altura, como o Notebook,
o jornal Debater do Junior Debater Club (JDC) na Escola de
São Paulo, no manuscrito que conta a estória do JDC que Chesterton escreveria
em 1894, aos 20 anos, e no livro escrito por seu irmão Cecil, Gilbert K Chesterton A Criticism, de
1909. Neste clube, cada membro adoptava um heterónimo com as iniciais do seu
nome, pelo que GK Chesterton era Guy Crawford, um artista de fortes tendências
socialistas. Seria a perseguição aos judeus, executada pelo estado soviético
que lançaria Chesterton no ideal liberal, não seguindo o caminho rumo aos
fabianos socialistas que seu irmão e sua cunhada tomariam.
Por liberalismo, Chesterton
entendia um movimento de reforma e progresso, a ser alcançado através do
livre-pensamento e a rejeição do dogma – o chamado princípio anti-dogmático de Henry Newman. Chesterton protestaria
contra todos os que consideravam a Revolução Francesa como tendo sido um
fracasso; defenderia uma educação estatal laica, igual e universal; defenderia
que os estudos científicos deveriam substituir os clássicos; mais
surpreendente, defenderia abertamente o movimento feminista. Para Chesterton, a
religião era apenas uma das faces deste liberalismo humanitário, desenvolvendo
uma teologia humanística em que existiriam aspectos da verdade em qualquer
credo, fosse ele de natureza religiosa ou secular.
No jornal Debater publicaria os seus Poemas Éticos em que defendia que se
deveria destruir a pretensão de “padres ciumentos que se acham donos do dogma
da verdade” e substituí-la pela revelação universal de JJ Rousseau: “Embora o
fetiche se erga como fetiche, o homem que ajoelha (ainda) é um homem.” Para
Chesterton, a história humana não mais será manchada pela palhaçada daqueles
que “lutam por um nome e matam por um símbolo.” Chesterton diria que “a patrona
dos papistas é uma mulher, e a mulher é adorada tal como o homem por todos os
humanistas.” Chesterton escreveria que “todas as fés são símbolos, porque
humanas, e o homem é divino.” O poema São
Francisco Xavier de 1892, escrito aos 18 anos, refere “a Igreja que lhe
lançou um encanto sombrio” e a colectânea Wild
Knight and Other Poems, publicada em 1900, aos 26 anos, inclui poemas onde
se mencionam ataques “aos padres e ao dogma mesquinho”, reflectindo as suas primeiras
convicções, expressas em poemas escritos muito antes da publicação. Chesterton
daria ordem mais tarde para que esse seu material fosse destruído porque sentia
vergonha de o ter escrito, mas felizmente não foi obedecido.
Quer o seu irmão Cecil, quer dois dos
elementos do JDC, Bentley e o seu futuro cunhado Oldershaw, se referiam a
Chesterton como “demasiado sério”, como “desprovido de sentido de humor”, ou “o
que ensinou os seus colegas como ser formal.” Chesterton também diria que só um
homem sério (sisudo) pode apreciar a vida. Descreve-se a si, o presidente do
clube, como “um moderno revolucionário que reserva para si o título de
iconoclasta.” Nesta altura o teatro de bonecos de seu pai – a recordação de infância que mais tarde referiria como mais marcante – pouco deveria significar. A importância
que posteriormente lhe atribuiria deverá relacionar-se com a reviravolta que entretanto aconteceu. Nas palavras de Chesterton: “As memórias mais marcantes de um homem não
são aquelas que se consolidam ao longo do tempo, mas aquelas que são
subitamente recordadas, por alguma razão, como que puxadas de um abismo.”
