“Eu nada sei sobre como penso, mas eu sei que eu nunca penso excepto por sugestão dos meus sentidos (eu sei que só penso por meio dos sentidos).”
TEORIA DO CONHECIMENTO
Quais os limites do que é inteligível para os humanos?
Como vimos com Kant, os filósofos
medievais consideravam que os limites para o
conhecimento eram estabelecidos pelos limites do que existe, mesmo que a razão
humana não tivesse a capacidade de tudo compreender ou de tudo conhecer. Assim,
existiria uma diferença entre os limites do que existe e daquilo que se podia
conhecer. Tratava-se de assumir que o conhecimento humano, ainda que sobre o eu
ou o outro, seria sempre um conhecimento parcial.
O racionalismo continental, de
Descartes a Leibnitz, era um racionalismo dogmático. Parte de ideias para
chegar a conceitos ou verdades, mas nunca se interroga num ponto: o que é a
própria razão e qual o seu funcionamento, i.e., qual o modo como elabora as
ideias?
Esta é precisamente a questão que se
colocam outros filósofos, do outro lado do canal, os empiristas ingleses. Eles
próprios também racionalistas – atitude geral na filosofia moderna – uma vez
que pretendem encontrar a verdade numa análise da razão e supõem que a
realidade em si possui uma estrutura racional: “A razão deve ser o nosso juiz último
e o nosso guia em cada coisa”, dizia Locke. Não se aplicam a uma análise das
ideias que a razão já possui; em vez disso procuram saber de que elementos
iniciais parte. Para eles, a razão não é um depósito de ideias, mas uma máquina
de as fabricar. É a estrutura dessa máquina que pretendem descobrir, para se conhecer
a génese da realidade: “O primeiro passo é fazer uma inspecção do nosso
intelecto, examinar os nossos poderes e verificar para que coisas eles estão aptos.”
Locke representa bem a paixão do povo
britânico pelas coisas concretas, práticas e eficazes; por outro lado,
representa a aversão britânica pelas abstracções, princípios ou fórmulas que o
afastem da realidade viva e operante, característica dos seus pares
continentais. O povo britânico herdou o génio político do Império Romano,
mestre na incorporação mais ou menos pacífica de povos, a continuidade secular
de tradição política e a eficácia na administração e na justiça.
Locke partilha com Descartes o conceito
de ideia como pensamento e não como forma ontológica ou essência, mas rompe com o método proposto por Descartes, que
validava a experiência exterior a partir do conteúdo da nossa consciência, uma
vez que não aceita que existam ideias inatas, como as ideias de Deus ou as
ideias matemáticas: “O domínio do homem sobre esse pequeno mundo do seu
intelecto é mais ou menos o mesmo que ele tem sobre o grande mundo das coisas
visíveis, onde o seu poder, mesmo que exercido com arte e mestria, nada mais
consegue além de compor e dividir os materiais que estão à sua disposição, mas
nada pode fazer para fabricar a mínima partícula de matéria nova ou para
destruir um átomo sequer daquela que já existe.”
Para Locke, tudo o que nos chega depende
do que é captado pelos sentidos. Os nossos sentidos são a única ligação directa
entre nós e a realidade exterior. No fundo, a nossa consciência exprime uma
profusão de imagens sensoriais e de recordações delas derivadas. Se Descartes
poderia dizer “eu sou só mente”, Locke poderia afirmar “eu sou só percepção
sensorial”. Tudo o que a mente elabora que não se relacione com a experiência
do mundo exterior é ficção, não é realidade: “Gostaria que alguém tentasse
imaginar um gosto que nunca tenha afectado o seu paladar, ou fazer uma ideia de
algum perfume cujo odor nunca tenha sentido; quando puder fazê-lo, eu estarei
pronto a concluir que um cego pode ter ideias das cores e um surdo noções
distintas dos sons.” Locke vai mais longe e afirma que todo o homem nasce com a
mente em branco onde vão ser
inscritas progressivamente as imagens sensoriais, as suas associações e recordações: “Não vejo portanto nenhuma razão para
crer que a alma pense antes que os sentidos lhe tenham fornecido ideias nas
quais pensar.”
