Se o nome de Shakespeare divide os
especialistas, a excelência das suas obras não deixa
de os dividir. Para
diminuir a sua genialidade argumenta-se que as histórias já existiam;
Shakespeare apenas as teria coligido. De facto, a tragédia de Romeu e Julieta é baseada num conto
popular italiano com uma versão inglesa em verso, de Arthur Brooke (The Tragical History of Romeo and Juliet,
1562), King Lear é baseado numa história
popular cuja versão escrita data de 1135 (History
of the Kings of Britain, por Geoffrey Monmouth), Macbeth nasce de Chronicle of
Scotland (Raphael Holinshed, 1587), O
Mercador de Veneza, de um conto italiano (Il Pecorone, Giovanni Fiorentino, 1378) e de The Gesta Romanorum, uma colecção de histórias medievais (Richard
Robinson, 1577).
Midsummer Night’s Dream é original mas manifesta influência de
As Vidas dos Nobres Gregos, de
Plutarco, de O Conto do Rei, de
Geoffrey Chaucer e de Medeia e Hipólito,
de Séneca. De resto, quase todos os escritores e filósofos modernos e
contemporâneos foram influenciados pelos clássicos ou por movimentos literários
e artísticos, que mais não foram do que revivalismos dos antigos gregos. Nenhum
escritor, nenhum filósofo, pode afirmar honestamente que tudo o que produz veio
exclusivamente de si. A filosofia alemã, em particular, é um ressurgimento
grego.
O mérito de Shakespeare é reunir numa única
história várias fontes, como peças de lego, para descrever a condição humana, o
homem como ser político e espiritual, e, last
but not least, encontrar o fio de prata da moral. Temas como o amor,
casamento, relações familiares, papel dos sexos, raça (como em Otelo), classe
social, humor e traição, doença, vingança, mal, crime e morte, mantêm as suas
peças vivas na actualidade e com um carácter perene. O seu mérito é escrever
para as massas, conferir às suas peças um carácter cinematográfico, ampliar as
personagens secundárias, expor as limitações das convenções humanas, explorar
os perigos e contradições das aventuras morais. Sobretudo apontar que as nossas
escolhas têm consequências. Macbeth ilustra como a ambição desmedida é uma
degenerescência do homem e como o arrasta de crime em crime para o poço da
decadência:
“A peça Macbeth é, num sentido inequívoco, a tragédia cristã; para
ser contraposta à tragédia pagã de Édipo. O ponto fundamental em Édipo é que
ele não sabe o que está a fazer; o ponto fundamental em Macbeth é que ele sabe
muito bem o que está a fazer. Não se trata de uma tragédia do destino, mas de
uma tragédia do livre arbítrio. Ele é tentado pelo diabo, mas não é conduzido
pelo destino.” (Chesterton, On a Humiliating Heresy, 1929 e Come to Think of It, 1930).
Em O Mercador de Veneza
contrasta-se a velha moral do “olho por olho, dente por dente”, ressurgida com
a Reforma, com a moral neotestamentária da graça e da misericórdia. Aborda-se a
questão da usura, repetidamente condenada pela Igreja Católica, mas confere-se
a um judeu o direito de se defender e expor os seus argumentos.
Nas obras de Shakespeare, encontram-se
exposições da filosofia egoísta ou do existencialismo, como se fossem
ressurgimentos tardios de Plutarco e Epicuro ou precoces de Nietzsche ou de
Sartre, com uma particularidade subtil: num louco como Ricardo III, "A
consciência não passa de uma palavra que os cobardes usam, concebida a princípio
para amedrontar os fortes. Que os nossos fortes braços sejam a nossa
consciência, as espadas a nossa lei!", ou num Hamlet que se faz passar
por louco, “Nada é mau ou bom (em si mesmo), excepto na cabeça do homem.” Encontra-se
a solidão do antropocentrismo, a misoginia, a misantropia e todas as suas
contradições existencialistas, no diálogo de Hamlet com Rosencrantz, lembrando
Camus:
“Perdi toda a alegria, (…), a terra parece-me um promontório estéril
(…). Que peça de arte é o homem! Tão nobre como ser racional! Como toca o
infinito nas suas faculdades! Como se expressa e quanto admirável é quando em
forma e movimento! Em acção é como um anjo! Na apreensão como um deus! A beleza
do mundo, o mais excelso dos animais! E, no entanto, o que é para mim esta
quintessência do pó? O homem aborrece-me e a mulher também.”
Em Otelo, a questão da raça é mais metafórica do que literal. Nele se encontra o problema do outro, daquele que não é próprio, do estranho, do estrangeiro, com todo o seu cortejo de ignorância, desconfiança e rejeição. Ninguém retrata melhor a questão da fidelidade da esposa e da humilhação perante um marido ciumento ou a questão da inveja e da maledicência entre famílias ou em ambientes competitivos.
