"Todo o Mundo Moderno se divide entre Progressistas e Conservadores. O papel dos Progressistas é cometer erros continuamente. O papel dos Conservadores é evitar que os erros sejam corrigidos."
De descansar do trabalho, de relaxar, de recuperar forças. E de
aproveitar também para pôr
leituras em dia ou reler obras já esquecidas mas
que, na altura, nos deram imenso prazer e que levámos pela mão para a praia ou
o campo, ou simplesmente para a esplanada do café habitual, para com elas
conversar como se fossem costumeiros e velhos amigos.
É sempre bom termos um livro para ler como um amigo com quem conversar.
Por vezes vêm à baila conversas antigas, quase esquecidas, mas que nos lembram
dias e horas em que o tempo desaparecia furtivamente sem dele darmos conta, tão
entretidos estávamos então a falar com as páginas de esse livro, que se viravam
e reviravam por entre os dedos, num ritmo veloz que só parava na última e
derradeira página. Absorvidos pela leitura, só tínhamos olhos para as palavras
que líamos, as frases que nos saltavam à vista, as imagens e as ideias que
começavam a povoar a nossa imaginação. Quantos de esses livros lidos nas férias
merecem voltar ao nosso convívio, seguir, bem guardados na nossa mala de viagem,
à espera de lhe pegar e sorrir de novo, antes de lhe afagar o rosto e as
páginas!
Mas eis que alguns, na escolha de estes livros, são facilmente levados
pelas indicações de sábios da Natura que, pomposos, recomendam como leitura
obrigatória, em tempo de lazer, muitas e abundantes obras, sobretudo de
escritores da moda, antes que os mesmos passem, inevitavelmente, de moda.
Outros, com ar sisudo, inventam mesmo um inquérito – que se repete ano sim, ano
não -, sobre as dez obras que, num suposto naufrágio, levariam para uma ilha
deserta. E lá vêm dez magníficas obras-primas, daquelas que toda a gente cita e
quase ninguém lê, mas que dão a quem delas fala um ar marcadamente sábio e
culto, a que só faltam as longas e brancas barbas e os óculos a escorregar na
ponta do nariz. Também fizeram um dia esse estafado inquérito a G. K.
Chesterton. Ao que ele respondeu que se estivesse numa ilha deserta não precisava
de dez livros mas apenas de um: Faça você mesmo um barco.
E é com Chesterton que vamos passar férias. Levando na nossa bagagem não
um, mas todos os livros do famoso Padre Brown: A inocência do Padre Brown, A
incredulidade do Padre Brown, O segredo do Padre Brown, A argúcia do Padre
Brown, O escândalo do Padre Brown. E digo todos, porque a sua leitura acaba por
ser, de certo modo, viciante, e, se não os levarmos todos, ficaremos um pouco
desasados quando acabarmos o primeiro ou o segundo. Mais vale, por isso, ter,
neste caso, material de leitura por excesso do que por defeito.
Aproveitamos, assim, para com o Padre Brown visitar as costas de
Cornwall e de Norfolk, dar um salto a Paris, ir à Escócia, mais propriamente a
Glasgow, e entrar, na companhia de Flambeau, no estranho castelo de Glengyle.
Com o nosso detective-sacerdote percorrer uma belíssima cidade italiana do
Mediterrâneo e de conhecer a cidade e o estado fictício de Heiligwaldenstein,
que lembra, pela sua traça urbana, usos, costumes e língua, um pedaço da velha
Germânia. Daí, dar um salto – grande salto – para a costa norte da América do
Sul, seguindo depois para o Midwest americano, não deixando, naturalmente, de
visitar uma prisão da cosmopolita cidade de Chicago, pois o seu capelão não é outro
senão o nosso querido Padre Brown.
Para aqueles que nele apenas viam uma
personagem tirada do discreto sacerdote católico de Yorkshire, o Padre John
O’Connor, têm aqui um simpático cicerone que nos ajuda a percorrer o mundo
exterior, da Europa à América, e o mundo interior, da tentação e do crime, do
pecado e da queda. Mas também do arrependimento e do perdão, como é o caso do ladrão
Flambeau, que afinal se transforma num dos seus melhores amigos.
Estes policiais, que tanta influência tiveram na literatura do género no
século passado e continuam a ter nos tempos que ora correm, ultrapassam, em
muito, os vulgares romances policiais, mesmo o de autores consagrados. E não é,
como é por demais evidente, por a sua figura cimeira ser um sacerdote católico
na anglicana Inglaterra. É que as suas histórias, maravilhosamente construídas,
estão repletas de alegorias que, quase sem darmos conta, penetram, não apenas
no nosso espírito, mas sobretudo no âmago da nossa alma. Nelas perpassa a
famosa teologia do assombro, isto é, a profunda alegria por estar vivo, e a
filosofia tomista do senso comum. Também, por isso, são leitura que colhe bons
frutos neste Ano da Fé.
Sendo assim, não sejamos gulosos quando acabarmos a sua leitura.
Deixemo-los a algum familiar ou amigo para que também ele possa viajar com
Chesterton e passar férias em tão agradável quão divertida companhia.
Ao
debater com o céptico arrogante, não é um método correcto tentar fazer com que
ele cesse de duvidar.