O homem é uma tábua rasa ao nascer.
Locke desenterra um lema que os
escolásticos aristotélicos usavam contra os escolásticos platónicos: Nada está no nosso entendimento que antes
não tenha estado nos sentidos. A diferença reside em que, contrariamente aos
aristotélicos, para Locke as sensações não apresentam qualquer distinção das
ideias por si geradas: são a mesma coisa. Ideia significa sensação, recordação,
ideia, percepção e imagem, sem qualquer distinção. As ideias simples
correspondem às sensações e estão mais próximas da realidade; as ideias
complexas resultam da combinação de ideias simples, são subjectivas porque
criadas na nossa mente e não têm um equivalente concreto, são um paradigma de
si próprias. Para Locke o espírito antes de receber uma sensação não é nada e
no momento em que receba a primeira sensação ele próprio se confunde com a
própria sensação: Eu sou o som da harpa
ou eu sou o odor da gardénia.
Se toda a gente vem em branco, então
ninguém é superior a ninguém. Aquilo que alguém virá a ser depende inteiramente
da forma como for educado. Claro que estas ideias tiveram enorme repercussão em
França, sobretudo nos enciclopedistas, levando a acreditar que as massas podiam
ser libertadas da sujeição social por meio da educação em pé de igualdade.
Qualidades – O poder que as coisas possuem de produzir ideias em
nós
Para Locke, a filosofia fica reduzida à
análise ou observação do espírito e da sua funcionalidade, obedecendo ao
princípio geral racionalista de deduzir o ser a partir da realidade exterior.
Para isso divide as qualidades do objecto em primárias e secundárias:
Qualidades primárias de um objecto são
aquelas que não variam com o observador, se apresentam a vários sentidos e
dizem respeito à ciência: comprimento, largura, altura, posição no espaço,
velocidade, etc.
Qualidades secundárias são aquelas que se
apresentam a um único sentido, resultam da interacção particular entre um dado
sujeito e o objecto e que poderiam apresentar variabilidade individual: cor,
odor, sabor, etc.
Limites do Conhecimento
Definido um objecto a partir das
sensações que desperta no sujeito, não existe qualquer forma de saber a razão
pela qual o objecto se comporta dessa maneira; ou seja, sabemos que sensações o
objecto nos desperta mas não temos possibilidade de saber o que é o objecto. O
objecto em si é “algo que não sei o
que é”, como disse o próprio Locke, apenas sei quais são as suas
características ou propriedades captadas pelos meus sentidos e que estão
presentes na minha consciência. Mas o que se aplica ao objecto também se aplica
ao sujeito. O que sabemos sobre nós depende apenas do conteúdo das nossas
experiências, logo o eu é
desconhecido, inacessível. Portanto, o conhecimento depende de transacções
entre entidades misteriosas.
Locke concluiu que não adianta pensar
no que está para além do nosso entendimento, porque não existe forma de termos
acesso a esse conhecimento. O limite do nosso conhecimento pode ser extrapolado
por meio do exame das nossas próprias capacidades. Se existe ou não algo para além
de nós, isso é completamente irrelevante porque não temos meios de o verificar.
Mas isso não significa que duvidemos de que podemos conhecer ou pôr tudo em
dúvida e ignorar todo o conhecimento, apenas porque algumas coisas podem não
ser compreendidas. Conhecendo os limites do nosso próprio conhecimento, com
muito mais confiança nos podemos entregar à tarefa de conhecer: “É de extrema
importância para o marinheiro conhecer o comprimento das suas cordas ainda que
elas não possam sondar a profundidade dos oceanos.”
Uma vez que Locke não concordava com
Descartes de que o nosso conhecimento científico deriva da lógica dedutiva a
partir de premissas indubitáveis, também não acreditava que a precisão do nosso
conhecimento fosse de natureza exacta como a matemática. Locke deixa um espaço
para o erro: generalizamos pela experiência – um processo conhecido como
indução – mas por vezes as nossas generalizações estão erradas e precisamos
contar com isso. Por isso, mesmo o conhecimento mais cuidadosamente construído,
edificado sobre a observação, não é absolutamente certo; é apenas provável.
