Olho para o princípio da
esperança e confesso o meu fascínio por Bloch, não tanto pelas
suas referências elogiosas a Chesterton, que me despertaram a atenção, muito menos por simpatia com a sua filosofia, mas sobretudo pela sua imagética. Para Bloch, a verdade intrínseca das coisas, aquela que irrompe “de dentro”, só pode ser alcançada após uma “completa transformação do universo, um grande apocalipse, a descida de um messias, um novo céu e uma nova terra.” É interessante observar um ateu à procura de uma esperança radical no marxismo, plena de whishful thinking, utopia.
suas referências elogiosas a Chesterton, que me despertaram a atenção, muito menos por simpatia com a sua filosofia, mas sobretudo pela sua imagética. Para Bloch, a verdade intrínseca das coisas, aquela que irrompe “de dentro”, só pode ser alcançada após uma “completa transformação do universo, um grande apocalipse, a descida de um messias, um novo céu e uma nova terra.” É interessante observar um ateu à procura de uma esperança radical no marxismo, plena de whishful thinking, utopia.
A amplitude de conhecimentos e a subtileza
exegética de Bloch, sem igual no mundo marxista, fê-lo reescrever toda a
Bíblia, para “inventar” uma espécie de cristianismo ateísta, um gnosticismo. O
Cristo rebelde e revolucionário, que não fazia compromissos, a quem o Pai
enviou para a morte, aquele que não tinha onde reclinar a cabeça. A
ambivalência de Bloch em relação ao cristianismo, uma certa generosidade ateia
em relação à figura de Cristo, é contudo norteada pelo “espírito do sistema”.
Esse “espírito do sistema” recorrente nos autores marxistas que manifestam uma
genuína paixão por Cristo, é o sufoco na incompreensão da particularidade, da
individualidade, da relação. Este não encontrar da divindade de Cristo amputa o
valor da esperança. O encontro é substituído: não pelo vislumbre, mas pelo
conceito.
“A morte é o mais duro golpe contra a
utopia.(…) A morte é o não-eu, estranho absoluto, o irracional da razão de cada
civilização, o estranho e incompreendido. (…) Para quê o esforço da nossa
existência se morremos completamente, vamos para a cova e, em última instância,
não nos resta nada? (…) O túmulo, a escuridão, a putrefacção, os vermes têm e
tiveram, sempre que não são reprimidos, uma espécie de poder retroactivo desvalorizante.”
Bloch fala como se estivesse vivo dentro do túmulo!
“É terrível ter de viver, sabendo que
quanto mais amadurecemos, mais a nossa existência se encurta. O relógio bate a
hora e estamos uma hora mais próximos do túmulo.”
Bloch encontra-se fixado neste mundo da
vida diária, o Lebenswelt, o mundo
onde, nas palavras de Alfred Schutz, os homens crescidos e despertos se
relacionam entre si, agem no mundo e partilham experiências. O orgulho mantém o sonambulismo, a apetência do intelecto por sistemas impede a percepção da caridade.
Premissas
Bloch era filho de judeus não
religiosos e, aos quinze anos, quando fazia a sua confirmação diante do altar,
acrescentou três vezes “sou ateu”. Tinha chegado à conclusão que tudo era
matéria por duas razões: a responsabilidade de um eventual Deus pela existência
do mal no mundo (o problema crítico da teodiceia, nunca compreendido pelos
ateus) e a ideia de que não é o Genesis o mais importante da religião mas sim o
Apocalipse (a incompreensão da incompletude da Criação como expressão radical
da liberdade). O Primado do fim sobre o princípio. A sua mente hegeliana
raciocina em dicotomias e alternâncias. O Êxodo apontaria para o processo (tudo
é processo, transformação) e o Apocalipse apontaria para o fim.
Então, tudo é “ainda-não”. Bloch
contesta a noção hegeliana de que tudo é regresso ou reconhecimento e por outro
lado critica Marx e Feürbach por não terem redefinido o messianismo escatológico:
um reino messiânico de Deus sem Deus. O ateísmo não seria o inimigo da utopia
religiosa, seria o seu pressuposto, dela desencadeante: “sem ateísmo não existe
qualquer lugar para o messianismo”. O Deus absconditus
era afinal o Homo absconditus. Bloch
recusa qualquer acesso à religião por Revelação, por transcendência. O Cristo
que não tinha onde reclinar a cabeça, estava em permanente conflito com o Pai,
aquele que o abandonara. Cristo era esse rebelde por amor humanista, esse
Prometeu, que abdicou de qualquer compromisso político para se encaminhar para
um final previsível. Cristo era não só aquele que o Pai abandonou; era aquele
que o Pai enviou para a morte.
Respostas
Se tudo é “ainda não”, processo, como
pode o homem comportar-se durante o processo para chegar afinal a bom porto?
