Chesterton dizia que todo o escritor
possui a sua filosofia. A filosofia de Chesterton refuta o
cepticismo. O que se
entende por cepticismo? Cepticismo significa colocar em causa tudo quanto se
conhece na tentativa de encontrar uma fonte segura de conhecimento. “Eu duvido,
portanto eu penso, logo eu existo”, foi a sua formulação moderna que se iniciou
no cartesianismo e se estendeu ao empirismo e ao idealismo. Na sua base, como
afirmação da realidade, e por conseguinte da existência, encontra-se uma fé na
razão, na mente daquele que pensa. Portanto, a realidade é medida pela razão
daquele que com ela interage e apresenta um espectro que vai da crença apenas
numa realidade interna até à admissão de uma realidade externa que chega pelos
sentidos, mas que existe apenas na medida em que é compreendida, i.e., pensada
ou formatada na mente. Ou seja, para o cepticismo, que é o pasto da filosofia
moderna, não existe possibilidade de afirmar uma realidade completamente
independente do observador e muito menos uma realidade impossível de ser
apreendida.
A filosofia de Chesterton assenta no
conceito de essência e existência e rejeita o cepticismo. Para Chesterton, a
realidade mais importante não é a essência, mas a existência, ou seja, as coisas
primeiro existem e só depois são aquilo que são. Portanto, uma cadeira e um
homem partilham uma propriedade que lhes é comum, a existência. Essa
propriedade é compreendida antes daquilo que os distingue, i.e., a essência, na medida em
que se não existissem não havia modo de se distinguirem. Portanto, para
Chesterton a existência é mais importante do que a essência, embora como veremos mais tarde, a essência seja anterior à existência. Este conceito tomista é
essencial para se entender a diferença entre a filosofia do senso comum e o
cepticismo.
Enquanto que para o cepticismo é
necessário duvidar de tudo até encontrar uma base última indubitável como
definição da realidade, no pensamento de Chesterton a realidade está ligada à
existência. A existência é real. Não está em causa “ser ou não ser? Eis a
questão” mas sim “Ser, eis a resposta.” Demos um exemplo concreto: Para
Descartes, eu só tenho a certeza de uma realidade primeira indubitável – eu –
na medida em que duvido e, portanto penso. A realidade primeira está no
sujeito, não no objecto. Para Chesterton, as condições necessárias à existência
são realidades primeiras, ou seja, é mais certo eu dizer “eu respiro, logo eu
existo” do que dizer “eu penso logo eu existo”. Apesar de sermos constantemente
inundados por uma corrente contínua de pensamento, é possível existir sem estar
a pensar. Havia alguém que dizia quando eu era criança, que quando parava de
pensar, adormecia. De facto, a existência não se interrompe com o sono.
Mas é impossível existir sem respirar,
sem comer, sem beber, sem urinar, sem defecar. As necessidades primárias não
são apenas condições necessárias à existência; elas são a prova da existência.
A sua ausência tem como consequência a interrupção da existência. Qualquer um
pode fazer a prova científica, lógica e racional desta condição se experimentar
ficar sem respirar por 2 a 5 minutos. É uma prova rápida e factual, não apenas
retórica. Portanto, a existência é a primeira condição da realidade. A
realidade existe. Não é “eu penso logo existo”, nem “eu sinto logo existo”,
como afirma Damásio, mas sim “eu respiro, logo existo”. Eu estou conectado,
com todos os outros seres vivos a este “éter” que partilhamos chamado ar.
Quando se experimenta uma dificuldade respiratória severa, seja de origem
cardíaca seja de origem respiratória, experimenta-se aquilo a que em medicina
se denomina como sensação de morte
iminente, i.e., percebe-se a possibilidade iminente de cessação da
existência.
Esta é a filosofia do senso comum. Chesterton definiu este
filosofia em vários ensaios: The
Unpsychological Age em Sidelights, The
Return to Religion em The Well and the Shallows, Dickens and America em Charles Dickens, Os Professores e o Homem Pré-histórico em O Homem Eterno.
Ouçamos a sua definição: “O senso comum
é um ramo extinto da psicologia; um sentido da realidade que é comum a todos;
uma sensibilidade distribuída generosamente em todas as direcções normais (à
vida); o poder de preservar as nossas impressões reais intactas e sem
distorção; um instinto ou tendência para o mais provável.”
Portanto, Chesterton vê na existência o
ponto de partida de todo o pensamento, e não o inverso. Mas Chesterton afirma
em O Homem Eterno que não existe nenhum modo concebível de transformar o nada
em alguma coisa, logo a existência aponta ao longo de uma longa cadeia reversa
de causa-efeito para um Criador. Ou seja, existe uma realidade mais ampla do
que a percepção particular. É esta certeza que desmente quer o cepticismo quer
o solipsismo. Chesterton afirma em Autobiografia: “Eu tinha uma filosofia
própria que consistia em perceber Deus em cada forma de existência, i.e., onde
existe alguma coisa, existe Deus, mas fiquei surpreendido por entender quão
próximo estava a minha “Alguma coisa” do Ens
(Ser) de São Tomás de Aquino. Esta ideia de que a existência aponta um Criador
e de que as coisas ao serem percebidas nos dão pistas sobre esse Criador, remete
todo o secretismo e todo o ocultismo, como trevas que se abatem sobre essas
pistas claras, à presença do Mal.