O melhor método é mergulhá-lo num mar de dúvidas, que
duvide um pouco mais, que duvide em cada dia de novas coisas, até que, por uma
inesperada iluminação, comece a duvidar de si próprio.
Confesso que nunca nutri particular admiração pelo
Livro de Job, dentro de todos os livros do Antigo Testamento. Para mim
tratava-se de uma lamúria circular e de uma mortificação estéril que pareciam
juntar Deus e o diabo num mesmo propósito: fazer sofrer o pobre Job para ver
qual o seu limite. O meu desinteresse foi tão pronunciado que, mesmo o ensaio
de Chesterton, Introduction to the Book of Job, de 1916, nunca despertou a
minha atenção. Foi por uma coincidência estranha, como um raio de sol num dia
cinzento, que uma conversa e um lema desse livro, me fizeram a ele retornar,
pela mão de Chesterton. Do local onde me encontrava não conseguia descortinar o
brilho, o enlevo, a luz e a cor, que se encontram encerrados nesse poema. Não
conseguia sequer vislumbrar o seu paradoxo: porque acontecem coisas más a
homens bons?
Creio
que esta introdução de Chesterton explica um paradoxo: como acontecem coisas más a
homens bons? A resposta encontra-se no problema do mal, na questão da fé e na questão do
que é realmente justo.
Chesterton
fez uma desmontagem admirável e, cuidadosamente, voltou a unir as peças mais
importantes, para chamar a atenção de como Deus permite aos homens que O
vislumbrem, num ápice, por entre a cortina inefável do seu manto.
Dos pontos sublinhados por Chesterton, escolhemos doze:
1 - A AUTENTICIDADE:
Não tem
qualquer interesse discutir se o livro foi escrito de uma só vez ou de várias
vezes, por uma ou várias pessoas, quer se chamassem Job ou não. Esta é uma
questão irrelevante. Irrelevante porque o livro se insere harmonicamente no
ambiente e narrativa do Velho Testamento. No tempo antigo um homem deixava a
seu filho uma obra para acabar, assim como deixava um campo para cultivar. A
Ilíada pode ter sido escrita só por Homero ou não, mas o seu espírito está lá.
Chesterton diz:
“Havia mais unidade em tempos antigos em cem homens
do que existe hoje num só. Então, uma cidade era como um só homem. Agora um
homem é como uma cidade em guerra civil.”
2 - A UNIDADE
Os livros do
Velho Testamento guardam algumas características em comum:
2.1- Os homens como servos, não como filhos; os
homens como meros instrumentos de Deus:
“A ideia do Velho testamento é muito terrena e
prática: a ideia de que poder é poder, astúcia é astúcia, sucesso é sucesso.”
“Os heróis do Velho Testamento não são filhos de
Deus, mas sim servos de Deus. Servos gigantes e terríveis, como os génios, que
eram os servos de Aladino.”
“Aqueles que sublinham as atrocidades e perfídias
dos juízes e profetas de Israel realmente têm uma noção muito desfasada das
circunstâncias.
Eles são demasiado cristãos.
Eles transpõem para as escrituras pré-cristãs uma
ideia puramente cristã - a ideia dos santos, a ideia de que os principais
instrumentos de Deus são pessoas particularmente misericordiosas.
Esta é uma ideia mais profunda, mais radical e mais
interessante do que a velha ideia judaica. É a ideia de que a inocência tem
nela um tal poder que faz e refaz impérios e o próprio mundo.”
“Espera-se dos santos da Cristandade que sejam como
Deus, da sua própria natureza, como pequenas estatuetas Dele.”
2.2- A solidão de Deus:
“O herói do Velho
Testamento não é suposto ser mais da mesma natureza de Deus que um martelo ou
um serrote são da natureza do carpinteiro".
“O sentido geral da escritura do tempo hebraico é
de que não só Deus é mais forte do que o homem, não só Deus é mais misterioso do
que o homem, mas, sobretudo, Ele tem muito mais importância, Ele entende melhor
o sentido do que faz. Comparado com Ele, nós temos algo da futilidade, da
irracionalidade, do deambular das bestas perecíveis.
Ele senta-se acima da Terra e os seus habitantes
são, portanto, como gafanhotos.”
3 - A PERSONALIDADE DE DEUS:
“O livro é
tão assertivo na descrição da personalidade de Deus, que quase afirma a impessoalidade
do homem. A menos que esta imensa mente cósmica conceba uma determinada coisa,
esta fica vazia e à deriva; o homem não tem tenacidade suficiente para
assegurar a sua continuidade. A menos que o Senhor edifique a casa, todo o
trabalho será em vão. A menos que o Senhor vele pela cidade, o sentinela vigia
em vão.”
4 - A SINGULARIDADE:
Todo o Velho testamento realça
o apagamento do homem em face do plano de Deus. O livro de Job é o único em que
ele questiona:
-Qual é a proposta de Deus?
-Vale a pena o sacrifício, mesmo sendo a nossa
existência miserável?
-Vale a pena abdicar da nossa vontade, mesmo que
insignificante, em prol de uma vontade superior e mais bondosa?
-Será que é mesmo superior e mais bondosa?
-Deixemos Deus usar os seus instrumentos; deixemos
Deus partir os seus instrumentos. Mas o que é que Ele anda a fazer e porque é
que eles são partidos?
É por isto que o enigma do Livro de Job é um enigma
filosófico.
