Ao encerrar a tese do socialismo1
como religião determinista vamos incidir em dois aspectos
fundamentais: a família e a teologia.
fundamentais: a família e a teologia.
O socialismo tem natureza prometaica,
logo mitológica, e para se impor teria que romper com o padrão religioso onde
nasceu: o cristianismo. Como dizia Chesterton, um novo profeta tem sempre que
criticar a religião vigente. A família é a própria definição de Deus e a
filiação é a própria relação com o homem. A família encerra assim os dois
sentidos fulcrais de toda a relação: o horizontal e o vertical.
A Família
Marx e Engels viram que jamais se
poderia constituir uma sociedade sem classes se a família fosse a célula
fundamental da sociedade. A família “burguesa” está então no cerne da negação.
Não existe qualquer interesse em distinguir a família burguesa da Inglaterra
vitoriana (muito parecida com a família actual no ocidente) da família católica
– nos países de raiz católica a propriedade encontrava-se muito mais
distribuída do que em Inglaterra.
“O núcleo, a primeira forma de
propriedade reside na família, em que a mulher e os filhos são escravos do
marido. Esta forma de escravatura na família é a primeira forma de
propriedade…”2
A discussão sobre a condição do homem
começa então com…a mulher.3
A mulher e o homem têm uma relação dialética em que a mulher representa o proletariado e o homem a burguesia.
A mulher e o homem têm uma relação dialética em que a mulher representa o proletariado e o homem a burguesia.
“A mudança de uma época histórica pode
ser sempre determinada pelo progresso da mulher para a liberdade, porque na
relação homem-mulher, do forte para o fraco, a vitória da natureza humana sobre
a brutalidade é evidente. O grau de emancipação da mulher é a medida natural de
toda a emancipação.”4
Mas é Engels, o aristocrata vitoriano
das caçadas à raposa, que tem o mais acutilante insight ao dizer que a colocação da mulher no mercado de trabalho
favorece a promiscuidade sexual, o eclodir de filhos ilegítimos e a inversão de
papéis, quando a mulher trabalhadora tem o marido em casa, desempregado, a
cuidar dos filhos. Mas tal só acontece porque se segue a mesma lógica dialética
de dominador-dominado.6
Como equilibrar esta dialética? Onde
está a síntese?
Marx afirma que com a abolição da
propriedade privada a abolição da família se torna evidente:
“A Revolução não derrubou todas as
tiranias; os males que existam no poder despótico continuam a existir na
família. Aqui residem todas as causas que levam à revolução.”7
Se a história avança dialética e
deterministicamente em direcção ao futuro, também a família se deve modificar.
“A relação entre os sexos será assunto
privado e não mais familiar. Tal ocorrerá na sociedade comunista porque ao
abolir a propriedade privada e ao retirar as crianças aos progenitores,
educando-as numa base comunitária, removem-se as bases do casamento
tradicional: a dependência, baseada na propriedade privada, da mulher para o
homem e das crianças para os pais.”8
A família do futuro não terá mais
conflito, uma vez que deixa de existir:
“Com a passagem dos meios de produção
para o colectivismo, a família deixa de ser a célula económica da sociedade. A
lide doméstica é transformada em indústria social. O cuidado e a educação das
crianças torna-se um assunto público. A sociedade toma conta de todas as
crianças por igual. Então, a preocupação com as consequências morais e
económicas, o mais importante factor que impede uma mulher de se entregar
completamente a um homem que aprecie, desaparecem. Será isto o início de um
aumento do mais desregrado contacto sexual e, com ele, um enfraquecimento da
consideração pública pelo valor da virgindade e da vergonha da mulher? Será que
a prostituição pode desaparecer deste modo sem arrastar consigo a monogamia
para o abismo?”9
“A indissolubilidade do matrimónio
resulta das condições económicas exageradas pela religião. (…) A duração do
amor sexual entre dois indivíduos varia muito de indivíduo para indivíduo,
sobretudo entre os homens. O cessar do afecto ou o seu deslocamento para uma
terceira pessoa, torna o divórcio uma bênção.”10
Engels possuía aquela visão vitoriana
burguesa, evolucionista, da família, que também se encontra presente no livro de
Wells, Um Perfil da História: no início a família seria matriarcal, constituída por uma espécie de
amazonas que escolhiam o macho a seu belo prazer – um misto de abelha mestra
com viúva negra. Seguidamente a família seria uma amálgama promíscua, depois a
amálgama proibiria o incesto apenas para reduzir as doenças decorrentes da
consanguinidade. A monogamia seria então o resultado da agricultura e da
religião e representaria a dominação do homem pela mulher.9
A evidência histórica já tratou de
desmentir esta visão fantasiosa de Engels. Aliás qual é o homem que no seu
íntimo mais pérfido não sonha viver numa sociedade de amazonas onde ele é um
objecto de prazer? Não é esta a pura essência do egoísmo?
A poligamia e não a poliandria é
expressão de algumas sociedades primitivas e de algumas sociedades já
civilizadas. Não foi precisamente a sociedade judaica e depois a cristã a
restringirem esse “direito” dos homens? E não foi essa “liberdade” conferida a
reis e a burgueses da época moderna? Não foi o islamismo a recusa de tal
restrição dentro das confissões monoteístas? E como se pode comparar a condição
da mulher no mundo judaico e cristão com a do mundo islâmico?
