segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Santa Joana



"A pessoa mais extraordinária que a raça humana já produziu", Mark Twain


Santa Joana nasceu em 1412, em Domrémy, na região de Lorena, França. Foi a quinta filha dos
camponeses Jacques D’Arc e Isabeu Romée e foi baptizada com o nome de Jehanne D'Arc. Santa Joana teve uma infância feliz, tendo demonstrado desde cedo uma grande devoção, piedade e caridade, que a levavam a ceder a sua cama quando pela aldeia passavam viajantes. Apesar de ter tido uma infância feliz, Santa Joana viveu também as dificuldades associadas à instabilidade em que a França vivia e que se relacionavam com a Guerra dos 100 anos e com conflitos internos1. Devido a esta situação, por morte de Carlos VI em 1422, tanto Henrique VI de Inglaterra como o Delfim Carlos foram proclamados reis de França. Porém, cerca de dois terços do reino obedeciam ao rei inglês. A região de Reims, em cuja catedral os reis de França eram tradicionalmente coroados, era controlada pelos ingleses, o que impedia a coroação do Delfim que se encontrava sem ser coroado e sem poder. Domrémy encontrava-se na fronteira das duas Franças: a governada pelo rei inglês Henrique VI, e a governada pelo príncipe-herdeiro Carlos VII e, apesar de ter sofrido ataques pelos borgonheses, a população permaneceu leal ao Delfim.

            No Verão de 1425, quando tinha treze anos e meio, Santa Joana começou a ouvir vozes. Inicialmente, Joana referiu que apenas ouvia uma voz sussurrar, como se alguém falasse muito perto dela, tendo posteriormente referido que, a acompanhar essa voz, havia também  uma luz, tendo Santa Joana reconhecido nessa luz, São Miguel, Santa Margarida e Santa Catarina. Apesar de Santa Joana nunca ter falado muito sobre as vozes nem como as reconheceu, disse no seu julgamento que as tinha visto tal como estava a ver as pessoas que a julgavam. 

Muitos foram os esforços efectuados por historiadores racionalistas para explicar a origem das vozes. M. Anatole France explica as vozes como sendo o resultado de uma exaltação histérica, imaginada por Joana por influência do seu confessor, combinada com uma profecia que falava de uma donzela, do bosque de Chenu, que por um milagre salvaria França. No entanto, a base desta análise foi colocada por terra por historiadores não católicos que referiram não existir qualquer prova de aconselhamento por parte do seu confessor, antes pelo contrário. Para além de que foram as vozes que criaram o estado de euforia e de exaltação  nacional e não a exaltação que precedeu as vozes. 

Santa Joana referiu que as vozes lhe diziam que se devia apresentar ao Delfim e comunicar-lhe que Deus a enviava a fim de anunciar o Seu auxílio, para expulsar os ingleses do território francês. Aos 16/17 anos, Jehanne conseguiu ir a Vaucouleurs, cidade vizinha de Domrémy. Recorreu a Robert de Baudricourt, capitão da guarnição de Armagnac, tendo-lhe solicitado uma escolta que a levasse até ao Delfim. Após algumas tentativas sem sucesso, Santa Joana conseguiu que lhe fossem concedidos seis homens para a acompanharem até Chinon. Ao chegar à corte, Joana, sem nunca ter visto o rosto do Delfim, identificou-o e confidenciou-lhe um segredo que nunca revelou mas que o convenceu a ouvi-la.



Para além do segredo, Santa Joana disse-lhe também que a sua missão era libertar, do controlo inglês, a cidade de Orleães e conquistar Reims para que ele, o Delfim, pudesse ser coroado. O Delfim pediu que Santa Joana fosse sujeita a um inquérito eclesiástico que confirmou a sua virgindade e realçou a sua inteligência e caridade. Santa Joana recebeu uma armadura branca e mandou fazer três estandartes com as palavras "Jesu Maria"2. Foi também nesta altura que Santa Joana encontrou a sua espada3. No julgamento, Santa Joana referiu que encontrou a espada na igreja de Santa Catarina de Fierbois, por detrás do altar, coberta de ferrugem, que foi facilmente removida e que tinha cinco cruzes sobre ela. Com excepção destas duas afirmações, não há mais informações sobre a espada, não se sabendo o seu tamanho, o peso, a forma de sua lâmina, ou o desenho.


           
            Joana acompanhada pelo Duque de Alençon, então o responsável da armada francesa, iniciou a caminhada até Orleães. Utilizando barcos, passou as linhas inglesas, conquistou fortes ingleses, tendo sido ferida no peito (em acordo com as suas profecias) durante a conquista do forte de Tourelles. 