Pode mesmo ser errado. Portanto, se queremos manter o princípio de que as
nossas crenças sobre as coisas são baseadas em provas, devemos estar
disponíveis para modificar as nossas crenças à luz de evidências variáveis.
Este é o mote para toda a teoria política de Locke, o fundador do liberalismo.
Compreende-se a influência que este
modo de pensar exerceu em Hume, Kant, Schopenhauer, Russell, Wittgenstein e
Popper.
As consequências do empirismo são
dramáticas:
1 - O nominalismo:
Apenas existe o concreto e o sensível,
a natureza é dominada pela experiência. As ideias são alterações que as
sensações sofrem na nossa mente e não correspondem à realidade. O conhecimento
exaustivo da natureza adquire-se apenas por experiência porque não existem
ideias inatas nem os nossos conceitos representam nada de real e estável para
poder deduzir a partir deles uma verdadeira ciência. Portanto, Locke continua a
tradição nominalista inglesa de Guilherme de Ockam: As ideias complexas são
construções do nosso intelecto e a essência nominal (por exemplo a bicicleta)
constrói-se na nossa cabeça a partir da experiência que possuímos com os
objectos particulares com uma determinada característica (por exemplo aquilo
que as diferentes bicicletas possuem em comum); quanto à essência real eu nada
sei, porque o geral e o universal não pertencem à natureza real das coisas e
são apenas invenções do intelecto. Recorde-se que para a metafísica clássica a
abstracção era o processo natural em que se capta a essência das coisas.
Opõe-se, por conseguinte, ao realismo. São nominalistas os neo-espinosistas, os
neo-kantianos, os neo-positivistas, os pragmatistas e os idealistas.
2 – A Psicologia Experimental:
É possível estudar a vida do espírito
pela mesma via experimental e matemática com que as ciências físicas estudam a
natureza. Se a mente apenas contém sensações que se associam, compõem ou
dividem, a psicologia pode estudar a mente humana do mesmo modo como as
ciências naturais estudam os átomos e as moléculas. A psicologia seria uma
projecção da física e da matemática: é a psicologia experimental ou
behaviorismo.
3 – O Liberalismo:
Se as ideias resultam da experiência de
cada espírito concreto, elas não têm uma realidade nem uma validade objectivas.
Portanto, não se podem impor a ninguém. Não devem erigir-se como normas morais
nem como normas ou princípios da governação do Estado. Ao Estado cabe
salvaguardar as liberdades individuais. As normas para os que governam devem
emanar da vontade da maioria, empiricamente consultada por meio do sufrágio.
4 – O idealismo de Berkeley:
Se a cor, o cheiro, o sabor, não
existem fora de mim, são reacções do meu espírito, então nada me garante que
exista uma realidade exterior para as qualidades primárias. O nosso espírito
apenas lida com sensações ou ideias que parecem ser a representação do mundo
exterior. No entanto, esse mundo exterior nunca ninguém o viu porque nunca
ninguém saiu da sua mente. “Eu nunca transporei os limites do meu próprio
conhecimento para o comprovar.” O ser das coisas esgota-se em serem percebidas:
“Quando deixo de as perceber elas deixam de existir, porque o seu ser não é
mais do que a percepção de que delas tenho.” Este tipo de idealismo que parte
do espírito individual designa-se por idealismo
psicológico, por contraponto ao idealismo
lógico, o idealismo alemão, que também vê a realidade apenas como criação
do espírito, mas de um espírito humano ou razão em geral, que é comum a todos
os homens.