A monogamia não restringe a mulher; ela
força o homem ao compromisso. Pela monogamia o homem tem que se relacionar com
um outro ser humano em toda a sua dimensão; o casamento não se pode reduzir a
sexo grátis e existe o compromisso perante a educação dos filhos. Era
precisamente o adultério e a duplicidade vitorianos a expressão mais pura da desumanização de
tal relação.
Engels, o bon vivant vitoriano das caçadas à raposa, não encontrou até ao dia
da sua morte por cancro da laringe, uma solução final para a família. Antes
deixou a porta aberta para que outros libertários completassem a obra, desde
Freud a Simone de Beauvoir, passando pela Escola de Frankfurt e culminando em
António Gramsci. Ninguém como Gramsci entendeu que a opressão dos trabalhadores
cristãos jamais os lançaria na rota do comunismo; pelo contrário, fortaleceria o papel da mulher na família e a sua devoção a
Cristo. Para construir uma nova sociedade e uma nova crença antropocêntrica, havia primeiro que derrubar o cristianismo antes que o capitalismo.
Gramsci deu o seu princípio: “os
marxistas devem começar por influenciar a cultura conquistando os intelectuais,
os professores, ocupando a imprensa e os media,
as editoras – o modelo seria o da reacção dos jesuítas à Reforma. Os marxistas
deveriam criar “uma cultura capilar” atractiva que infiltrasse o meio
universitário formador da classe económica e política, sobretudo no meio das ciências
sociais.
Explica-se assim a questão da
dissociação entre o fracasso económico do marxismo e o seu aparente sucesso na
desintegração da família. A sociedade capitalista anglo-americana aplicou toda a
força e determinação para combater o comunismo como modelo económico, mas usou as suas ideias para
combater a família. O exemplo é a revolução sexual de Kinsey, financiada pela
fundação Rockefeller.11
“…Houve um grande progresso no último
congresso dos sindicatos da América, onde as mulheres trabalhadoras foram
colocadas em perfeita igualdade. Os ingleses e ainda mais os franceses estão
dependentes de um espírito de provincianismo. Qualquer pessoa que saiba um
pouco de História sabe que as grandes mudanças sociais se tornam impossíveis
sem o fermento feminino.”12
Portanto, o liberalismo concorre com o
socialismo na desapropriação da família como célula da sociedade, em nome da
liberdade do homem.
Recentemente uma das críticas mais
populares à família cristã prende-se com a definição de Paulo na Carta aos
Efésios 5, 22-25, sobre como as mulheres devem ser submissas aos seus maridos. Ouve-se
esta citação repetidamente. Dir-se-ia que foi construída por Paulo propositadamente
para fazer a felicidade dos cépticos. Porém, sugere-se aos amantes da verdade a
continuação da leitura. Revela-se então que o homem deve amar a sua mulher como
Cristo se entregou pela Igreja. Cristo serviu até ao fim, rezando, chorando,
vacilando, morrendo…se o homem servir a sua mulher deste modo, dificilmente se
poderá considerar que a mulher seja sua escrava.
Podem construir-se todos os modelos
possíveis de família, colocar qualquer minoria no palco sob holofotes,
fazer experiências sociais e pseudo-científicas teses de doutoramento sobre
como reinventar a família. No final, encontraremos os velhos homens e mulheres,
a mesma face feminina que enche todo o intelecto do rapaz e lhe rouba o sono,
os mesmos ensaios de declaração frente ao espelho e os mesmos sucessos e
fracassos, o mesmo arrebatamento e a mesma sensação de felicidade e completude,
porque “eles foram feitos um para o outro”, literalmente “uma feita do outro”,
e portanto serão sempre uma só carne, seja qual for a utopia social do momento.
E quando a encontrarmos a ela, sempre nos ocorrerá a figura dele…E os poemas dos
nossos pais ainda serão lidos e apreciados no futuro, enquanto que os nossos
secarão no calor do próximo Verão.
António Campos
António Campos
1
Deve distinguir-se o socialismo como construção filosófica daquilo a que se
chama no mundo ocidental socialismo democrático. Contrariamente ao socialismo,
o socialismo democrático é uma construção intelectualmente pobre, de natureza e
origem essencialmente capitalista, combinando o liberalismo moral (quase um
utilitarismo) e o relativismo, com um Estado filantrópico. A sua origem é
anglo-americana e tem dois objectivos ou, pelo menos, um objectivo e uma
consequência: deter o avanço do socialismo na Europa, de leste para oeste, e
esvaziar de conteúdo e significado a democracia cristã e a doutrina social da
Igreja. Não nos ocuparemos dele.
2
A Ideologia Alemã.
3
Op. Cit.
4
Trabalhos de Marx e Engels: A Sagrada Família, 1844.
6
Engels, O Estadio da Classe Trabalhadora na Inglaterra.
7
Trabalhos de Marx e Engels: A Produção Total.
8
Engels, Princípios do Comunismo, O Manifesto.
9
Engels, A Origem da Família, Propriedade Privada e Estado, 1884.
10
Op. Cit.
11 Agostino
Nobile, Governados Pela Mentira.
12
Marx, Cartas ao Dr. Kugelmann, 1868.
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