Após a conquista de Orleães, Joana iniciou a campanha do vale de La Loire durante a qual contou com a ajuda de um batalhão de escoceses. Após a conquista de Meung sur Loire e de Troyes, Santa Joana chegou a Reims, em cuja catedral eram tradicionalmente coroados os reis franceses. Carlos, que relutantemente tinha seguido Santa Joana até Reims, foi coroado rei de França a 16 de Julho, tendo ao seu lado Santa Joana, que orgulhosamente exibia o seu estandarte.



            Os testemunhos referem que Joana era uma excelente estratega e uma excelente lutadora. Ao longo da sua campanha, Joana moralizava os soldados e a população, tornando-os unidos em torno de um objectivo: criar um país. Várias foram as histórias que surgiram em seu torno e a sua fama rapidamente ultrapassou as fronteiras de França, chegando também aos ingleses. Entre os ingleses a opinião sobre Joana era contraditória. Os que acreditavam na santidade de Santa Joana e da sua missão receavam participar em guerras com a França pelas consequências divinas que poderiam sofrer, mas por outro lado muitos ingleses viam em Santa Joana apenas uma bruxa que aconselhava o rei francês.

            Santa Joana sempre desencorajou o culto que se tinha desenvolvido à sua volta. No entanto, muitos eram aqueles que a elogiavam e que a apoiavam, o que de alguma forma ofuscava a importância e a atenção que Carlos exigia para ele e para a sua corte, criando entre Joana e Carlos um certo mal-estar.
            Depois da conquista de Reims, Santa Joana manteve o desejo de expulsar em definitivo os ingleses de França. No entanto, Carlos estava interessado em estabelecer um tratado de paz com os borgonheses que eram então aliados de Inglaterra. Após várias tentativas de Santa Joana, o Rei concordou em tentar conquistar Paris, adiando o tratado de paz com os borgonheses. A tomada de Paris iniciou-se 25 de Agosto. No entanto, o ataque não teve sucesso e obrigou os franceses a recuar a 8 de Setembro. Neste ataque Santa Joana foi ferida pela 4ª vez.

            Depois desta derrota, o exército francês manteve-se activo, efectuando vários ataques em território dos borgonheses mas com pouco sucesso. À medida que o tempo passava, o Rei ia reduzindo a dimensão do exército, deixando a Santa cada vez mais desprotegida, acabando por estabelecer tréguas com os borgonheses. Na Páscoa de 1430, a 16 de Abril, as vozes que Santa Joana ouvia disseram-lhe que iria ser presa antes do dia 24 de Junho, dia de S. João, que deveria aceitar humildemente a situação e que não deveria ter medo, pois Deus estaria com ela. A 23 Maio de 1430, Santa Joana foi capturada por Jean de Luxembourg em Compiegne e mantida prisioneira durante 6/7 meses. Foi depois vendida a Pierre Cauchon, bispo de Beauvais, tendo os ingleses pago um resgate equivalente a meio milhão de dólares. Foi entregue ao regente inglês, Winchester, e levada para Rouen. Encarcerada, Santa Joana lidou constantemente com a ameaça à sua integridade física e à sua castidade.

            Para os ingleses, a sua prisão e julgamento eram a forma de mostrar que Santa Joana era uma herética, que não era uma enviada de Deus, que a coroação de Carlos VII fora conduzida por uma bruxa, não podendo, portanto, ser considerado o Rei legítimo de França, devendo a coroa ser entregue ao Rei de Inglaterra, Henrique VI.
           
O seu julgamento iniciou-se em Janeiro de 1431, por Pierre Cauchon, e terminou em 30 de Maio.  Além de Pierre Cauchon estiveram também presentes, como acusadores, Jean le Maistre, da Ordem dos Dominicanos, Jean Gravenet, inquisidor, profundo conhecedor das escrituras, Thomas de Courceles, reitor da Universidade de Paris, dois frades mendicantes, Martin Ladvenu e Isembard de La Pierre. Muitos bispos e cardeais ingleses participaram no processo. Na verdade, os acusadores faziam parte dos inimigos de Carlos VII. Ao longo do julgamento procuraram provar que a “Donzela” era herege.

O processo inquisitorial teve um carácter religioso e político. Teve um carácter religioso, porque procurou examinar os fundamentos da fé de Joana, acusada, além de heresia, de bruxaria. De facto, Pierre Cauchon pretendia mover contra ela um processo por crime de heresia, como eram normalmente os processos da Inquisição. No entanto, as mulheres intimadas pela Inquisição eram encarceradas nas prisões das dioceses e arquidioceses e guardadas por outras mulheres. Mas Santa Joana foi encarcerada numa prisão militar, o que demonstra o carácter político do julgamento e quanto o resultado do conflito franco-inglês estaria dependente da sua condenação ou absolvição. Se culpada, Carlos VII poderia ser acusado de recorrer aos serviços de uma bruxa e de ser auxiliado pelos poderes maléficos da magia negra, perdendo o trono.
           
