sábado, 23 de novembro de 2013

KANT PARA PRINCIPIANTES – Notas Finais e João Paulo II


“Um homem não nasce homem, torna-se homem, por meio de uma educação apropriada, que o transforme num ser racional livre, orientada para o futuro melhor da humanidade”, Kant.


Uma das objecções ao capítulo que escrevemos sobre a moral de Kant, foi a de considerarmos apenas a primeira parte da formulação do imperativo categórico.
A Segunda Parte do Imperativo Categórico:

“Age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca apenas como um meio.”



Qualquer pessoa que leia a Fundamentação para a Metafísica dos Costumes, de Kant77(mesmo aquelas que não têm necessidade de a ler dez vezes), seguramente se depara com a questão sobre o que terá levado Kant a estender a sua definição de imperativo categórico. Será que esta segunda parte não contém ou não está contida na primeira? O que terá levado Kant a insistir na definição, compondo-a?


À primeira abordagem, o enunciado parece conter muito nobres intenções. Dir-se-ia intenções muito cristãs, pois parece subentendido que todos e qualquer um dos homens são irmãos. Será essa a única interpretação possível ou existe outra interpretação nas entrelinhas, só para “iluminados”?
O nosso Mestre diz que se conhece uma árvore pelos seus frutos. Os de Kant foram o nacional-socialismo, o socialismo, o liberalismo nos costumes e na finança (também por influência de Hume). Em todos, uma elite iluminada põe e dispõe da maioria da população. Ora, isso deve-nos fazer suspeitar…

Dividamos o enunciado em duas partes e apuremos os conceitos. Na primeira parte fala-se de humanidade. Humanidade implica duas dimensões: o conceito de “todos os homens” e o conceito de “valor colectivo”, pois todos os homens são tomados de forma homogénea, como tendo um conjunto de valores partilhado.
Poucas serão as pessoas que acreditarão que a humanidade quanto aos seus valores, à sua tradição, à sua cosmovisão, possa ser considerada como um todo. Por isso existem nações, partidos políticos, confissões religiosas e cepticismo. Quanto à origem, aos caminhos e ao destino último, não podemos falar de humanidade como um todo homogéneo. O mundo encontra-se entre a palma e a espada.

Como disse Chesterton, “O mundo inteiro está em guerra para saber se uma determinada coisa é uma superstição devoradora ou uma esperança divina”78.



Na segunda parte fala-se de homem. Para Kant, ninguém nasce homem. Tal só se consegue por meio da administração de uma educação “adequada”, que “liberte” ou “ilumine” o homem. A saída do homem da sua menoridade faz-se pelo “esclarecimento”, que é a rejeição das “trevas medievais” e do “dogma das religiões”, para fazer uso exclusivo da razão. Hume diria “acordar do sono dogmático”. Só este homem é de facto racional, só este homem é um legislador, só este homem projecta a sua razão no mundo numénico. Na teoria do conhecimento o homem não atinge a coisa em si; mas na moral, este homem numénico, munido de uma razão “emancipada” que está no mundo numénico atinge a coisa em si, ou seja, a sua moral é indiscutível - é um dogma!

Portanto, crianças, analfabetos, homens com crenças religiosas, não atingem o estado de “maioridade” e não poderão ser considerados seres racionais livres - portanto, a maioria das pessoas. Estes homens “devem ser educados”, encontrando-se, por ora, fora do âmbito da humanidade ou do homem, tido como ser racional livre e, deste modo, fora do âmbito do imperativo categórico.

Logo, implicitamente, a maioria das pessoas podem ser usados, não como um fim, mas como um meio. É Kant quem o diz e mais ninguém. Basta ler, pensar e observar qual tem sido o resultado desta filosofia e em que é que ela se distingue da moral cristã.

A crença de Kant de que apenas um indivíduo educado “de certa forma” se torna “homem” aliada à crença de que a educação deve ser orientada para “um progresso universal da humanidade rumo ao melhor”, essa crença cega num futuro fixo e virtuoso e no progresso, remete-nos para uma questão tão cara aos iluministas: a escola pública e os seus limites. Deverão os programas lectivos da escola pública obedecer a um cânone centralizado e orientado pelo Estado? E a que princípios deve obedecer essa orientação? Será lícito ao Estado, por meio de impostos sobre todos os contribuintes, financiar por completo as despesas de uma Escola Pública orientada por valores que consideram os valores religiosos como algo a abater?79 