Por um lado, através da atitude de Kant de recusa da religião: o “ousa saber” é
a saída do homem da menoridade culposa. Por outro lado, na esperança utópica
pela perfeição. Usando as palavras de Agostinho: “no último dia seremos nós
próprios”, i.e., o domingo ainda não foi criado.
Esta noção de um passado apenas grávido
do futuro por transformação e nunca por anamnese ou identificação, leva não só
à crítica do hegeliano Bloch a Hegel, mas também a Platão e a Freud – o Ultimum está em relação com o Novum e não com o Primum. Este ainda-não consciente tem duas implicações: somos, mas
não sabemos o que somos e somos numa “aurora para a frente”. Eu sou, mas eu não
me possuo. Apenas me encontro no novo, no utópico.
Ora esta noção tem implicações profundas
no conceito de esperança. Se a realidade última está no novo, ela nunca pode ser um regresso. O homem como ainda-não
identifica-se com a realidade enquanto possibilidade. A matéria precisa da sua
forma mais audaciosa, do homem-Prometeu, para orientar esse processo em curso –
“o filho próprio da matéria, no qual ela abre os olhos e se reflecte”.
Processo em curso, eis a chave de todo o pensamento marxista.
Processo em curso, eis a chave de todo o pensamento marxista.
É esta utopia que a morte desafia tão
radicalmente. Afinal para quê, que sentido tem tudo isto? Todo o animal tem
medo de morrer, mas só o homem tem a angústia da morte, antecipação do
indefinível, do nada da dissolução. A consciência do eu proporciona a
antecipação consciente da aniquilação inevitável. “Para quê o esforço da nossa
existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em última análise,
não nos resta nada?”
Como escapar dessa angústia da morte,
desse aniquilador de todas as utopias? A humanidade inventa estratégias: a
evicção ou ocultação, a guerra, a fé no êxito, a fé no sucesso dos filhos (o
nepotismo), “o mito de paraísos ultra-terrenos”. Falta a teodiceia marxista que
Blöch procurou toda a sua vida. Primeiro, durante a juventude, pela metampsicose
e reencarnação. No entanto, nem a reencarnação salva a individualidade pessoal.
Qual daqueles “eus” sou “eu mesmo”?
A resposta marxista ocorre durante o
socialismo, o processo em curso. O herói marxista sacrifica a sua vida pela
revolução, “caminhando resolutamente para o nada, com espírito livre, como lhe
foi ensinado a crer. Imola-se sem esperança na ressurreição, deixa de
considerar o seu eu importante pelo ganho da consciência de classe, a
solidariedade. Esse materialista morre como se toda a eternidade fosse sua.”
Nas palavras de Marx, “a morte aparece como a vitória do género sobre o
indivíduo”; nas palavras de Hegel, a secularização da morte de Cristo e a sua
ressurreição como a tomada de consciência do espírito da comunidade é “a
sexta-feira especulativa”.
No entanto, um paraíso terreno futuro
pode ser motivo bastante para que um homem se entregue à morte sem angústia durante
a revolução, mas será insignificante para um homem que tenha uma doença terminal
como o cancro ou que acabou de perder o seu filhinho querido. Perante a doença grave que confronta o homem com a aniquilação
iminente ou com uma perda irreparável, a escatologia marxista não é bastante. A escatologia religiosa é
menos estreita e oferece horizontes mais vastos. As pessoas buscam uma mais
completa consolação.
Realizada a sociedade comunista,
tendo-se passado do reino da necessidade para o reino da liberdade, superados
os conflitos de classe, desaparecerá também a morte? Ou pelo contrário, um
reino de felicidade absoluta, não aumentará a angústia da sua perda e da sua
radical subtracção? Encontrado o paraíso, não será a dor da morte mais intensa?
Bloch reconhece o paradoxo. Numa sociedade sem classes, privada de sacerdotes,
será pungente o problema da finalidade e da destinação: “Uma vez eliminadas a
pobreza e a preocupação pela vida, ergue-se com particular dureza a preocupação
com a morte. (…) É mais fácil alimentar o homem do que redimi-lo, reconciliá-lo
consigo e connosco, com a morte e com esse mistério absolutamente vermelho que
consiste na existência do mundo.”
Se em termos de premissas existiam a prioris, que de modo algum eram menos a prioris que os da Revelação, sem a
existência de testemunhos ou documentos de sustentação, então a quantidade e a
qualidade de soluções propostas mergulham nas águas turvas do pensamento positivo e do mito.
“Não é de excluir a possibilidade de
algum dia o homem alcançar a imortalidade, é um postulado legítimo estender o reino
da liberdade ao destino da morte. Como será o homem do ano 3000? (…) Cronos
devora os seus filhos porque o definitivamente autêntico ainda não nasceu, pois
quando o núcleo do existir aparecer, cessará toda a caducidade. A morte ficará
afastada juntamente com a insuficiência processual a que pertence." É o
retomar da máxima de Epicuro: “Onde está o homem não está a morte, onde está a
morte não está o homem.” No Novum está
ausente toda a caducidade e corruptibilidade.