5 - A BELEZA INTELECTUAL:
Todo o Livro de Job é um
impulso de querer conhecer a novidade; de ter o desejo de conhecer o que é e não apenas o que parece.
“O hábito moderno de afirmar: cada homem tem a sua
própria filosofia; esta é a minha filosofia e considero-a adequada, só
demonstra fraqueza de espírito. Uma filosofia cósmica não se ergue para
iluminar um homem; uma filosofia cósmica é formulada para se adequar a um
universo. Um homem pode tanto possuir uma religião privada como pode ter um sol
ou uma lua exclusivamente para si.”
6 - O OPTIMISMO DE JOB:
Job interroga, mas interroga
como quem admira Deus. Como uma mulher que interroga o marido, como alguém que
interroga alguém por quem tem consideração.
“Ele abana as fundações do mundo e atira loucamente
aos céus; ele açoita as estrelas; não para as silenciar, mas para as fazer
falar.”
Por outro lado aqueles que confortam Job são
pessimistas: eles dizem que Deus é bom mas não estão convencidos disso. A
verdade é que pensam que Deus é tão poderoso que é mais prudente chamar-lhe
bom." Uma atitude muito humana…
7 - A RESPOSTA DE DEUS:
Todos os homens ao longo da
narrativa fazem perguntas a Deus. A atitude permanece…Seria de esperar que Deus
respondesse, uma espécie de raciocínio convergente. Mas, na verdade, o que
acontece é uma atitude divergente, isto é, Deus também interroga. Deus traz,
por sua parte, ainda mais questões. Faz o que Sócrates fez, vira o racionalismo
contra si próprio. Tal como Deus viria a fazer no diálogo com a samaritana, Deus
aceita as condições dos homens, mas revela-lhes que, no que concerne a colocar
questões, ele tem questões para colocar que reduzem o calibre das questões
humanas.
“Neste drama do cepticismo, Deus adopta o papel do
céptico.”
Deus aceita a igualdade de tratamento. Deus aceita
mesmo o papel de réu. Mas como qualquer réu ele formula a pergunta que qualquer
réu tem o direito de fazer: Quem és tu? E Job, que é um homem intelectualmente
honesto, após um pequeno momento de reflexão, responde: Não sei!
8 - A LIÇÃO DE DEUS:
Todo o homem céptico se
encontra rodeado por um infinito cepticismo. Interrogá-lo é a atitude
recorrente que todos os místicos utilizaram.
“Sócrates demonstrou que se usasse muita sofística
poderia destruir todos os sofistas. Jesus Cristo utilizou o mesmo método quando
demonstrou aos saduceus que se eles não compreendiam a natureza do casamento no
Céu, não compreendiam a natureza do casamento em si.”
Deus deixa-nos esta enorme lição. O propósito de
uma discussão religiosa não é tentar revelar os mistérios, mas sim propor novos
enigmas: “Ao debater com o céptico arrogante, não é um método correcto tentar
fazer com que ele cesse de duvidar. O melhor método é mergulhá-lo num mar de
dúvidas, que duvide um pouco mais, que duvide em cada dia de novas coisas, até
que, por uma inesperada iluminação, comece a duvidar de si próprio.”
9 - A RESPOSTA DE JOB:
“Outra grande surpresa é que Job fica
satisfeito e tranquilo apenas por saber que existe algo de impenetrável na
natureza de Deus. Nada lhe foi respondido, mas ele sente a atmosfera grandiosa
e arrepiante de algo bom demais para ser revelado. A recusa de Deus para
desvendar os seus desígnios é em si própria, uma insinuação ardente do seu
desígnio."
“Os mistérios de Deus são mais gratificantes do que
as propostas dos homens.”
10 - O JULGAMENTO DE DEUS:
Deus repreende quer quem
o acusava quer os que o defendiam. O problema dos amigos de Job é que no esforço
de encontrar uma explicação para os problemas de Job, eles nunca o tomam
verdadeiramente como ser humano, nem a Deus como Deus, mas a Deus como apenas
uma parte integrante de um silogismo moral superior.
Job recusa as suas
explicações porque compreende a necessidade de servir o próximo e de tomar a
Deus como uma pessoa e não como um princípio moral.
Os seus amigos não estavam
verdadeiramente preocupados com ele mas sim com a sua teologia. É por esta
razão que Job não acredita que Deus vá permanecer silencioso para sempre. É por
esta razão que Deus nos manda amar o nosso próximo, incluindo os nossos
inimigos, independentemente das suas ideias.
“O optimista mecânico esforça-se por explicar o
universo apenas numa base racional, assente em padrões repetitivos. Afirma que
uma coisa boa do mundo é que ele pode ser explicado.”
“Deus replica que se existe uma coisa boa no mundo,
é que ele não pode ser totalmente explicado: porque chove no deserto se não
existem lá homens que disso possam beneficiar?” Poder-se-ia dizer, porque nasce
o sol sobre os homens bons e os homens maus?
"Para chocar o homem Deus torna-se por um momento
blasfemo; poder-se-ia dizer que Deus se tornou, por um momento, ateu."
Deus desfila perante Job os animais que povoam a
Terra; poder-se-ia dizer que o Criador de todas as coisas está maravilhado com
as próprias coisas que criou.