No entanto, o objectivo do processo foi desde o início bastante claro: provar que Santa Joana era culpada. Entre 21 de fevereiro e 17 de março de 1431, os religiosos interrogaram-na diariamente, extraindo detalhes mínimos que pudessem incriminá-la. De 17 a 27 de março de 1431 foram lidos e revistos os itens da acusação. Entre 23 e 29 de maio de 1431 foi proferida a sentença, condenando Santa Joana a ser queimada em praça pública.

            Na Praça do Velho Mercado foi colocado o palanque para a execução da pena, sendo referido que havia um poste encimado pela inscrição: “Joana, que se fez conhecer pela Donzela, mentirosa, perniciosa, abusadora do povo, adivinha, supersticiosa, blasfemadora de Deus, presunçosa, descrente na fé de Jesus Cristo, jactante, idólatra, cruel, dissoluta, invocadora de diabos, reincidente, apóstata, cismática e herética.”
            Os ingleses fizeram desaparecer as suas cinzas, que foram atiradas ao rio Sena, de cima da “Ponte Mathilde” (onde actualmente existe um marco referencial decorado com flores).

            Cerca de 25 anos depois, o processo de nulidade, aberto sob a autoridade do Papa Calixto III, declarou nula a condenação (7 de Julho de 1456; Pnul, II, p 604-610). Este longo processo que recolheu o depoimento de testemunhas e juízes, todos favoráveis a Joana, trouxe à luz a inocência de Santa Joana e a sua perfeita fidelidade à Igreja.

Ao longo dos tempos muitas foram as referências favoráveis e desfavoráveis a Santa Joana. Shakespeare tratou-a como uma bruxa; Voltaire escreveu um poema satírico, ou pseudo-ensaio histórico, que a ridicularizava, intitulado «La Pucelle d´Orléans» ou «A Donzela de Orléans». No entanto, depois da Revolução Francesa, o partido monárquico reavivou a lembrança da boa lorena que jamais desistiu do retorno do rei. Joana foi recuperada pelo historiador romântico Jules Michelet. Com o romantismo, o alemão Schiller fez dela a heroína da sua peça de teatro "Die Jungfrau von Orléans", publicada em 1801.
Em 1870, quando a França foi derrotada pela Alemanha - que ocupou a Alsácia e a Lorena - Santa Joana tornou-se a heroína do sentimento nacional levando a que ainda no séc. XIX surgisse a ideia da canonização. Através de Monsenhor Dupanloup, bispo de Orleães, em 1909, a Igreja Católica francesa propôs ao Papa Pio X a sua beatificação. Em 9 de maio de 1920, cerca de 500 anos após a sua morte, Joana d'Arc foi definitivamente reabilitada, sendo canonizada pelo Papa Bento XV. A canonização traduzia o desejo da Santa Sé de estender pontes para a França republicana, laica e nacionalista. Em 1922 foi declarada padroeira de França.


A vida de Santa Joana está bem documentada, nos cinco volumes que transcrevem os documentos oficiais do julgamento, editados por Etiénne Quicherat, e na biografia escrita por Mark Twain,5 que considerava Santa Joana "a pessoa mais extraordinária que a raça humana já produziu" ("Santa Joana d'Arc", em Collected Tales, Sketches, discursos e ensaios, vol. 2). Actualmente, há cerca de 20.000 estátuas públicas, 800 biografias históricas, 52 filmes, centenas de peças de teatro, romances e uma ópera composta por Verdi, "Giovana d'Arco".


Em termos históricos, podemos sempre questionar se as acções de Santa Joana foram decisivas para a resolução da guerra dos 100 anos. Sobre este assunto Eduoard Perroy, historiador laico que se dedicou à história da Guerra dos Cem Anos, sugere, por um lado, que  a influência de Santa Joana sobre o desfecho da guerra foi reduzida, uma vez que a guerra dos Cem Anos apenas veio a terminar mais de trinta anos após a execução de Santa Joana. Mas por outro lado, Eduoard Perroy também escreve que Santa Joana deixou para trás um conjunto de acções que nenhum julgamento pode apagar. Pela primeira vez o domínio militar dos Lancaster foi travado. Conseguiu dar prestígio ao Delfim que até à coroação era visto como um falhado. Conseguiu unir o exército e a população em torno de um objectivo comum: um País, a França.

            Facto é que nos dias de hoje Santa Joana permanece como um modelo de virtude realçando a importância da obediência, da humildade, da castidade, da coragem e da confiança.