“Sugere Kant que a forma de um imperativo categórico é que o indivíduo deve agir apenas de acordo com uma máxima que se possa simultaneamente querer como lei universal, i.e., o princípio racional que deve governar a vontade. Isto, deve sublinhar-se, não é uma máxima, ou princípio de ação em si, mas apenas estabelece a forma que tais máximas devem assumir. Daí que a pessoa que argumenta que é correcto romper as suas promessas se quiser, estabelece como lei universal de acção que quebrar promessas é aceitável. Se houvesse essa lei universal, e se fosse seguida, é provável que a instituição da promessa deixasse de existir por causa da sua vacuidade. Não é claro, contudo, que o homem que isso quer, tenha cometido algo parecido com uma contradição. Isto significa que a força da razão prática permanece obscura e a discussão sobre ela e a sua utilidade tem continuado desde então.”80

A segunda nota vai para os iconoclastas. Confesso que faz alguma perplexidade observar na Hagia Sofia (a antiga Catedral de Santa Sofia) em Istambul, a mesma fúria iconoclasta que se observa em Amesterdão ou em Hamburgo. Parece que ela se relaciona de algum modo com o unitarismo. Afinal, Cristo ou Issa, também é venerado no Islão e no mundo da Reforma. Mas algo, na fúria iconoclasta, deve ultrapassar as razões que Kant encontrou – a questão do conceito de Presença e do intelecto intuitivo. Parecem justificações, não razões.

Tudo parece centrado na figura de Cristo.




 Afinal se Cristo for apenas um homem, não existe qualquer razão para estar nos altares; se Cristo for apenas Espírito, Dele não devem ser feitas imagens. Mas, se Cristo for simultaneamente Deus e homem, aí tudo muda de figura. Dele podem ser feitas imagens, bem como de sua mãe e de todos os seus amigos. Tal como na nossa casa. A moral do exemplo pode suplantar a moral do dever. O IV Concílio de Latrão em 1215 concluiu que entre o Espírito Criador de Deus e a nossa razão criada, as diferenças são infinitamente maiores que as semelhanças, mas não ao ponto de abolir a analogia e a linguagem.

Ora, as heresias geralmente rompem este equilíbrio e, ou caem para um homem semelhante a Deus, ou caem para um homem totalmente desvinculado de Deus. Desde que a Igreja se constituiu, ela teve sempre que manter uma tremenda disciplina doutrinal face a várias heresias, sobretudo de origem gnóstica – as mais recorrentes ao longo da História são a de que Cristo é apenas espírito, como a heresia albigense, ou a de que Cristo é apenas homem, como a heresia ariana e o Islão.

Ludwig Fuerbach, na origem do ateísmo marxista, diria que a grande tentação é reduzir o que é divino ao que é humano, mas Paulo81 diria que a “provocação” vem do próprio Deus, pois Ele realmente se fez Homem no Seu Filho e nasceu da Virgem Maria. A auto-revelação de Deus ocorre em especial na sua “humanização”82. “Mostra-nos o Pai? (...) Crede-me ao menos pelas obras. (…) Eu e o Pai somos um.”

“Podia Deus ir mais longe na sua condescendência, na sua aproximação do homem e das respectivas possibilidades cognitivas? Na realidade, parece que Deus terá ido tão longe quanto possível. Mais além não poderia ter ido. Em certo sentido, Deus foi longe demais!
Cristo não se tornou, «escândalo para os judeus e loucura para os pagãos» (1 Cor 1, 23)? Precisamente porque chamava a Deus seu Pai, porque O revelava tão abertamente em Si próprio, não podia deixar de suscitar a impressão de que era demais…

O homem não era capaz de suportar tal proximidade e começaram os protestos. Este grande protesto tem nomes precisos: chama-se Sinagoga e, depois, Islão. “Deus deve permanecer absolutamente transcendente, pura Majestade, nunca ao ponto de pagar pelas culpas da Sua própria criatura.”

Nesta perspectiva, Deus revelou-se até demais, na Sua intimidade. Não olhou ao facto de tal revelação O poder ofuscar aos olhos do homem, porque o homem não é capaz de suportar o excesso de mistério: não quer ser invadido e subjugado”, João Paulo II83.