5 – O cepticismo ou niilismo de Hume:
Locke afirmou que apenas os dados
sensíveis participam da realidade; Berkeley negou a objectividade do
conhecimento. Hume vai mais longe: ele afirma que nunca ninguém viu aquilo a
que chamamos substância ou o que
conhecemos como causalidade, nem
disso teve qualquer género de percepção sensível. Como posso concluir pela
existência de bicicleta pela combinação das suas qualidades sensíveis, quando
ela varia de tamanho, de forma, de cor e de odor? Como posso agregar coisas que
variam tanto sobre uma designação comum de bicicleta? Com a causalidade é a
mesma coisa: como posso concluir que o calor dilata os corpos se eu nunca vi a
relação, apenas a deduzi mentalmente? A única coisa que eu vejo é que quando há
calor, os corpos metálicos dilatam; mas a relação eu não a vejo! Para Hume, nem
a ideia de substância nem a de causalidade têm um fundamento real. Para Hume,
Berkeley excedeu-se ao considerar o eu uma substância relativamente aos
fenómenos psíquicos e que os fenómenos psíquicos reconhecem em mim a sua causa.
Com rigor, apenas se podem reconhecer os fenómenos ou aparições, nunca a sua
relação ou causalidade. Com Berkeley dissolveu-se a realidade; com Hume
dissolveu-se o eu. O empirismo ou racionalismo empírico inglês, seguindo as
pisadas do racionalismo lógico continental, aplicou uma dura crítica às
construções metafísicas do racionalismo continental. O seu teor destrutivo
lançou as bases para um sistema que combine ambos e tente ultrapassar as
objecções internas. Como já vimos, foi essa a obra de Kant.
6 – Ninguém contesta que a aprendizagem
decorre da experiência. De outro modo a vida seria um absurdo e a finalidade dela
esgotava-se. Mas Locke não teve filhos. Por vezes são estas coisas comuns que
mantêm o equilíbrio nos homens. O segredo da racionalidade, tal como o segredo
da natureza, reside sempre no equilíbrio. Não devem existir muitos pais que
sejam educadores dos seus filhos (até porque em Inglaterra muitas vezes os pais
apenas pagam a educação dos seus filhos) que não se apercebam de grande
variabilidade na sua natureza, carácter e temperamento, apesar de o meio
familiar ser o mesmo ou muito semelhante.
Sabemos que Bacon (que escrevia muito
sobre ciência mas não era cientista) e Newton exerceram grande influência em
Locke. Socorramo-nos então da ciência do nosso tempo. Para além da experiência
existe o património genético e a epigenética. Em grande parte definem em que
medida a experiência forma o indivíduo. É elementar afirmar que não nascem
Mozarts todos os dias.
Existe ainda um outro problema. Em que
medida as ideias de um empirista resultam unicamente da experiência e não são,
elas próprias, elaborações da própria mente? O conhecimento de que o
conhecimento só pode ser adquirido por experiência é um conhecimento. O uso do
princípio da causalidade e da não contradição ou exclusão do absurdo que Locke
usou para provar a existência de Deus (de que nos ocuparemos mais tarde)
resultam inteiramente do próprio funcionamento da razão e não da experiência. Eu
tenho que ter um eu consciente dentro de mim que escolhe experiências e que as
escreve na tal tábula que não será completamente rasa. Numa palavra, será esse
eu consciente que me permite maior ou menor inteligibilidade do objecto em
estudo. O grau de inteligibilidade na apreensão de objectos de estudo, poderá,
ela sim, incrementar por experiência; i.e., não só o eu inteligível não é
passivo e intervém na experiência, como a experiência modifica esse eu
inteligível. Essa certeza de mim mesmo que
precede o pensamento, afirmada por Santo Agostinho, foi também defendida por
Locke, como veremos.
António Campos
Nota do autor: Evidentemente que o
processo cognitivo é complexo. O que se encontra escrito não resulta apenas da
mente de uma única pessoa. Tal como nos textos sobre Kant as discussões com a
Anália e o José Carlos Domingues foram exaltadas e frenéticas, também no caso
de Locke as discussões com o Deividi Pansera foram profundas e fleumáticas.
Muito bom o seu texto. O conhecimento é um dos grandes alavancadores da espécie humano, mesmo que podemos duvidar que seja possível ou não conhecer as coisas. Se é fácil ou não obter conhecimento. Se é bom ou não, o que podemos afirmar é que devemos buscar este conhecimento. Imagine a sociedade dos seres humanos sem conhecimento.
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