Em Otelo, a questão da raça é mais metafórica do que literal. Nele se encontra o problema do outro, daquele que não é próprio, do estranho, do estrangeiro, com todo o seu cortejo de ignorância, desconfiança e rejeição. Ninguém retrata melhor a questão da fidelidade da esposa e da humilhação perante um marido ciumento ou a questão da inveja e da maledicência entre famílias ou em ambientes competitivos.
Não se nega que Shakespeare tenha
recebido influências; antes se afirma que tal é próprio da vida em sociedade.
Mas apontar as influências para diminuir Shakespeare, é ignorar que Shakespeare
descreveu um todo significante: a condição humana, a injustiça e os jogos de
poder, a razão divina e a razão de Estado, o problema da moral e da finalidade
do mundo e do homem, a ideologia e a religião, a verdade e a beleza, questões
prementes na Inglaterra isabelina como o são no Ocidente moderno:
“A verdade pode parecer, mas não ser
A beleza pode ufanar-se, mas só parecer
A verdade e a beleza, sepultadas ser.”,
(Shakespeare, A Fénix e a Tartaruga).
Não foi só a qualidade literária que
assegurou a Shakespeare o segundo lugar no pódio dos mais lidos em todo o mundo,
foi o conteúdo gnosiológico e a ligação teatral ao homem comum. Chesterton num
ensaio admirável aponta precisamente este detalhe: há autores que escrevem bem,
mas só escrevem loucura e um rol de pressupostos estúpidos, contradições e
mensagens doentias, paranóicas ou deprimentes. Ocorrem-me excelentes escritores
neste rol. Saltimbancos da escrita que metem dó; cuja vida e cuja morte foram
horrendas. Infelizmente a “arte pela arte” fez o seu curso e muitas pessoas
louvam escritores pelo deslumbre da sua escrita sem se deterem no conteúdo. Há
mulheres que exaltam escritores ou filósofos que não conferem à mulher a
dignidade de um ser humano. Em Shakespeare a mulher é aquilo que ela é, foi e
será, para um homem são: o mistério, a superlativa proposta estética, a
graciosidade e o pragmatismo, a sensatez e a complementaridade.
O referido
ensaio de Chesterton aponta ainda mais um detalhe: há autores que escrevem
admiravelmente, mas estragam, porque desvirtuam, as histórias originais.
Chesterton dá o exemplo de três grandes autores: Milton, Göthe e Wagner. E,
comparando com Shakespeare, ele afirma que Shakespeare melhorou todas as
histórias que reinventou. Essencialmente porque a filosofia que transparece das
obras de Shakespeare é uma filosofia cristã, enquanto que a filosofia desses
outros autores é um deísmo, hegelismo ou relativismo. Em Shakespeare existe
sempre uma régua e ela é, sem sombra de dúvida, neotestamentária. “Shakespeare
encontra-se possuído por um sentimento que é a primeira e mais importante ideia
do catolicismo: a verdade existe, gostemos dela ou não; somos nós que temos que
nos adaptar à verdade.” (Chesterton, Shakespeare and Milton, ILN 8 de Junho de 1907).
"Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio.(...) Nada vem do nada. (...) O príncipe das trevas é um cavalheiro. (...) Diz o que sentes e não o que deves dizer. (...) Lamentar uma dor passada no presente é criar outra dor e sofrer novamente." São frases de King Lear que ilustram uma filosofia perene.
"Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio.(...) Nada vem do nada. (...) O príncipe das trevas é um cavalheiro. (...) Diz o que sentes e não o que deves dizer. (...) Lamentar uma dor passada no presente é criar outra dor e sofrer novamente." São frases de King Lear que ilustram uma filosofia perene.
Pode interpretar-se Shakespeare de
acordo com o todo integrado e significante presente em todas as suas obras, na
sua religião, na sua moral; ou pode torcer-se Shakespeare de acordo com a nossa
própria heresia. Como diz Joseph Pearce, existem dois tipos de pessoas: as que
alteram os livros e as que deixam que os livros as alterem a elas.
“É suposto que por Shakespeare ter
tomado a lenda de King Lear, ou
Goethe a de Fausto ou Wagner a de Tannhäuser, eles as melhoraram e que as
lendas lhes devem estar gratas. Eu desconfio sempre do individualismo estreito
do artista e antes confio no comunismo natural do artesão. Eu creio que existe
algo mais elevado que o homem de génio – é o génio do homem. Deixo Shakespeare
fora deste argumento, porque eu creio que ele se especializou em fazer grandes
obras a partir de novelas medíocres.”
“Milton, num sentido, estragou o
Paraíso do mesmo modo que a Serpente. Ele fez um poema magnífico e, contudo,
falhou o ponto poético. Ele faz Adão ingerir o fruto proibido, não tentado, mas
para ser solidário com Eva, partilhando a sua queda. E assim, transforma a
maldade humana numa forma de cavalheirismo. Ora, a nossa maldade não surge de
se ser magnânimo. Se somos libertinos e patifes, como decerto somos, isso não
se originou do facto de que o nosso primeiro antepassado fosse um marido e um
cavalheiro. A história bíblica é bastante mais subtil. Lá se encontra a
descrição do mal como aquela insolência irracional que não aceita mesmo as
condições mais básicas; aquela anarquia antiartística que objecta a qualquer
limite, pelo facto de ser um limite.