Job interroga; Deus responde com uma exclamação. Em
vez de demonstrar a Job que se trata de um mundo explicável, Ele insiste em que
se trata de um mundo muito mais estranho do que ele alguma vez imaginou.
11 - A EXPLICAÇÃO DE DEUS:
Deus sugere que os seus
impenetráveis mistérios são alegres e não tristes. Pergunta a Job onde estava
ele quando as fundações do mundo foram colocadas. Deus fala da neve e do
granizo, não como meros fenómenos físicos, mas como maravilhas da natureza.
Nada se compara a esta alegria, a este optimismo que penetra no mais escuro
pessimismo. Como se estas coisas tivessem sido colocadas no mundo para aquele
momento final em que as lágrimas vão ser enxugadas de toda a face, em que todo
o mal será retirado.
12 - O PARADOXO:
A Cristandade impõe aos seus heróis
um paradoxo: um paradoxo de grande humildade, no que concerne aos seus pecados;
de grande tenacidade, no que concerne às suas ideias.
O
livro de Job, se teve alguma influência no pensamento judaico, foi o de impedir
a sua decadência e colapso. Neste livro responde-se à questão se Deus pune o
vício durante a vida terrena e se recompensa a virtude com a prosperidade
material. Se a mentalidade judaica tivesse dado uma resposta errada a esta
questão, não existiria nenhuma razão para que subsistisse às outras civilizações
que entretanto se afundaram.
"Quando as pessoas acreditarem que a prosperidade é
a recompensa da virtude, ela será tomada como sinónimo de virtude. Os homens
desistirão da tarefa difícil de fazer dos homens bons homens de sucesso e adoptarão
a tarefa mais fácil de dizer que os homens de sucesso são homens bons."
Este
desvio ético é o paradoxo do nosso tempo.
Chesterton sublinha que o livro de
Job é admirável porque ele não conclui que o sofrimento de Job se deva aos seus
pecados ou a qualquer plano para o seu melhoramento. Job sofria não por ser o
pior, mas sim o melhor dos homens.
“A melhor lição que poderemos extrair é que o homem
é melhor confortado por paradoxos.”
“Aqui
reside o mais negro e estranho dos paradoxos; e é pela experiência humana o
mais reconfortante.
Não
necessito mencionar a história superlativa e estranha que se desenrolaria sob
este paradoxo do melhor dos homens com a pior das sortes.
Eu
não necessito de dizer no sentido mais livre e filosófico, que existe uma
personagem do Antigo Testamento que é realmente um padrão; ou seja, não
necessito de dizer quem se encontra prefigurado nas feridas de Job.”
Obrigado
Chesterton! Agora obtive mais claramente uma resposta que já intuía: não é
nesta vida que vemos brilhar a luz da justiça. O nosso propósito é, citando
madre Teresa de Calcuta, “colocar uma gota de água num oceano de sofrimento.”
Não
devemos pensar no que já fizemos, mas no que nos falta fazer. Só os medíocres
pensam que já fizeram muito.
No seu maravilhoso ensaio sobre a Psicanálise, de
1923, Chesterton trata da substância da técnica em si, que diz ser da mesma
natureza dos sonhos. Trata da sua metodologia que classifica de
indutiva, não
científica, consistindo na generalização de uma fracção da realidade a toda a realidade, uma monomania. Trata do seu objecto, o sexo e o inconsciente e, finalmente, como
epílogo, a desconstrução cultural, que se iniciou no iluminismo, contra o
património medieval.
Afirma que a psicanálise começou como uma moda para
se tornar uma superstição. Como a nossa sociedade constrói mitos, em geral não
admite que o seu fundamento possa ser discutido.
Chesterton afirma: Uma teoria é apenas um pensamento enquanto
que uma moda é um facto.
Lembra muito as palavras de Charles T. Tart, o guru
PhD da parapsicologia: “Se está nos media, aconteceu. Se aconteceu, mas não
está nos media, nós cremos que não aconteceu.”
Termina a dizer que a nossa sociedade, sempre a
falar em iluminismo e opinião pública, tem os políticos conservadores apoiados
por fundos financeiros de proveniência duvidosa e os políticos revolucionários apoiados
pelas sociedades secretas.
Claro que as ideias de Freud tiveram correspondência
nas artes e nas letras, no chamado movimento surrealista, que se quer libertar
da lógica e da razão e penetrar no mundo onírico e no inconsciente. Os
surrealistas rejeitam o que chamam “a ditadura da razão” e os valores de
pátria, família, religião, trabalho e honra. Pretendem colocar em equivalência
o sonho e a realidade. Nas letras, esvazia-se o significante do seu significado,
e adopta-se a escrita automática, em que alguém escreve o que lhe vai passando
pela cabeça, de forma desconexa e sem fio condutor, buscando a desestruturação.
Na pintura, o espanhol Salvador Dali e o belga René Magritte são os seus
maiores expoentes.
Curiosamente, A Tentação de Santo Antão, O Homem Invisível e Os Amantes, têm uma conexão directa com este ensaio de Chesterton. O primeiro porque reflecte a luta entre a religião e a mitologia, o segundo porque lembra o outro homem que supostamente vive dentro de nós (a que Chesterton chama macaco), e o terceiro porque amantes de face coberta é o equivalente a sexo entre bestas.
