Chesterton concebe a realidade como uma
Gestalt. Convém esclarecer que esta gestalt
não é exactamente equivalente à teoria da percepção que é oposta ao associativismo, empirismo ou behaviorismo. Muito menos à chamada gestaltherapie. Na época de Chesterton, nomeadamente através de G. B. Shaw em Pigmalion/My Fair Lady, o behaviorismo e o empirismo imperavam – Higgins aposta fazer de Eliza Doolittle, a vendedora de flores, uma senhora da alta sociedade. É verdade que a gestalt surgiu como resposta ao empirismo a partir de 1913, enquanto que a gestalt de Chesterton estava completa em 1905-1908.
não é exactamente equivalente à teoria da percepção que é oposta ao associativismo, empirismo ou behaviorismo. Muito menos à chamada gestaltherapie. Na época de Chesterton, nomeadamente através de G. B. Shaw em Pigmalion/My Fair Lady, o behaviorismo e o empirismo imperavam – Higgins aposta fazer de Eliza Doolittle, a vendedora de flores, uma senhora da alta sociedade. É verdade que a gestalt surgiu como resposta ao empirismo a partir de 1913, enquanto que a gestalt de Chesterton estava completa em 1905-1908.
Esta gestalt é entendida como a percepção da filosofia, da ciência e da
teologia como um todo significante. Afirmações de Hereges (1905) de que uma
corrente não vale mais do que o seu elo mais fraco ou toda a viagem de
Ortodoxia sobre o equilíbrio de virtudes contrárias ou de como uma heresia é
precisamente uma única virtude deixada à solta sem uma contraposição que a equilibre,
demonstram como Chesterton concebe a realidade como um todo significante e não
como uma mera adição das suas partes constitutivas.
Chesterton ao afirmar que “a religião é
como o talento intelectual, porque vê a consistência nas coisas”, aponta para o
equilíbrio, a unidade na diversidade, um todo sempre implícito nas partes, a
reconciliação de contrários, uma dialética positiva onde as partes não se
dissolvem. Ao apelar ao valor da tradição, mas ao recusar os idealismos
liberais ou socialistas, ele salienta o valor das raízes culturais e nacionais –
o radicalismo; com a recusa de soluções iluministas ou totalitárias,
messiânicas – o extremismo. Ele é pois, um radical intrinsecamente democrata,
não seduzido pelo capitalismo ou socialismo, aberto a um progresso ao serviço
do homem, um progresso ao serviço de uma moral universal transcendente, que a
todos inclua.
Ao dizer que “as pessoas quando deixam de acreditar
em Deus, não significa que não acreditem em nada mas que acreditam em qualquer
coisa”, ele aponta precisamente o perigo de perder a visão do todo quando se
está perante uma das partes.
Émile Cammaerts no seu livro The Laughing Prophet :
The Seven Virtues and G. K. Chesterton (1937) afirmou: “A primeira consequência
de não acreditar em Deus é acreditar em toda e qualquer coisa.” Ele resumia um
extracto mais longo de Chesterton em Father Brown, The Oracle of the Dog (1923),
a propósito de uma afirmação relativa à possibilidade de que um cão, por
um instinto obscuro, ladre a um criminoso, intuindo que este seja um criminoso:
“Este é um estado que cada vez mais constato no
mundo moderno…algo arbitrário sem fundamento factual. As pessoas encontram-se
completamente receptivas a aceitar qualquer tipo de argumento sem fundamento
objectivo. É um desrespeito a todo o nosso velho racionalismo e cepticismo. Vem
como uma maré e o seu nome é superstição. Apareceu de repente com cara solene
ou uma espécie de careta e fala continuamente como se estivesse só. O primeiro
efeito de não acreditar em Deus é que se perde todo o bom senso, e se deixa de
avaliar as coisas como elas são. Qualquer assunto de que alguém fale, e defenda
a sua consistência, propaga-se como um panorama de um pesadelo. Um cão torna-se
um presságio, o gato um mistério, um porco uma mascote, um besouro um
escaravelho, evocando toda a parafernália do politeísmo, desde o Egipto antigo
até à Índia; o cão Anubis, o grande Pasht de olhos verdes reptilianos e os
touros sagrados de Basan; fazendo-nos regressar aos deuses bestiais dos
primórdios, entregando-nos a elefantes, serpentes e crocodilos; e tudo por se
querer a todo o custo evitar quatro palavras: «Ele se fez homem».”