“Mesmo contra a morte, a mais poderosa
anti-utopia, a esperança não desarma, competindo ao homem, com optimismo
militante, fazer inclinar a balança para o lado da esperança, como dizia Kant.
Sobre esta terra difícil e dura, no termo de cada vida encontra-se uma única e
absoluta certeza: a morte, a mais poderosa anti-utopia. Além disso, esta morte
individual é dominada pela possibilidade de uma morte cósmica, essa entropia
que torna tudo inútil.”
Os marajás do mundo da sofisticação
fazem um baptismo no secularismo por imersão total. Notoriamente capturados
pelo tédio e enfastiamento, atitudes a que pomposamente chamam alienação, o
cansaço dos intelectuais resulta do facto de apenas falarem uns com os outros, uma
vez que fazem a divisão das pessoas segundo a conformidade com o seu próprio
pensamento. Da mesma forma que Feürbach transformou a dialética de Hegel de
diálogo em monólogo (teologia é antropologia - do homem com a sua projecção), o
ambiente intelectual da modernidade vive o mesmo tipo de monismo.
Como todo o pensamento marxista, a bela
prosa de Bloch colapsa perante a diferença, a liberdade e a individualidade,
que são padrões do tal início ou Genesis que desvalorizou. Todas estas visões
de um paraíso imobilista, tal como na visão muçulmana, é um nonsense. Se a escola prepara as pessoas
para o trabalho, também esta vida, de algum modo, tem que preparar as pessoas
para a outra.
Então o que fazer com as pessoas que
não querem ir para o paraíso? As pessoas não poderão manter a liberdade de
escolher ficar fora do paraíso, de não acreditar nele? O ainda-não não é
verdadeiramente ainda-não livre, uma vez que se encaminha sobre carris para um
destino pré-determinado. Ora, o que evita que a História seja uma verdadeira maçada, é precisamente o
facto dela ser imprevisível, uma novidade, um Novum pleno, livre e verdadeiro.
Se um homem vive nas tensões e
conflitos, se a esperança é a chama da alegria e da vida, que ganha o homem num
local ou estado onde a esperança não existe e o conflito caduca? O conflito não
resulta da diferença, a diferença da individualidade, a individualidade não
resulta em diversidade, a diversidade em riqueza e alegria? Se a religião trata
as pessoas “como gado”, o que dizer desta mitologia? Não foi Bloch quem afirmou
que “o homem vive enquanto espera?” Por outro lado, se o homem descobrisse a
imortalidade, isso nunca resgataria todo o resto da humanidade já caduca –
nesse sentido esta utopia é muito estreita. Injusta. E onde existe injustiça não existe liberdade.
Se Deus não existe porque não impede o
mal, como pode ser concebível um paraíso terreno onde os seres nele existentes
têm em si a raiz do mal? Indiscutivelmente, a existência do mal mais radical
nada tem que ver com a satisfação das necessidades básicas. Pelo contrário, o
mal mais radical assenta no prazer em fazer sofrer, em humilhar, em desafiar as
regras, em obter vantagens por caminho fácil. Como poderia estar o mal ausente nesse paraíso? O problema do mal com
origem exclusiva no ser humano, continua um dos desafios mais radicais ao
paraíso comunista.
É certo que Bloch não coloca em causa a existência histórica de Cristo, mas continua a morte de Deus. Vê Deus como uma
projecção do homem. Mas esta tese feuerbachiana apresenta duas limitações:
A primeira, é a de que tal suposição se encontra determinada pela época. Nenhuma época é o fim da história, nenhuma época é o pináculo do saber. Pelo contrário, como dizia Ranke, cada época se apresenta perante Deus. Cada época extrai uma realidade dessa sua proximidade com Deus. Pelo facto de a nossa época não conceber a existência de anjos e demónios, isso não significa necessariamente que eles não existam. Existem tipos de saber que são realmente atemporais. Shakespeare é hoje tão actual como antes e a complexidade do espírito humano descrita por Dostoiévski não perdeu nada da sua actualidade. O apóstolo Paulo não tem deficit cognitivo face aos filhos da rádio, da net ou da televisão!
A primeira, é a de que tal suposição se encontra determinada pela época. Nenhuma época é o fim da história, nenhuma época é o pináculo do saber. Pelo contrário, como dizia Ranke, cada época se apresenta perante Deus. Cada época extrai uma realidade dessa sua proximidade com Deus. Pelo facto de a nossa época não conceber a existência de anjos e demónios, isso não significa necessariamente que eles não existam. Existem tipos de saber que são realmente atemporais. Shakespeare é hoje tão actual como antes e a complexidade do espírito humano descrita por Dostoiévski não perdeu nada da sua actualidade. O apóstolo Paulo não tem deficit cognitivo face aos filhos da rádio, da net ou da televisão!