A arte, em geral, reflecte a sua época. Gostar de uma pintura não nos deve impedir de saber como se chegou ali e qual a ideologia que lhe está subjacente. Se o freudismo originou o surrealismo não será exagero apontar a formulação de Freud como surreal. Trata-se do princípio da não contradição.
Traduzimos o ensaio, quase integralmente. Introduzimos pequenas notas para melhor compreensão. Dividimos o ensaio em capítulos para melhor ordenamento mental da narrativa e do conteúdo.
António Campos
xxx
Chesterton, O Jogo da Psicanálise, The Century Magazine, 1923
Introdução
Pode dizer-se da psicanálise que ela é
constituída pela própria substância dos sonhos.
A psicanálise deixou de ser uma mania
porque foi elevada à categoria de moda. É uma moda. Apresenta-se tão visível ao
homem comum como os manequins das lojas de rua.
É chegada a altura de alguém lhe dar um
pontapé, no sentido de voltar a atribuir nomes corretos às coisas. Entendo
seguir os princípios gerais da psicanálise ao não reprimir este impulso. Quem
sabe se eu não ficaria traumatizado para o resto da vida e, consequentemente,
impedido de alcançar o pleno das minhas potencialidades? É muito melhor dar
livre curso ao meu impulso, rindo na cara do professor ou fazendo-lhe um gesto
obsceno.
Bem, alguns considerarão esta minha
sugestão um pouco exagerada ou até leviana; então voltarei ao objeto deste
ensaio. Um objeto que, tal como o professor, é muito sério, embora não tão
solene.
Andamos mais preocupados com o uso
incorrecto do termo do que com a sua utilização correcta. O uso correcto de um
termo é algo de linear, lógico, confinado ao seu lugar. Colocado no seu lugar
por um número limitado de especialistas. O uso incorrecto de um termo é um
evento histórico, uma revolução, uma coisa que envolve milhares.
A história da bolha dos mares do sul1
não se conta por um desenho de algo que aconteceu numa ilha dos mares do
sul. O que aconteceu de relevante não foi um evento remoto, mas a mais central
e civilizada fábula ou ilusão.
Uma teoria é apenas um pensamento,
enquanto que uma moda é um facto. Se certas coisas se apoderam dos centros da
civilização, elas partilham o seu lugar na História, quer a sua origem tenha
sido um equívoco ou não.
Se certos mahatmas são venerados por
todos em Paris ou em Londres, de pouco importa que eles sejam considerados hereges
no Tibete. Se certas danças de origem africana forem consideradas sedutoras
pelos aristocratas da Europa ou da América, torna-se irrelevante que elas sejam
consideradas obscenas e degradantes pelos próprios canibais de África.
A verdade é que o núcleo do verdadeiro
estudo psicológico pouco ou nada tem que ver com a moda da psicanálise, tal
como o núcleo do estudo biológico genuíno pouco tem a ver com a pantomina
popular do elo perdido.
Tanto quanto uma ciência
escrupulosamente científica realmente existe, ela possui entre os seus méritos
certas características que a tornam incapaz de ser uma moda deste tipo. É
característica de uma verdadeira ciência ter um conteúdo especulativo limitado
e assente na demonstração prática, avançando com correcções múltiplas, muitas
vezes chegando quase até ao ponto de origem, outras contraditando-o. Para dar
um exemplo de como uma ciência se aplica a problemas psicológicos, tomemos em
conta o aforismo de contar carneiros para adormecer: à medida que os numerais
aumentam, deixam de ser monossílabos e tornam-se progressivamente mais difíceis
de pronunciar. Além do mais, o seu uso é menos comum. Nós raramente dizemos que
queremos cento e setenta e três chapéus ou duzentos e dezassete bilhetes de
comboio. Por isso, a ciência manda-nos contar, mas na verdade, isso resulta em
que deixemos de contar.
Não nego que algum trabalho está a ser
feito sobre o inconsciente, a memória e a associação de ideias. Mas, por ser um
facto, é óbvio que esse trabalho não vai ser uma moda. Antes de avaliar a mente
inconsciente não seria pior descobrir o uso da mente em si.
Métodos
As passagens mais citadas por estes
intelectuais da psicanálise demonstram que são fortes em teorizar mas fracos a
pensar.
Alguns dizem que Hamlet não só odiava o
tio mas também odiava secretamente o pai, pela simples razão de que gostava da
mãe. Em Hamlet há uma frase que diz “O mais importante neste tipo de coisas são
apenas sombras”. Um professor que tente dissecar uma sombra, que pretenda usar
a sua cabeça no estudo dos órgãos internos de uma sombra, ou demonstrar as
deformidades de uma sombra, é um personagem de um pesadelo irreal. Trata-se de
um sonho ainda mais incompreensível do que os sonhos que tenta interpretar. Até
um escrivão consegue formar uma ideia correcta quanto a este modo leviano de
formar opiniões. Estes intelectuais transpõem para a vida real os truques
usados na literatura.
Alguns dizem que alguém ao escrever uma conferência sobre dificuldades
inesperadas (unforeseen) se enganou e escreveu dificuldades antecipadas (foreseen)
e tomam isso como um ato falhado. Eu diria que quem faz uma conferência sobre
dificuldades inesperadas não está a pensar, em consciência, em dificuldades não expectáveis e na apresentação de soluções para as superar, pois sabe
perfeitamente que vai dizer um chorrilho de mentiras, pois as dificuldades
inesperadas não podem ser, por definição, antecipadas. Há algum homem que por
escrever matar camponeses (peasants) em vez de matar faisões (pheasants) deva ser considerado um homicida?