Para Eric Cammaerts, Chesterton era uma
espécie de coração de leão:
“Ele era maravilhoso, no sentido em que
fez as virtudes cristãs brilharem com a centelha da sua inteligência subtil, e
cobriu os seus vícios de insultos. (…) O seu amor à fé é uma apreciação lúcida
de algo variegado. O seu compromisso é forte e profundo. A sua apreciação da fé
é tida como «liberal» enquanto que o seu compromisso com ela é tido como «conservador».”
Para Chesterton apreciação e
compromisso dançam juntos. A fé é multifacetada, ter fé é o oposto de ser um
catavento, amorfo, esquivo, inconstante.
“A fé aparece de todos os modos
possíveis, no que respeita ao modo e à atitude perante a vida, e não existe
estilo artístico que não possa usar. A jóia tem uma centena de faces, e
reflecte cada cor e esquina do céu; mas isso não significa que ela vacile ou
cambaleie; e aqueles que a tentam partir descobrem que se trata da pedra mais
dura do mundo.”
E quanto mais próximo da ortodoxia mais
inspirador é o seu poder:
“Tantas vezes antes deste tempo os
homens encheram o seu copo com uma doutrina ténue. E tantas outras vezes se
sucedeu a essa diluição, vindo do escuro como uma catarata carmesim, a força do
vinho tinto original.”
A religião católica dá alegria:
“O homem pode ser definido como um
animal que constrói dogmas. À medida que ele empilha doutrina sobre doutrina e
conclusão sobre conclusão na formação de um sistema tremendo de filosofia ou de
religião, ele torna-se, no único sentido possível da expressão, mais e mais
humano. Quando ele destrói doutrina após doutrina num elaborado cepticismo,
quando ele se nega a aderir a um sistema, quando ele diz que tem definições
incomparáveis, quando, na sua própria imaginação, se senta como Deus, não
partilhando nenhuma forma de credo mas contemplando-os a todos, então por esse
processo ele afunda-se lentamente decaindo para a indefinição dos animais
vagabundos e para a inconsciência da relva. As árvores não têm dogmas. Os nabos
são realmente tolerantes.”
Qualquer civilização possui uma
estrutura moral que se reflecte nos seus cidadãos. É a ideia de Dawson, cada
cultura nasce do respectivo culto. Parte da crise civilizacional deriva da
nossa incapacidade de aceitar o carácter definitivo da espécie humana entre
todas as outras espécies:
“Iniciando-se com uma concepção falsa
da natureza do homem, a mente continua a avaliar tudo a uma falsa luz. O seu
objectivo é tornar-se algo que não é e que nunca pode ser…sem a natureza humana
definida, nada mais se pode definir.”
Não basta sermos meros humanistas:
“A marca da insanidade é o uso da razão
sem qualquer raiz, a razão no vazio. O homem que começa a pensar sem levar em
conta os primeiros princípios enlouquece, o homem começa a pensar pela ponta
errada.
Para os católicos é um dogma
fundamental da fé que todos os seres humanos, sem excepção, foram especialmente
feitos, especialmente moldados e afiados como setas brilhantes, com a
finalidade de serem portadores da marca da beatitude.”
A renovação e a reforma são meios de
limpar o sujo da bela imagem que já nos foi dada pela Revelação. É a revolução
eterna de Chesterton.
