A verdade significa mais do que saber: o
conhecimento da verdade tem como finalidade o conhecimento do bem72.
BENTO XVI (Joseph Aloisius Ratzinger, 1927 - )73:
“Não agir segundo a razão é contrário à natureza de
Deus. A convicção de que agir contra a razão está em contradição com a natureza
de Deus é exclusivamente um pensamento grego, ou vale sempre e por si mesmo? Penso
que neste ponto se manifesta a profunda concordância entre aquilo que é grego,
no melhor sentido da palavra, e aquilo que é fé em Deus, fundamentada na Bíblia. No
fundo, trata-se do encontro entre a fé e a razão, entre o autêntico iluminismo
e a religião. O Deus verdadeiramente divino é aquele Deus que se mostrou
como logos e, como logos, agiu e age – No princípio era o logos e o logos é Deus, diz-nos São João.
A deselenização emerge primeiro em ligação com os
postulados da Reforma do século XVI. Considerando a tradição das escolas
teológicas, os reformadores vêem-se diante de uma sistematização da fé condicionada
totalmente pela filosofia; isto é, perante uma determinação da fé a partir de
fora, em virtude de um modo de pensar que não derivava dela. Assim a fé já não
se apresentava como palavra histórica viva, mas como elemento inserido na
estrutura de um sistema filosófico.
Aparecendo a metafísica como um pressuposto
derivado de outra fonte, seria necessário libertar dela a fé, para fazê-la
voltar a ser totalmente ela mesma. Quando Kant afirmou que teve de pôr de lado
o pensar para dar espaço à fé, ele procedeu fundado neste programa e com um
radicalismo imprevisível para os reformadores74. Foi assim que ele
ancorou a fé exclusivamente na razão prática, negando-lhe totalmente o acesso
ao conjunto da realidade.
Na base encontra-se a autolimitação moderna da
razão, expressa de maneira clássica nas "críticas" de Kant, posteriormente
radicalizada pelo pensamento das ciências naturais. Este conceito moderno da
razão baseia-se numa síntese entre platonismo (cartesianismo) e empirismo, que
o sucesso técnico confirmou.
Por um lado, pressupõe-se a estrutura matemática da
matéria, por assim dizer, a sua racionalidade intrínseca, que torna possível
compreendê-la e usá-la na sua eficácia operacional: este pressuposto básico é,
por assim dizer, o elemento platónico no conceito moderno da natureza.
Por outro lado, trata-se da utilização funcional da
natureza para as nossas finalidades, onde só a possibilidade de controlar a verdade
ou a falsidade através da experiência é que fornece a certeza decisiva. O
moralismo subjectivista de Kant, baseado numa fé desvinculada do pensamento,
mas centrada na razão prática, nega à fé todo o acesso à realidade.
Contudo, é importante para as nossas reflexões o facto
de que o método como tal, exclui o problema de Deus, apresentando-o como um
problema acientífico ou pré-científico. Portanto, com isto, encontramo-nos
diante de uma redução do leque da ciência e da razão que é obrigatório pôr em
questão. Neste momento é suficiente ter presente que, numa tentativa de
conservar o carácter de disciplina "científica" da teologia à luz
desta perspectiva, do cristianismo restaria apenas um miserável fragmento. Mas
devemos dizer mais: se a ciência no seu conjunto é apenas isto, então é o
próprio homem que, com isto, sofre uma redução. Porque nesse caso, as questões
propriamente humanas, isto é, «de onde venho» e «para onde vou», as questões da
religião e do ethos, não podem ter
lugar no espaço da razão comum, tal como a descreve uma «ciência» assim
entendida, devendo ser transferidas para o âmbito do subjectivo.
O sujeito decide, com base nas suas experiências, o
que lhe parece religiosamente sustentável, e a «consciência» subjectiva
torna-se, em última análise, a única instância ética. Desta forma, porém,
o ethos e a religião perdem
a sua força de criar uma comunidade e caem no âmbito da discricionariedade
pessoal. O que permanece das tentativas de
construir uma ética partindo das regras da evolução ou da psicologia e da
sociologia, é simplesmente insuficiente”.
Ainda Bento XVI75:
“A Europa desenvolveu uma cultura que, de forma até
agora desconhecida da humanidade, exclui Deus da consciência pública. As
modernas filosofias iluministas caracterizam-se por ser positivistas,
anti-metafísicas. Daí resulta que o homem não admita nenhuma outra instância
moral exterior aos seus cálculos e que, o conceito de liberdade que parecia
estender-se sem limites, acabe por levar à destruição da liberdade e da vida.