A marca do psicanalista é que ele
sempre fala de complexos mas nunca parece ter ouvido falar de complexidade. Por
isso chamo a este movimento as
simplificações doentias. Cada uma delas toma parte da verdade, por vezes
uma centésima parte da verdade e, depois, oferece-a como toda a verdade.
Por exemplo, os calvinistas tomaram a
omnisciência divina para sufocar todos os outros atributos divinos. Os seus
descendentes, os deterministas, negaram qualquer escolha, negando mesmo a
possibilidade de as pessoas escolherem aquilo que eles próprios dizem ser
verdadeiro em detrimento daquilo que eles próprios dizem ser falso.
Os utilitaristas desfilaram a sua forma
universal do interesse próprio, da mesma forma implacável, embora essa forma
possa ser um trocadilho, pois os utilitaristas usaram a palavra próprio (self) como os psicanalistas usaram a palavra sexo (sex). Calvinistas,
utilitaristas e todos esses homens de apenas uma ideia são abusadores
intelectuais. O seu objectivo em dar nomes severos às coisas é arrepiar-nos, ao ouvirmos nomes feios atribuídos a coisas comuns e naturais.
Claro que a prossecução de qualquer
ideal só pode ser levado a cabo numa alma consciente, num eu. Eles fizeram um trocadilho e chamaram a isto egoísmo.
O prazer que os intelectuais têm ao
espalhar uma atmosfera de sexo sobre toda a expansão na direcção da beleza ou
da arte, lembra um rapaz que assusta as suas irmãs, falando sobre sangue como
um ogre, quando, na verdade, apenas fez um pequeno corte no seu dedo.
A mesma irracionalidade se comete
quando se pega numa pequena fracção obscura e duvidosa da verdade e se
publicita como a verdade e nada mais do que a verdade. É exactamente isto que
se faz quando se apregoa a natureza sexual de todos os problemas não sexuais.
Que o instinto sexual é muito importante é uma
evidência; que é difícil dizer o quanto ele influencia outras coisas também
parece evidente. Agora o modo como certos especialistas falam do complexo
materno2, só indica que uma mãe é demasiado complexa para que eles a
possam analisar. O seu ênfase não é tanto se existe algo como o instinto
sexual, mas sobretudo negar que exista algo como o instinto maternal. Por esta
teoria, uma galinha não se interessa por pintainhos mas apenas se interessa por
frangos. Ou, o andorinha macho só traz comida ao ninho para os passarinhos
fêmea, procedendo a fêmea de modo inverso.
Parece absurdo, mas não é mais absurdo do que
afirmar que as mães não querem saber das filhas, tal como dizer que os pais ignoram os
filhos. O que é facto é que o instinto parental é a força que corre na natureza
que é de longe a mais poderosa e determinante que atravessa a natureza humana.
É claro que a gentileza de um pai para uma filha ou o especial carinho de uma
mãe para com um filho pode ter uma tonalidade indelével da diferença entre
sexos. Mas essa tonalidade é, não só diminuta, como praticamente imperceptível.
Estas escolas monomaníacas nunca se preocupam com
proporção ou equilíbrio. Aquilo que para elas é novo, agiganta-se no universo,
ignorando ostensivamente aquilo que é, para toda a gente, verdadeiro. Aliás,
qualquer pessoa sã diria sobre o assunto que, se é que existe, faz parte da
mente subconsciente e, portanto, é melhor que continue inconsciente.
Mas é marca do agnóstico pretender estar consciente
do seu inconsciente. E, por detrás de tudo isto, como no diabolismo dos
calvinistas ou no materialismo dos utilitaristas, encontra-se muitas vezes uma
atitude ou um padrão que consiste num prazer absurdo na brutalidade ou na
blasfémia.
O mesmo exercício, que consistiu em dizer que a
maioria dos homens se encontra condenada ou que todos os homens são egoístas, é
efectuado ao sugerir, embora de forma absurda, que a santidade da maternidade
ou o amor às crianças tem como pano de fundo algo das trevas inumanas de Édipo.
O mesmo paralelo pode encontrar-se em muitas
escolas de ética e política do nosso tempo. Tal como a mania de proclamar que
tudo era sexo, assim foi a mania de proclamar que tudo era económico. A noção
marxista, a teoria materialista da história, tem nela o mesmo tipo de
autoconfiança estúpida no centro do seu insuficiente materialismo.
Uma moda concebe tudo acerca do nascimento como
sendo sexual, tal como podia conceber ser tudo acerca de apanhar minhocas. Isso
seria inadequado até para os pássaros que, apesar de não fazerem mais nada a
não ser comer e procriar, ainda não escreveram grandes ensaios do tipo “as
acções douradas dos pintassilgos” ou “a vida das cotovias famosas”.
Todo o pensamento reside pois numa confusão entre
as condições necessárias à vida e os objectivos de vida.