Como vimos na questão de O Problema do Conhecimento quando
analisámos Kant, entender a questão do ser é indissociável da questão do Bem,
porque “ser” está ligado a “ser bom”. O intelecto Criador não cria tudo o que é
concebível, o que seria absurdo, mas apenas aquilo que decide valer a pena ser
criado, porque é inteiramente livre; então considera a sua criação boa e ama-a
como qualquer artista comprometido efectivamente com a sua criação. Esta
filosofia não é apenas tomista, ela remonta a Platão e a Aristóteles. Portanto,
é ocioso dizer que as emoções são o que de mais vil existe na natureza humana,
porque submetem o conhecimento à afectividade, como dizia Kant, mas, pelo
contrário, há que dizer abertamente que as emoções são uma forma de
conhecimento. Amar é proximidade e é a ponte para o conhecimento; amar é uma
forma poderosa de conhecer, é um conhecer mais intuitivo do que discursivo. É
conhecer, não com a mente, mas com o coração.
Se a existência é essencialmente boa e
maravilhosa, então existe fundamento para a gratidão. O tal mínimo místico de
gratidão por fazer parte de uma existência maravilhosa. “O agradecimento é a
mais alta forma de pensamento. A gratidão é a felicidade duplicada pelo
espanto.” Chesterton afirma em São Tomás de Aquino: “Olhando para a questão do
Ser como o bebé olha para a relva, apercebemo-nos de algo mais: ela parece
secundária e dependente. A existência existe, mas não é suficientemente
auto-existente e nunca se tornará autónoma apenas por continuar a existir.” No
ensaio de 1901, The Defendant, ele afirma que a maioria dos profetas não nos aponta
para o Céu, mas sim para a Terra. “É muito provável que alguém seja perseguido
por dizer que a relva é verde e que os passarinhos cantam na Primavera. A
religião fornece-nos o telescópio para observarmos o corpo celeste sobre o qual
caminhamos, porque aos olhos e mentalidade da maioria dos homens, este mundo
está tão perdido como o Éden e tão submerso como a Atlântida.”
Esta posição aponta para o refluxo que
Chesterton sofreu a partir do pessimismo de Schopenhauer, após o episódio do
diabolista na Slade School of Arts da Universidade de Londres: “Lembro-me do
tempo em que o pessimismo era dogmático e até ortodoxo. As pessoas que liam
Schopenhauer tinham a sensação de ter descoberto tudo, e nesse preciso momento
entendiam que esse tudo era nada.” Relembrando Schopenhauer: “A vida não tem
finalidade. Sermos quem somos (a individualidade) não tem nenhum interesse.”
Esta posição é claramente identificada por Chesterton na obra de Wilde, O Retrato de Dorian Gray. O mesmo
pensamento se encontra expresso no conto de Conan Doyle, Sherlock Holmes e o Signo dos Quatro (1890), um conto publicado
pela Lippincott simultaneamente com O
Retrato de Dorien Gray. Neste conto, Sherlock explica a Watson que escolheu
a sua profissão para escapar ao tédio da rotina da existência.
“Flui uma estranha recorrência na
história humana – a de que os homens estão constantemente a subvalorizar o seu
ambiente, a sua felicidade e até a si próprios. O grande pecado da humanidade,
o pecado tipificado pela queda de Adão, reside não tanto na tendência para o
orgulho, mas antes para esta estranha e horrível humildade. O peixe esqueceu o
mar, a vaca esqueceu o prado, o empregado esqueceu a cidade, todo o homem
esquece o seu próprio ambiente e, num sentido mais literal e mais amplo,
esquece-se a si próprio. Esta é a verdadeira queda original e é uma queda
espiritual. Provavelmente ainda nos encontramos no Paraíso; foram os nossos
olhos que mudaram.”
Este contraponto ao pessimismo por meio
do amor é apontado por Chesterton num dos seus primeiros contos, Basil Howe: A Story of Young Love, em
que o herói ao apaixonar-se sente a beleza do mundo à sua volta. Todos aqueles
que estão ou estiveram apaixonados conhecem este enlevo quase psicadélico pela existência,
a sensação de pairar dois centímetros acima do chão. Diz a personagem Michael
Moon de Manalive: “O seu princípio
obedece a uma formulação muito simples: ele recusa-se a morrer enquanto
continuar vivo. Ele luta por se recordar constantemente por meio de um choque
eléctrico no cérebro de que ele ainda é um homem vivo, percorrendo o mundo
sobre duas pernas.”