Anália Carmo

Deividi Pansera (selecção tema musical)



1 Os conflitos internos vinham a agravar-se desde 1380, quando da ascensão ao trono de Carlos VI (da casa de Valois), então com 12 anos de idade.  Devido à menoridade de Carlos VI, a regência ficou entregue a um conselho chefiado pelos seus tios Luís I, Duque de Anjou; João, Duque de Berry (1340-1416) e Filipe,  Duque da Borgonha, tendo Carlos VI assumido o poder depois dos 20 anos. Após ter assumido o poder, Carlos VI começou a manifestar distúrbios mentais que se caracterizavam por crises de demência, sendo nessas alturas auxiliado pelo seu irmão mais novo Luís I de Valois, que Carlos fez Duque de Orleães em 1392. Os últimos anos do seu reinado foram caracterizados por disputas internas que culminaram com o estabelecimento de uma aliança entre Filipe III da Borgonha, o Bom,  e os ingleses. Em 1415, o rei Henrique V de Inglaterra invadiu a França e dizimou o seu exército na batalha de Agincourt. Com o rei praticamente demente, os borgonheses e os ingleses impuseram aos demais franceses o Tratado de Troyes (1420), pelo qual a filha do rei francês, Catarina de Valois, casou com Henrique V da Inglaterra (1387-1422), garantindo o trono francês para um descendente do novo casal real, deserdando o Delfim Carlos, seu filho.   Quando em 1422 Carlos VI morreu, tanto Henrique VI de Inglaterra como o jovem Delfim Carlos foram proclamados reis de França. Os apoiantes do Delfim invocavam a instabilidade mental do seu pai como causa para a assinatura do tratado, declarando-o nulo e considerando o delfim o único legítimo soberano da França4 . Porém, cerca de dois terços do reino obedeciam ao rei inglês, entre os quais Reims, em cuja catedral os reis de França eram tradicionalmente coroados.



2 Na realidade há evidências históricas de que Joana D'Arc tinha três tipos diferentes de estandarte: dois que usava nos campos de batalha; um de grandes dimensões e outro de dimensões mais pequenas, e um terceiro, usado para fins religiosos  durante as orações da manhã e da noite. Não há até hoje provas do conteúdo de cada um dos estandartes; no entanto, sabe-se que as imagens eram todas do Novo Testamento. Durante o seu julgamento, Joana referiu que o estandarte maior retratava a última vinda de Jesus e o julgamento final. O autor do "Jornal do cerco a Orléans" refere que o estandarte mais pequeno apresentava a imagem da Anunciação. E, no testamento, o padre Pasquerel testemunhou que a imagem da crucificação estava no estandarte utilizado para as horas de oração. No entanto e apesar destas descrições não se sabe exactamente quais as cores nem dimensões de cada um dos estandartes. Para mais informações sugerimos a consulta do site: http://www.stjoan-center.com/j-cc/


3 A origem remota da espada não é conhecida. Existem, no entanto, várias lendas referindo que a espada tinha pertencido a Charles Martel, avô de Carlos Magno, que derrotou os sarracenos na batalha de Tours, em 732 dC, travando a invasão muçulmana da Europa. Uma das lendas refere que Charles Martel havia fundado a Igreja de St. Catherine de Fierbois, e que ele tinha enterrado secretamente a sua espada para a próxima pessoa a quem Deus escolheria para salvar a França. A outra lenda refere apenas que ele tinha deixado a espada como uma oferenda a Deus após a vitória em Tours.

4 De realçar que, na guerra dos Cem Anos, se voltaram a usar bestas, proibidas pela Igreja em 1139, no Concílio de Latrão, na guerra entre cristãos. No entanto, durante o papado de Avignon (1309-1377), a Igreja, refém de Filipe IV, o Belo, manteve um silêncio sobre essa prática de artilharia, contribuindo, por isso, para brutalidade observada durante a Guerra dos Cem Anos, sobretudo na batalha de Agincourt.

5  “Terminei a minha história sobre Joana d’Arc”, diz o narrador De Conte, no último capítulo do livro de Mark Twain, “essa criança maravilhosa, essa personalidade sublime, esse espírito que à primeira vista não teve nem terá rival: a sua pureza sem qualquer objectivo pessoal, sem egoísmo, sem ambição pessoal. Nela não se encontra disto qualquer traço, por mais que se busque, e isto não se pode dizer de qualquer outra pessoa que pertença à história profana.”






Regine Pernoud,  Joan of Arc, by Herself and Her Witnesses,  a  Scarborough book reissue, 1982
http://www.catholic.com/magazine/articles/peasant-girl-to-battlefield-commander
Joan of Arc: The Warrior Saint by Stephen Richey (Praeger Publishers)
http://www.theawl.com/2012/04/the-riddle-of-mark-twains-passion-for-joan
-of-arc

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