É óbvio que a vida não poderia continuar se a
comida e o sexo não estivessem presentes, mas nada nos diz qual a importância
da sua presença. Será como afirmar que, como um homem sempre se apoia nas suas
pernas, sempre se desloca nas suas pernas, então as suas pernas são o único
interesse da sua vida. Se ele corre para apanhar o comboio é apenas para
exercitar as pernas ou, por outro lado, se herdar uma fortuna vai logo comprar
um par de botas.
Claro que o homem só consegue progredir na história
apoiado nos dois apoios que são a alimentação e a reprodução, mas que ele se
preocupe apenas com estas coisas é desmentido por toda a História, e, só assim
ele poderia ter alguma história. Se só existissem estes dois apoios não
existiriam romances como “O Egoísta”, “O Império Romano”, “As Cruzadas”, “A
Revolução Francesa” ou “A Grande Guerra”.
Objecto: o sexo e o subconsciente
A monomania da omnipresença do sexo, tal como a
monomania da omnipresença da economia, pode ser refutada claramente pela
experiência do mero homem comum. Tal como qualquer homem comum que se tenha
apaixonado, que tenha apanhado uma piela com os amigos ou que tenha ido passear
no campo, sabe que existem muitos objectivos que não são económicos, assim
também qualquer adulto que alguma vez tenha olhado com ternura para um menino
de três ou quatro anos, sabe que o complexo do pai é idiota e que o seu carinho
faz parte de uma série de coisas que a psicanálise não analisa, entre elas o
sentido do absurdo.
Estas modas passam rapidamente mas existe uma
consideração a fazer. É característico destas manias que embora nem sempre
consigam convencer, elas turvam a mente. Sobretudo escurecem-na. Todas estas
descobertas temporárias e tremendas têm a característica singular de que não
são apenas degradantes mas também deprimentes. Nenhuma deixa vestígios da
verdade e das grandes conclusões deste mundo, mas cada uma deixa feridas graves
e profundas e afastamento na mente do homem comum.
O caso contra a nova psicologia é meramente
psicológico. Quando não pode ser tomada como ciência, deve ser tomada como
doença. Um pesadelo nunca é verdadeiro e nunca dura muito, mas sempre se empina
acima das estrelas e envolve o céu e a terra enquanto dura. É nosso dever dar
um beliscão ás pessoas, ao passar, para ver se elas acordam.
Claro que existem outras coisas na psicanálise para
além da loucura de ver instinto sexual em todos os outros instintos ou ideias.
A ideia fixa sobre a influência indirecta do sexo é típica desta tendência. A
maior verdade sobre a psicanálise é que não se trata de uma análise. Não é
análise porque analisar significa decompor a realidade em todos os seus
componentes básicos. No caso da alma, isso não pode ser efectuado de forma
perfeita, e estes doutores ainda o fazem de forma mais imperfeita do que
deveria ser feito. Eles encontram a sua causa predilecta em casos em que um
verdadeiro analista encontraria cinco ou seis causas; portanto os seus
complexos continuam complexos. Acima de tudo, lidam com um complexo que deixam
mais complexo que o próprio universo.
O outro grande objecto da psicanálise, além do
instinto sexual, é o subconsciente. É evidente que ninguém pode analisar o que
é inconsciente. Ninguém pode separar o todo nas suas mais pequenas partes
elementares, contar esses elementos e estar seguro de que nenhum falta. O
máximo que se pode fazer é ter um esboço da coisa, não como os investigadores,
que alegam conhecer quando nem sequer sabem se as coisas detectadas são
significativas ou insignificantes, comparativamente às coisas que permanecem
ocultas. Na verdade, é óbvio que entre as possibilidades do subconsciente se
encontram todas as possibilidades psíquicas.
No momento em que uma coisa está fora da luz da
consciência, não podemos saber que aliados possui nas trevas. Na verdade, nem
podemos tão pouco saber se tem origem em nós ou não. Se algo vem de um local do
qual não temos consciência, é óbvio que não podemos ficar seguros de que a sua
proveniência apenas reside no nosso subconsciente. Tanto quanto sabemos são
eventos de lado algum, pelo que podemos depreender que podem ser manifestações
de qualquer lado.
Não podemos imaginar a existência de uma terra
incógnita e depois traçar fronteiras entre as suas diversas nações, que
desconhecemos. Estamos a melhorar da posição do filósofo que disse que uma
“snark” era um “boojum”3, apenas usando a nossa autoridade para
afirmar categoricamente que uma “snark” não pode definitivamente ser um
“boojum”. Tudo o que podemos afirmar sobre a região além do nosso consciente, é
que ela pode conter qualquer coisa, desde o céu ao inferno.
A Mitologia
A poesia de cordel, a ficção da moda, as conversas
na sala de estar e alguns títulos de jornal, enchem-se de mitologia ridícula
sobre como todo o homem tem dentro dele uma espécie de macaco selvagem, idoso e
microcéfalo. Fazem poemas melancólicos sobre como é fascinante o macaco que vive
dentro do homem e há, inclusive, debates de natureza ética que visam definir se
é o homem que comanda o macaco ou se é o macaco que comanda o homem.
Os homens esquecem-se que a inconsciência é, por
natureza, inconsciente, tal como esquecem que o elo perdido sempre esteve por
encontrar. Estão a fazer um retrato do homem subconsciente exactamente como
fizeram um retrato do super-homem. Neste ambiente intelectual se a coisa não
passar como uma moda só pode ficar como superstição. O mundo moderno pode ou
pode não recuperar a religião, mas está rapidamente a construir uma mitologia.