Embora pareçam inteiramente racionais, estas filosofias não são a voz da razão,
até porque são temporal e culturalmente vinculadas à situação actual do
Ocidente. É preciso afirmar que estas filosofias iluministas são incompletas,
porque cortam conscientemente as suas raízes históricas, perdendo as fontes
nascentes de onde elas próprias surgiram, essa memória fundamental da
humanidade sem a qual a razão perde orientação.
A perda da tradição acarreta a perda de normas
invioláveis, tudo passa a ser possível. Aquilo que conta é só eu e o instante
presente. Quando o homem coloca o seu egoísmo, o seu orgulho e o seu conforto
acima da exigência da verdade, aquilo que é adorado já não é Deus, mas sim os
ídolos, a aparência e a opinião corrente. Aquilo que é contra-natura torna-se
norma; o homem que vive contra a verdade vive também contra a natureza. Os
laços entre homem e mulher, entre pais e filhos, dissolvem-se. Já não é a vida
que reina, mas sim a morte. Forma-se uma civilização de morte. As palavras de
São Paulo em Rom, 1, 21-32
surpreendem-nos pela sua actualidade.76
Hoje não existe um saber fazer separado do poder
fazer, pois isso seria contra a liberdade que é o valor supremo absoluto. A
separação radical das suas raízes, conduz a filosofia iluminista a um
prescindir do homem. No fundo o homem não tem liberdade nenhuma, dizem os
cientistas, pois ele não deve acreditar que é diferente dos outros seres vivos
e, portanto, deve ser tratado como eles. Esta filosofia não exprime a razão
acabada do homem, mas apenas parte dela e, por via desta mutilação da razão,
não é possível de modo algum considerá-la racional.
A recusa da referência a Deus não é uma expressão
de uma tolerância que pretende proteger as crenças não teístas e a dignidade de
ateus e agnósticos, mas antes expressão de uma vontade que pretende ver Deus
apagado da vida pública da humanidade e atirado para a esfera subjectiva de
culturas do passado. O relativismo torna-se assim um dogmatismo que se julga em
poder do conhecimento definitivo da razão e de considerar tudo o resto como um
mero estadio ultrapassado da humanidade.
A verdade moral, como verdade do valor único e
irrepetível da pessoa feita à imagem de Deus, é uma verdade plena de exigências
à minha liberdade. Decidir olhar para o seu rosto é decidir converter-me,
deixar-me interpelar, sair de mim, abrir espaço ao outro. “Sereis medidos com a
medida com que medirdes.” O olhar que dirijo ao outro decide a minha
humanidade.”
“É uma arrogância do intelecto dizermos: Isto tem
em si algo de discrepante, de absurdo. Por isso, não é possível77.”
António Campos
72 http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/january/documents/h _ben-xvi_spe_20080117_la-sapienza_po.html
Descarregar PDF: https://docs.google.com/file/d/0BwCFS_WLZxTgNXY4ZVZHX0RBaDg/edit
72 http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/january/documents/h _ben-xvi_spe_20080117_la-sapienza_po.html
Bento XVI parte do princípio que toda ação de Deus
é razoável. Se Deus é o autor de todas as coisas, e se Ele tudo fez com
Sabedoria, a Fé não pode ser oposta à razão e nem às verdadeiras descobertas da
ciência. A oposição entre Fé e Razão, entre Religião e Ciência, é um
sofisma do Iluminismo.
A fé da Igreja sempre se ateve à convicção de que
entre Deus e nós, entre o seu eterno Espírito criador e a nossa razão criada,
existe uma verdadeira analogia, na qual por certo – como afirma, em 1215, o IV
Concílio de Latrão – as diferenças são infinitamente maiores que as
semelhanças, mas não até ao ponto de abolir a analogia e a sua linguagem.
O homem quer conhecer; quer a verdade. Esta é
primariamente algo que diz respeito ao ver, ao compreender,
à theoría, como a denomina a tradição grega. Mas, a verdade nunca é
apenas teórica. Agostinho, ao estabelecer uma correlação entre as
Bem-Aventuranças do Sermão da Montanha e os dons do Espírito mencionados no
capítulo 11 de Isaías, notou uma reciprocidade entre "scientia" e
"tristitia": o simples saber, disse, deixa-nos tristes. E realmente
quem se limita a ver e apreender tudo aquilo que acontece no mundo, acaba por
ficar triste. Mas, verdade significa mais do que saber: o conhecimento da
verdade tem como finalidade o conhecimento do bem. Este é também o sentido do
questionar-se socrático: Qual é o bem que nos torna verdadeiros? A verdade
torna-nos bons, e a bondade é verdadeira: tal é o optimismo que vive na fé
cristã, porque a esta foi concedida a visão do Logos, da Razão
criadora que, na encarnação de Deus, se revelou conjuntamente como o Bem, como
a própria Bondade.