E o Innocent Smith (o ingénuo Silva)
confirma esta filosofia de vida: “Estou sempre a tentar esquecer o que sei – e a
descobrir o que eu não sei.” Exactamente o que se encontra em A Taberna Errante no capítulo Os Sete Estados de Alma de Dorien Wimpole,
onde um homem cínico com as palavras e idólatra de coisas materiais, passa a
apreciar as pessoas à sua volta e acaba por apreciar todas as coisas animadas ou
inanimadas. Para Smith é preferível encontrar um novo modo de ver este mundo do
que procurar um outro mundo. Diz o I. Smith: “Não nego que devem existir padres
para lembrar os homens de que eles um dia morrerão. Apenas afirmo que em certas
épocas estranhas se tornam necessários outro tipo de padres, os poetas, para
lembrar os homens de que eles ainda não estão mortos.”
Em Manalive:
“Para Innocent Smith e para toda a juventude educada daquela época, as estrelas
eram cruéis…encobriam a nudez da natureza; eram um vislumbre das rodas e
roldanas dos bastidores…Os estudantes eram todos pessimistas e o céu estrelado
era atroz, atroz porque verdadeiro. Todo o seu universo era negro com pequenos
pontos brancos.”- este era o Chesterton da Slade, mecanicista e determinista,
sem cor e a duas dimensões.
Mais à frente tudo muda: “Quando Smith
começou a falar, o sol ergueu-se e começou a colocar cor em todas as coisas,
com a rapidez de um artista iluminado.” Afinal a maravilha já está presente no
mundo, o que é necessário é mudar o nosso olhar. Em Chesterton a cor simboliza
a esperança e a diversidade da Criação: “Imediatamente antes da guerra, as
artes e a filosofia caíram num nevoeiro sem conteúdo porque buscavam a inovação
sem finalidade…o artista perdia o apelo à nossa empatia revolucionária, tal
como outras coisas, como o tempo, a humildade, o sentido de humor; mas talvez a
perda mais grave é a de que ele perdeu a noção original do vermelho e do
verde.” The Coloured Lands, 1938.
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A sua ressalva da beleza das coisas
particulares traça a linha divisória entre a beleza da Criação e do horror do
panteísmo informe que abominava. A Criação é algo que necessita não só ser
percebida como ser revelada. No Napoleão
de Notting Hill, este papel cabe ao vento que é uma figuração do Espírito
Santo. A analogia da Criação com o Inferno de Dante em que o Mal “abre porta
atrás de porta no Inferno para quartos cada vez mais pequenos e escuros”, encontra-se
em Manalive: “A limpeza com que o
vento fez do céu encoberto um céu limpo e radioso; divisão atrás de divisão
parecia ir abrir-se finalmente no céu.”
Chesterton reconhece que todo o
escritor possui uma filosofia. Pela sua centralidade no objecto, pela sua
formulação do Ser, da Criação e de uma clara definição de bem e mal, Chesterton
tem sido identificado como uma espécie de filósofo tomista. Mas se Chesterton é
apenas um filósofo tomista, porque não apenas ler São Tomás ou Étienne Gilson?
Talvez existam várias diferenças subtis: Chesterton foi um artista que usava
uma determinada filosofia da linguagem e abordagem do objecto, muitas vezes
mais preocupado com o contexto geral do seu objecto de análise do que com
análises particulares. É neste contexto que devem ser encarados os seus erros
nas citações de Browning ou de Dickens e a sua recusa em os corrigir, mesmo
após ter conversado com os familiares dos autores. Muitas vezes usamos citações
para destacar um aspecto particular, como acontece neste texto, mas a ideia
mais geral que temos sobre uma pessoa ou a sua obra pode muito bem passar sem
citações ou sem citações perfeitamente literais, sem que com isso exista
adulteração da análise. Terá sido essa a razão porque Chesterton escreveu o
livro sobre São Tomás sem consultar as fontes bibliográficas que a sua secretária
teve o cuidado de reunir para ele. Praticamente escreveu a obra de memória,
embora tenha lido a Suma Teológica alguns anos antes.
Chesterton não era um académico, nem
nunca pretendeu sê-lo, era um jornalista. Não um jornalista de um jornalismo
que nos dá notícias de um homem quando ele morre, mas sim de um jornalismo que
nos informa do homem que está vivo. E era um artista. Não o artista com os
olhos fixos no nada, deixando a mente girar em falso, mas um artista sempre com
os olhos fixos no objecto, disciplinando o pensamento para ser conforme à
realidade – como numa investigação policial - e usando a alegoria ou o
paralelismo para nos fazer compreender a natureza de uma realidade paradoxal, com
uma componente concreta e uma componente abstracta, que não está facilmente
disponível. Ao encontrar equivalentes concretos de ideias abstractas, Chesterton
por meio dos seus paradoxos expõe o absurdo de certas conclusões.
António Campos
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