Seguir-se-iam três anos na escola de
arte, em que se assistiria a um choque dramático entre o ideal liberal e o
solipsismo racionalista, o “problema crítico” que assombra o nosso mundo
pós-kantiano. Encontrava-se por todo o lado cercado pela dúvida sobre a
natureza e a certeza do conhecimento. Por um lado a escola avant-garde, dominada pela estética impressionista, em que as
coisas são apenas sensação, são apenas o que parecem, existem apenas dentro de
nós, dirigindo a mente para uma filosofia da ilusão; do outro lado o pensamento
lógico interno influenciado sobretudo pelo racionalismo francês e pelo
cepticismo:
“Encontrei-me num caminho de volta ao
meu próprio pensamento. É uma situação algo angustiante; pois pode-se ser
levado a pensar que não existe nada para além do próprio pensamento…Eu levei o
cepticismo do meu tempo tão longe quanto possível. E levei-o mais longe do que
muitos cépticos o levaram. Enquanto que os ateus mais empedernidos afirmavam
que não existe nada além da matéria, eu ouvia-os com a calma de morte do
distanciamento, suspeitando que não existia nada além do pensamento.”
Chesterton teria 20 anos.
O solipsismo apresenta-se como uma
espécie de sonho existencial em que nunca se encontra ninguém ou em que se
encontra o “eu” para onde quer que se olhe. Chesterton descreve esse sentimento
de alheamento no Notebook: “Eu sou o
vento errante que beija todas as coisas e que não pode ser beijado.” O
esteticismo aético ou impressionismo, de Whistler, de Wilde, ou de Nietzsche,
afirmava que as coisas reais não eram mais do que um filme ou um poema e que se
pode fazer de uma mentira ou de um assassínio um mero artefacto estético, para
além da moral do bem e do mal.
O apogeu do seu solipsismo culminaria
no encontro com o diabolista da Escola de Artes, em 1893, tinha Chesterton 19
anos. Essa conversa revelou a Chesterton uma personalidade indiferente aos
argumentos, uma espécie de racionalidade inumana cínica, admitindo a razão e a
virtude, mas apenas para se lhes opor, desarmando os oponentes por se recusar a
discutir argumentos ao não aceitar a primeira premissa, como se se estivesse
numa reversão ética: “O que tu chamas mal, eu chamo bem.”
Mas se o mundo é apenas uma ilusão
interna que se experiencia, então todo o mal tem necessariamente que ter origem
dentro de nós. Este paradoxo ético levará Chesterton a definir limites morais e
a procurar delinear as fronteiras da realidade. Este sim é o limite definido
pela personalidade de Chesterton: a necessidade de ter um enquadramento ético
que respeite o outro – este é o seu limite mínimo – e por isso mesmo, ele não
pode ir mais além. Assim, iniciaria um afastamento progressivo e definitivo
quer do solipsismo quer do esteticismo, a “arte pela arte” ou religião do carpe diem. Aos 20 anos a luta
intelectual entre a ilusão e a realidade, entre o solipsismo e o realismo,
atingira o seu zénite. O liberalismo seria abandonado definitivamente após o Liberation Act de 1911. O fim da
solenidade sisuda não esperaria pelo poema Laughter
de 1926; seria definitivamente abandonada em O Napoleão de Notting Hill de 1904, onde “a profecia se eleva à
altura do fanatismo, apenas para cair numa chuva de risos.”
Esta biografia psicológica como lhe
chamei, não possui outro objectivo que não o de melhor compreender a
hermenêutica de Chesterton e descrever as linhas de uma metamorfose. Chesterton
não desenvolveu a sua teoria do conhecimento a partir da fé cristã; Chesterton
estava a léguas da teologia cristã. A sua teoria do conhecimento resultou deste
confronto entre dois mundos estreitos: o mundo da mente (solipsismo e
impressionismo) e o mundo da matéria. O que Chesterton vai escrever a partir
daqui ilustra o modo como ele saiu deste túnel que é na verdade um túmulo, e foi
por isso mesmo que ele esteve à beira do colapso. Ao sair deste túnel,
Chesterton tropeçou na fé cristã; não foi a fé cristã que o levou a sair do
túnel.
Mas não foi Blaise Pascal que afirmou
“Tu nunca Me procurarias se não Me tivesses já encontrado” (Tu nunca
procurarias se Eu antes não te tivesse encontrado)? Mas claro que este argumento
não tem qualquer validade para um ateu e, portanto, Chesterton poderá afirmar,
como Dostoiévski, que a sua fé não resulta de ingenuidade, crendice ou beatice;
antes que pela dúvida razoável conseguiu o seu hossana.
António Campos
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