Certamente o amor, como diz Paulo, «ultrapassa» o
conhecimento, sendo por isso capaz de apreender mais do que o simples
pensamento ( Ef 3, 19).
Esse subjectivismo radical desembocou, na prática,
por um lado, numa negação completa do sobrenatural e no ateísmo materialista,
e, por outro lado, no fideísmo gnóstico. Em ambos, não há lugar para a
harmonização da Fé com a Razão. Deus criador é excluído quer pelo racionalismo panteísta,
quer pelo fideísmo gnóstico.
74 O argumento
ontológico de Kurt Gödel também parece desmentir o conceito de proscrição do
conceito metafísico de Deus para além do conhecimento humano e reservá-lo
apenas para o campo da moral, quando a razão humana é numénica - “Para admitir a
fé tive que deixar de pensar”, dizia Kant. Gödel, pelo contrário, utilizou o
pensar para chegar a Deus69, 70, 71.
75 Joseph Ratzinger,
A Europa de Bento na Crise das Culturas, Alêtheia, Lisboa, 2005.
Todos nós, uns mais outros menos, utilizamos
produtos de uma técnica cujos fundamentos científicos não conhecemos. Nós
acreditamos que tudo isto não é desprovido de fundamento. Essa “fé” permite-nos
desfrutar do benefício do saber dos outros. A vida humana torna-se impossível
se já não se pode confiar no outro ou nos outros, na sua experiência, no seu
conhecimento, naquilo que nos é oferecido antecipadamente. Esta fé faz sempre
referência a alguém que está a par da questão, apoia-se na confiança da
multidão pela utilização prática das coisas e num certo tipo de verificação do
saber (que desconheço) na experiência quotidiana- mesmo não sabendo os
fundamentos da electricidade verifico que os meus electrodomésticos funcionam
quando ligados à corrente.
Também assim, a experiência de Deus chega até nós
por meio de homens que a ouviram e tocaram. Ninguém conhece tudo, mas, todos
juntos, conhecemos aquilo que é necessário saber. A relação com Deus baseia-se
também na comunhão entre homens. Também na fé sobrenatural existe uma multidão
que vive de um pequeno número, e este pequeno número vive para a multidão. A fé
cristã é, na sua própria essência, um participar nessa visão de Jesus que torna
possível a sua palavra. Sem o realismo dos santos, sem o seu contacto com a
realidade que está em causa, a teologia torna-se um jogo intelectual vazio e
perde o seu carácter científico. A fé é portanto um modo de “ser com”, de
romper com o isolamento do meu eu, a ruptura da barreira da minha
subjectividade. Eu não posso construir a minha fé pessoal num diálogo privado
com Jesus. A fé ou vive em nós ou então não vive. Tal como acontece na vida
quotidiana, também na nossa relação com Deus só podemos encontrar um caminho
participando do conhecimento dos outros.
76 Rom 1, 21-31:
São insensatos, desleais, sem amor pela família,
implacáveis.
76 Rom 1, 21-31:
Porque, tendo conhecido a Deus, não O glorificaram
como Deus, nem Lhe renderam graças, mas os seus pensamentos tornaram-se fúteis
e o coração insensato deles obscureceu-se.
Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos.
E trocaram a glória do Deus imortal por imagens
feitas segundo a semelhança do homem mortal, bem como de pássaros, quadrúpedes
e répteis.
Por isso Deus os entregou à impureza sexual,
segundo os desejos pecaminosos do seu coração, para a degradação do seu corpo
entre si.
Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e adoraram
e serviram a coisas e seres criados, em lugar do Criador, que é bendito para
sempre. Ámen.
Por causa disso Deus os entregou a paixões
vergonhosas. Até as suas mulheres trocaram as relações sexuais naturais por
outras, contrárias à natureza.
Da mesma forma, os homens também abandonaram as
relações naturais com as mulheres e inflamaram-se de paixão uns pelos outros.
Começaram a cometer actos indecentes, homens com homens, e receberam em si
mesmos o castigo merecido pela sua perversão.
Além do mais, visto que desprezaram o conhecimento
de Deus, Ele os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem o
que não deviam.
Tornaram-se cheios de toda sorte de injustiça, maldade,
ganância e depravação. Estão cheios de inveja, homicídio, rivalidades, engano e
malícia. São bisbilhoteiros,
caluniadores, inimigos de Deus, insolentes,
arrogantes e presunçosos; inventam maneiras de praticar o mal; desobedecem a
seus pais;
77 Bento XVI, Luz do
Mundo: O Papa, a Igreja e os Sinais dos Tempos, Ed. Lucerna, Cascais, 2010.
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