Nunca é dito que o fruto fosse muito
saboroso ou especialmente belo; ele foi cobiçado por ser proibido. No Éden
existia um máximo de liberdade com um mínimo de veto; mas algum veto é
essencial até para gozar de liberdade. A coisa mais importante de um prado é o
seu limite. Sem o limite o prado torna-se uma lixeira, como aconteceu com o Éden
quando se perdeu o seu limite. A ideia bíblica de que todos os pecados e
sofrimentos se originam numa certa febre de orgulho, que não poderá disfrutar a
menos que o controle, é uma verdade mais profunda e penetrante do que a
sugestão de Milton de que um cavalheiro se viu enredado no seu cavalheirismo
por uma senhora. O Genesis, com sensatez, mostra um Adão que perdeu o seu cavalheirismo
após a Queda de forma clara e surpreendente.”
“O mesmo tipo de degenerescência se
observa no caso de Goethe e da lenda Fausto. Não me refiro, evidentemente, à
poesia em particular, que está acima de qualquer crítica. Refiro-me ao esboço
do Fausto de Goethe – ou melhor, ao esboço contido na primeira parte, uma vez
que a segunda parte não possui qualquer esboço. Na versão medieval, Fausto é
amaldiçoado por cometer um grande pecado: jurar lealdade ao mal eterno de forma
a que pudesse possuir Helena de Tróia, a sensualidade carnal. O velho Fausto é
condenado por cometer um pecado terrível; o novo Fausto salva-se por cometer um
pequeno pecado. O Fausto de Goethe não é encantado e desgraçado por um
excepcional atributo de uma dama singular.
O Fausto de Göthe, mal chega a
adulto logo se torna um patife. Enrola-se logo numa intriga – não digo
confusão, porque (como quase sempre em casos similares) só a mulher é que é
enrolada. Seguramente que existe aqui algo do lado mais sombrio da Alemanha,
algo do sentimentalismo pueril, nesta confusão de sedução e salvação! O homem
arruína a mulher; por consequência a mulher salva o homem; e aqui reside a
moral die ewige Weiblichkeit (o
eterno feminino). Alguém que não ele arcou com o sofrimento; e no final a sua
crueldade é o mesmo que a sua bondade. Pessoalmente, prefiro o antigo conto com
marionetes, em que Fausto é dilacerado por diabos negros e precipitado no
inferno. Parece-me um final menos deprimente.”
“O mesmo princípio, se vejo bem,
impregna a versão de Wagner de Tannhäuser – ou melhor, a sua perversão de
Tannhäuser. Esta grande lenda da Idade Média, contada correctamente, é uma das
coisas mais tremendas na história humana ou nas fábulas. Tannhäuser, um grande
cavaleiro, cometeu o pecado terrível que o tornou proscrito da comunidade dos
pecadores. Ele tornou-se por pacto, amante da própria Vénus, a encarnação da
sensualidade pagã. Saindo das cavernas tenebrosas para o sol, extraviou-se para
Roma e perguntou ao Papa se pelo arrependimento se podia salvar. O Papa
respondeu-lhe que existem limites para tudo. Um homem que se separou tanto da
moral cristã pode tanto arrepender-se como o bordão do Papa desenvolver de novo
folhas verdes. Tannhäuser afastou-se em desespero e mergulhou de novo nas
cavernas da morte eterna; só que o Papa olhou para o seu bordão uma bela manhã
e viu que nele rebentavam de novo folhas. Para mim, este final é uma terrível
colisão de agnosticismo com catolicismo. Creio que Wagner fez Tannhäuser regressar
arrependido uma segunda vez. Se isto não é estragar uma história, não imagino o
que seja tal coisa.”
“Finalmente, falo da peça Salomé de
Oscar Wilde. Mais do que qualificar a sua moral, parece-me ser profundamente
antiartística. Ora, o ponto vital da história bíblica reside na inocência e
indiferença da jovem dançarina. Um déspota planeava dar umas indulgências; uma
rainha dissimulada planeava uma vingança cruel. A dançarina (sempre a imaginei
como uma criança) era filha da rainha vingativa e dançou perante o déspota. Num
relaxamento túrgido ele oferece à menina qualquer presente que ela escolha.
Encantada com uma tal benevolência de contos de fadas, ela corre à mãe a
perguntar que presente escolher; a rainha cruel viu a sua oportunidade e pediu
a morte do seu inimigo. Em vez deste conto poderoso e irónico de usar uma
borboleta como vespa, a Salomé de Wilde é portadora da ideia doentia e vulgar
de se encontrar apaixonada pelo profeta. Não sei se isto é má moralidade, uma
vez que a sua moralidade é o seu efeito na humanidade. Mas eu sei que é má
arte, porque a sua arte é o seu efeito em mim.”
António Campos
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