A desconstrução moderna
Foi desta mitologia que eu aqui tratei, que ameaça
ser uma superstição, ideal para selvagens, mas sem vestígio de qualquer
tratamento para a mente humana. Reconheço que, nas mãos de homens
verdadeiramente cientistas e de preferência sensatos, muito pode ser feito para
que uma pessoa se liberte de memórias mórbidas ou associações bizarras. Mas,
não há dúvida de que este lado sensato da análise se encontra no tempo em que o
calvinismo iniciou a doença destas monomanias modernas. A nossa civilização,
antes da emergência da filosofia calvinista, estava impregnada da filosofia
católica. Os puritanos destruíram as instituições da sociedade medieval, uma a
seguir à outra, e os modernos estão a restaurá-las uma atrás da outra. A única
diferença é que uma coisa que tinha uma forma medieval moderada tem agora uma
forma moderna extravagante.
O culto do feminismo tornou ridículo os protestos
contra a Mariolatria. Existem seitas protestantes na América, hoje em dia, que
recusam terminantemente honrar a mãe de Deus, embora se interroguem por que
razão Deus não se chama mãe em vez de Pai.
O culto do esteticismo tornou ridículos os
protestos contra o ritualismo. William Morris coloca em papel de parede os
símbolos que os católicos foram proibidos de colocar nas suas paredes.
Uma vez que os homens não deveriam recitar a
Ladaínha da Virgem com reverência, Swinburne reescreveu-a para que eles a
pronunciem como uma blasfémia, dirigida a uma prostituta.
Uma vez que os monges praticavam um comunismo
voluntário em pequena escala que era tido como superstição, vieram os
bolchevistas impô-lo a todos os homens numa escala colossal.
Uma vez que destruímos as confrarias medievais que
eram conservadoras, somos agora compensados com os sindicatos que são
revolucionários.
O mundo moderno rejeitou, como inacreditável, os
milagres medievais que envolviam relíquias e lugares sagrados e resolveu criar
os seus próprios milagres com mesas e pandeiretas4; negou que um
morto pudesse vir a adquirir um corpo glorioso e vive para ouvir os seus
cientistas dizer que podemos ter um clube de golf glorioso5 e um
brandy com soda glorioso.
Não existe uma única instituição medieval que não
tenha sido ridicularizada e destruída e que não ressurja agora como paródia na
sociedade moderna.
Talvez faltassem algumas que agora aparecem. A
psicanálise é o repor do confessionário.
O mundo moderno realmente carrega um fardo pesado
de secretismo. Sempre a falar de iluminismo e opinião pública, tem mais segredo,
no pior sentido, que qualquer outra época. Os seus políticos conservadores são
financiados por fundos de proveniência duvidosa; os seus políticos
revolucionários pelas sociedades secretas. Em termos afectivos, desenvolveu-se
de forma mais fria e venenosa. O aspecto mais saudável desta nova psicologia é
que é apenas mais um surto dessa secreção.
Do ponto de vista prático a comparação permanece.
Quer faça ou não todo o bem que o confessionário faz, seguramente fará todo o
alegado mal que o confessionário era acusado de fazer. Está de acordo em toda a
linha com a velha acusação: a falta de decoro da matéria em questão e a falta
de dignidade do destinatário.
Na verdade, a acusação comum é mais evidente contra
um experimentalista ocasional do que contra um dedicado celibatário. Um padre
pode ser libertino e quebrar os seus votos, mas não é evidente porque razão um
libertino inveterado não deveria ter também votos para quebrar.
Mas toda esta comparação vai além da questão aqui
em consideração. Basta dizer que também nesta questão o mundo moderno copia de
forma enviesada o mundo medieval, que condena furiosamente. E, se é verdade que
isso é um defeito, deve dizer-se que este é o modo mais próximo que ele se
aproxima da virtude.
1 The South Sea
Bubble, foi a denominação que se deu ao crash bolsista na City da cotação da
Companhia dos Mares do Sul. Esta companhia financiou a Inglaterra na Guerra de
Sucessão Espanhola e, em contrapartida ficou com o monopólio do comércio com
toda a América do Sul. Claro que isso tornou a companhia muito atractiva
em bolsa, devido ao potencial de ouro e
prata da América do Sul. Após uma especulação selvagem sobreveio o colapso.
2 Complexo materno:
grupo de ideias ou sentimentos associados à imagem da mãe. Complexo de Electra:
a criança identifica-se tanto com a mãe que deseja matá-la para possuir o pai.
3 Lewis Carrol,
autor de Alice no País das Maravilhas, escreveu um poema em que fala de um
animal imaginário que não chega a descrever. Disse que não podia explicar,
porque nunca o viu. No entanto dizia que o/a snark arranha ou morde. Caça-se
o/a snark com força e coragem pois o animal tem um fraco sentido de humor e
gosta de acordar tarde. O boojum é um tipo particular de snark que fez com que
um padeiro desaparecesse e nunca mais fosse encontrado.
4 Referência à
psicanálise e às suas filhas, a hipnose e a hipnose regressa e, provavelmente, também ao espiritismo.
5 Hoje poderíamos
dizer um clube de futebol glorioso, pois um clube de futebol tornou-se
simultaneamente uma religião e uma seita urbana.