“Precisamos de um conjunto de coisas
realmente humanas. A vontade que é a moral, a memória que é a tradição, a
cultura que é a economia mental dos nossos pais. Aqui o humanismo não pode
substituir o super-humanismo. O mundo moderno, que é um movimento, vive do
capital católico. Continua a retirar as verdades do tesouro da cristandade,
incluindo aquelas verdades pagãs solidificadas na cristandade.”
A espiritualidade não se basta com uma
ou outra virtude mas com todo o espectro de virtudes num todo harmónico. O
conjunto das virtudes não é um catálogo mas um todo harmónico, vivente e
interactivo, uma gestalt, uma forma
significante, como afirma Hans Urs von Balthasar.1
“O humanismo pode pegar nas virtudes
individualmente, mas pode juntar as peças? Onde está o cimento que fez da
religião uma comunidade popular, que
impede que as peças se despedacem num lixo de tarefas individualistas e de
graus? O que impede um humanista de ter uma castidade sem humildade e outro,
humildade sem castidade e outro, verdade e beleza separadas? O problema de uma
ética e cultura sólidas consiste no arranjo das peças de forma a que se
interrelacionem, como as pedras que compõem um arco. E eu só conheço um esquema
que tenha provado a sua solidez, que tenha transposto terras e épocas com os
seus arcos gigantes levando a todo o lado o rio elevado do baptismo acima dos
aquedutos de Roma.”
É a comunidade poliédrica, nas palavras
do Papa, em oposição ao círculo/esfera da globalização capitalista, onde tudo
tende para a uniformidade do hamburger e da coca-cola. Esta comunidade poliédrica
é uma casa, onde cada nação é uma janela. Cada nação tem o seu alter ego, o seu
anjo, na presença de Deus.
E a modernidade, baseada no protesto,
na heresia, vive da herança católica:
“O mundo moderno não é mau; de certo
modo até é bom demais. Encontra-se cheio de virtudes selvagens e desperdiçadas.
Quando um sistema religioso é estilhaçado, como a cristandade foi estilhaçada
pela Reforma, não são apenas os vícios que ficam à solta. Os vícios certamente
andam à solta, vagueiam e fazem dano. Mas as virtudes também ficam à solta: e
as virtudes ainda causam mais dano. O mundo moderno encontra-se cheio daquelas
antigas virtudes cristãs que enlouqueceram. E elas enlouqueceram porque se
separaram umas das outras e vagueiam à solta. Então alguns cientistas lutam
pela verdade, mas a sua verdade não aceita a misericórdia. Alguns humanistas
querem a misericórdia, mas a sua misericórdia, lamento dizê-lo, não é
verdadeira. (…) Nenhuma virtude pode engolir a outra, o amor, o orgulho, a paz,
a aventura. Tem que ser uma pintura completa composta destes elementos na sua
devida proporção e melhor relação.”
Este sistema católico complexo é
auto-crítico, onde umas virtudes equilibram as outras: a omnipotência de Deus
com o livre-arbítrio humano, o direito da mulher em lutar pela sua dignidade, mas
mantendo a sua feminidade e maternidade.
Em Chaucer, Chesterton fala do bem
humano como um todo estruturado, um equilíbrio harmonioso que se compara a uma
dança de virtudes, que tem como centro a revelação única do verdadeiro bem
humano, Jesus Cristo. Ele é a corrente que escolheu o elo mais fraco, Pedro, e por ele responde.
“A moralidade medieval encontrava-se
impregnada dessa ideia de que uma coisa equilibra a outra, de que cada uma
ficava de um ou do outro lado de algo que se situava no meio, e algo efectivamente
se situava a meio.