Terminámos o ensaio sobre Kant. O objectivo deste ensaio não foi o de resolver o intrincado puzzle de Kant, mas antes o de formular novos enigmas, suscitar novas questões. O objectivo não foi, nem nunca será, o da conversão de quem quer que seja. Não temos da conversão uma ideia de imposição externa, nem de inevitabilidade, antes de uma escolha interna em perfeita autonomia e liberdade.
O objectivo foi desarmar todos aqueles que, milhares de anos após o Sinai, após Epicuro e os estóicos, após a discussão entre Paulo e os sábios em Atenas, no Areópago, persistem em colar aos católicos o rótulo de ignorantes.
O objectivo foi demonstrar a esses sofistas que não são mais iluminados que os crentes. Que em Kant se encontram infinitamente mais contradições do que em Cristo.
O objectivo foi demonstrar que um homem que toma a razão como sinónimo de ciência e vice-versa, não só acaba excluído da arte, da música, da filosofia ou da teologia, como acaba limitado nos limites da própria ciência. Por isso este  sofista, dentro da caixa do seu mecanicismo, acaba não só a duvidar da razão, como de si próprio e dos outros; descrente do seu próprio universo, agarra-se à crença em “universos paralelos”.


André Malraux dizia que o século XXI seria o século da religião ou não seria nada. 





Agradecimento:


António Campos

Descarregar PDF: https://docs.google.com/file/d/0BwCFS_WLZxTgNXY4ZVZHX0RBaDg/edit





78 Chesterton, O Homem Eterno, 1925. Edição Alêtheia, Lisboa, 2009.


79 Immanuel Kant, Pedagogia. www.philosophia.cl / Escuela de Filosofía Universidad ARCIS. http://www.ddooss.org/articulos/textos/kant_pedagogia.pdf

O homem deve ter civilidade, ou seja, prudência, simpatia e boas maneiras, por forma a que possa ser influente e possa captar os homens para os seus fins.
Adestram-se os cavalos, os cães e também se podem adestrar os homens.
A primeira fase de educação do aluno deve envolver apenas obediência - é a coacção mecânica. Na segunda fase pode permitir-se-lhe a reflexão, mas submetida a leis – é a coacção moral.

É necessário que os pais cedam toda a sua autoridade aos preceptores. A escola pública é preferível à privada porque esta não faz mais do que prolongar e exagerar os erros da educação em família.

A submissão do aluno pode obter-se positiva ou negativamente. No primeiro caso obrigando-o ao que se lhe à prescrito por aplicação do castigo; no segundo caso impedindo-o de fazer aquilo que ele pretenda fazer.


80 David Walter Hamlyn, Uma História da Filosofia Ocidental, Jorge Zahar Editor, 1990.




O indivíduo deve agir sempre de tal maneira a tratar todos os seres racionais, seja em si mesmo ou em outrem, como um fim e nunca como um meio – porquanto a natureza racional existe como um fim em si mesmo. Define vontade de todos os seres racionais como uma vontade universalmente legislativa, ideia esta que expressa também em
termos na noção de autonomia da vontade.


Um ser racional pertence, como membro, ao reino dos fins quando prescreve nele
leis universais através da autonomia da vontade. Mas está também sujeito a tais
leis e é em tal qualidade de membro que o ser moral individual deve determinar
os princípios de acordo com os quais agirá. Kant alega que essas três versões do
imperativo categórico equivalem à mesma coisa, proporcionando, por seu turno,
a forma, a matéria e caracterização completa de todas as máximas, de acordo
com as categorias de unidade, pluralidade e totalidade. Poucos conseguiram
entender como essas três versões poderiam ser realmente interpretadas como três
versões da mesma coisa, e o apelo às categorias em nada ajuda.



Mesmo que, como pode parecer plausível, as três versões do imperativo categórico sumariem uma concepção de moralidade, que pode realmente ser abstraída de uma consciência moral comum, parece definitivamente mais débil a sua alegação de ter fornecido uma base metafísica a essa concepção de moralidade.



No caso dos princípios do Crítica da Razão Pura, supunha-se que sua objectividade fosse demonstrada pelo facto deles se revelarem como condições de experiência possível. É menos do que claro que acção correspondente seja possível para os imperativos da razão prática.

Kant parece, em vez disso, ter suposto que demonstrar que tais princípios são exigências da razão em geral é suficiente para lhes demonstrar a objectividade – o que quer que isso signifique neste contexto.


81 Cor 11, 23. A Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), Lisboa, 1992.


82 Jo 14, 8-11. A Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), Lisboa, 1992.


83 João Paulo II, Atravessar o Limiar da Esperança. Editora Planeta, 1994.

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