A segunda objeção é a seguinte: Existirá um modo de chegar da antropologia à teologia sem ser pela Revelação? Se o homem inventa Deus por projecção, como dizem os marxistas e dizia Freud, então será que a projecção não resulta de reflexão? Como referido, as pessoas encontram mais esperança na escatologia cristã do que na marxista, mas fica por provar que isso resulte apenas da projecção de uma necessidade. Tomemos como exemplo a matemática. Um matemático pode construir modelos matemáticos sem estar em relação com a natureza, como construções abstractas saídas do seu intelecto. O que espanta, é que também a natureza é pródiga em construções matemáticas. A matemática que o intelecto humano projecta parece, surpreendentemente, provir de uma realidade matemática universal que lhe é externa e que a sua mente parece reflectir. A mente humana e a natureza participam de uma realidade mais ampla que possui uma estrutura comum que ambas partilham. Sendo assim, projecção e reflexão são movimentos pendulares da mesma realidade. E o que se aplica ao domínio da matemática aplica-se ao domínio da esperança.
Como viver eternamente num paraíso onde nada acontece a não ser a satisfação das necessidades básicas? Em que é que ele se distingue de uma prisão?
Se Deus existe não é possível a esperança, dizia Bloch. Ora, se tudo é processo, o que há de novo? Não é apenas o velho transformado, um passado prenhe do futuro? Como falar em novo e, portanto, em esperança? E se tudo tem uma direcção fixa e obrigatória, onde reside a liberdade, a alegria e a esperança? “A morte devora toda a teleologia”, perante a morte, a sua concepção capitula.
Estas são as contradições de um homem
que afirmou “Ubi Lenin ibi Jerusalem"
(onde está Lenine, está Jerusalém). Mas que também supostamente defendia a
liberdade do ser humano ao afirmar, “Só um ateu pode ser um bom cristão e só um
cristão pode ser um bom ateu”.
Chesterton criticaria esta posição
colectivista, panteísta, ao afirmar: “De acordo com a Sra. Besant, a igreja
universal é apenas o eu universal. Trata-se da doutrina de que somos todos uma
única pessoa; de que não existem muros de individualidade entre homem e homem…Ela
não nos diz para amar o nosso próximo; ela diz-nos para sermos o nosso próximo.
Esta atitude espelha o abismo insondável entre cristandade e budismo: para este
tipo de budista ou teosofista, a individualidade é o pecado do homem, para o cristão
ela é o objectivo de Deus, o cerne da sua ideia do universo.”
Noutra passagem, criticava que o
ainda-não, a incompletude, fosse destituído de valor ontológico: “Uma das
atitudes humanas mais frequentes e estranhas é aquela que acontece por exemplo
num jardim à noite ou em verdes prados, em que uma flor ou uma folha nos
parecem mostrar algo de novo e importante que nós, por um prodígio de
imbecilidade, não vemos nem entendemos. Existe um certo valor poético, genuíno,
nesse sentido de ter perdido o significado pleno das coisas. A beleza existe
não apenas no conhecimento, mas também nesta deslumbrante e dramática
ignorância.”
Bloch, na véspera de morrer, escutou
uma vez mais a sua música mais querida, a abertura de Fidelio de Beethoven que
associava à Primeira Carta de Paulo aos Coríntios: “…de repente, num instante,
ao som da última trombeta.” Esta passagem sempre o comovera. Não é que Bloch
tenha ido a Roma e não tenha visto o Papa; Bloch foi a Roma, mas não viu a
cidade. Como eu o compreendo nestes dias…
António Campos
Notas bibliográficas:
Notas bibliográficas:
1 - Peter L. Berger. A Rumor of Angels, Doubleday, NY, 1969.
2 - Anselmo Borges. Ernst Bloch, A Esperança Ateia Contra a Morte. Revista Filosófica de Coimbra, nº4, 1993.
3 - Murray Rothbard. The Economical Thought Before Adam Smith: An Austrian Perspective on the History of Economical Thought.Edward Elgar Pub., 1995.
4 - Cartas originais trocadas entre Adolph Lowe (New York New School for Social Research, economista e sociólogo) e Peter Berger (New York New School for Social Research, sociologia do conhecimento) entre 10 de Janeiro e 1 de Março de 1969.
5 - Silvano Zucal. Cristo na Filosofia Contemporânea, vol. 2, séc. XX. Paulus ed., SP, 2006.
6 - John Aldane. Faithful Reason: Essays Catholic and Philosophical. Ed. Routledge, London, 2004.