Havia movimento decerto, mas era
movimento à volta desta coisa central; alterando atitudes mas preservando o
equilíbrio. As virtudes eram como crianças a dançar à volta do Mulberry Bush,2 só que o Mulberry Bush era aquela sarça ardente
que era um símbolo da encarnação, esse arbusto extravagante no qual a Virgem e
o menino aparecem num quadro com René de Provence e a sua amada esposa
ajoelhando de cada lado. Desde a mudança na História, pensemos ou chamemos-lhe
o que quisermos, a dança transformou-se numa corrida. Os dançarinos perderam o
equilíbrio e só o recuperam correndo atrás de um qualquer objecto, ou alegado
objecto. Não é um objecto que possuam ou que esteja no seu círculo, mas um
objecto que não possuem. É um objecto voador, um objectivo que desaparece.
Um é um movimento harmonioso e
concêntrico, o outro é desordenado, porque carece de objectivo. Pelos
parâmetros modernos, os peregrinos de Canterbury não parecem ter grande pressa
de chegar a Canterbury.”
O tríptico Sarça Ardente está na catedral de St Sauveur, Aix-en-Provence. Deus
como objectivo da natureza humana e da virtude. Uma demonstração cabal da
inteligibilidade do Criador à mente humana. O bem não pode ser uma “força
impessoal”, mas sim um Deus pessoal que prepara “uma cidade com ruas e
proporções justas.”
As virtudes dançam como os arcos das
catedrais góticas. A modéstia (simplicidade, inocência, humildade) deve
situar-se no órgão da ambição e a vaidade no órgão da convicção. A alegria é
constitutiva: “nós precisamos de ver um mundo que combine a ideia de maravilha
com a ideia de boas-vindas.”
A virtude da caridade é a que agrega
todas as virtudes:
“Chaucer tinha uma coisa indispensável,
ele tinha um quadro mental que resultava da correcta razão com uma filosofia universal;
o temperamento que é a flor e o fruto de todo o cultivo e o trabalho de todos os
moralistas e teólogos. Ele tinha a caridade – este é o coração e não a mera
mente da nossa antiga cristandade.”
A caridade faz com os dons de Deus não
sejam dados apenas aos seus santos, mas a todos os homens. É o sol que se
levanta sobre bons e maus, nas palavras de Cristo; é a chuva que também cai no
deserto, como no Livro de Job; são os que se salvam sem nunca terem feito as
coisas em nome de Cristo, como no Sermão da Montanha (Mt 5, 1-10), em Mt 11, 19-20 e no Juízo Final (Mt 25, 31-41).3
“Esse grito foi o grito da normalidade.
Uma grande voz foi dada por Deus, um grande volume de canções, não para os seus
santos que mais as mereciam…mas subitamente, numa estação, ao mais humano de
todos os seres humanos.”4
É por essa mudança de paradigma sobre a
questão do “povo escolhido”, da virtude, da vontade de Deus e da salvação, que
muitos cristãos na actualidade correm o risco da heresia:
“Os ateus…querem definição e não
aceitação. A “igreja” moderna é como um médico acolhedor que diz: diz-nos em
que queres acreditar e nós tratamos disso.”
António Campos
2 https://catholickungfu.wordpress.com/2010/08/24/hans-urs-von-balthasar-and-form-a-fascinating-dilemma/
3 Here We Go Around The Mulberry Bush
(amoreira) é uma canção infantil inglesa que descreve as tarefas diárias.
4 George
Bernard Shaw descreveu o Sermão da Montanha com o "uma explosão
impraticável de anarquismo e de sentimentalismo". O filósofo alemão
Friedrich Nietzsche tratou-o ainda menos benignamente, quando escreveu que
"a moralidade cristã é a mais maligna form a de toda a falsidade" (Ecce
Homo). John Herman Randall estava disposto a reconhecer que Jesus era
"verdadeiramente um grande génio moral" mas ao mesmo tempo estranhava
com o um carpinteiro galileu pudesse ter enunciado a última palavra em ética
humana (A Religião no Mundo Moderno).
5
http://www.estudosdabiblia.net/som.pdf
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